O ensino híbrido como “a bola da vez”: Vamos redesenhar nossas salas de aula no pós-pandemia?

2021-06-02
Por Edméa Santos
Professora titular-livre da UFRRJ.


“Ensino remoto” foi a noção de “ordem” do ano de 2020, quando o assunto educar durante a pandemia da covid-19 estava em pauta. A pandemia nos confinou no espaço da casa, para quem pôde e ainda pode viver o distanciamento físico, apartando-nos literalmente dos contextos físicos e dos espaços urbanos em geral. As escolas, as universidades e muitos outros espaços de aprendizagem e redes educativas tiveram de migrar suas atividades presenciais para o ciberespaço. Essa migração tem se materializado em diferentes práticas curriculares, a exemplo do ensino remoto, da educação a distância e da educação online como já relatamos aqui com o artigo “EAD, palavra proibida. Educação Online, pouca gente sabe o que é. Ensino Remoto, o que temos para hoje” (SANTOS, 2020). 

Mais recentemente, a demanda é pelo ensino híbrido, uma vez que já começamos a retomar as atividades presenciais. A experiência do trabalho totalmente online veio para ficar; em contrapartida, já sentimos a necessidade de articular espaços, tempos e pedagogias aproveitando o que há de melhor em cada arranjo e entre todos em conjunto. 

O objetivo desse texto é problematizar um pouco sobre alguns arranjos curriculares híbridos na contemporaneidade, apostando em desenhos didáticos para salas de aulas híbridas na cibercultura com ênfase na formação de professores, com a apresentação de alguns desenhos de ensino híbrido praticados atualmente, destacando-se suas características e contradições.  

A presença do digital em rede é transversal em nosso tempo nas mais variadas ações humanas. Seres humanos em processos de cocriação em rede na relação cidade/ciberespaço protagonizam a cultura contemporânea, ou seja, a cibercultura. Portanto, para nós a educação online já é em potência uma educação híbrida, uma vez que nos permite bricolar e fazer convergir espaços, tempos e pedagogias. “Convergir” não é replicar e ou mesmo copiar. E “bricolar” não é juntar sem propósito. Convergir e bricolar exigem de nós cocriação inteligente de processos, produtos, arquiteturas e mediações. Incorporar o uso de tecnologias e ou situação online a rotinas presenciais de forma desintegrada não é para nós educação online ou mesmo híbrida. Essa é a nossa posição autoral, uma vez que nosso lugar de fala se encontra nos estudos da cibercultura e da educação (SANTOS, 2005, 2014, 2019, 2020). 

Respeitamos e dialogamos com diferentes escolas e perspectivas na grande área da Tecnologia Educacional, que é, inclusive, nossa área na Capes e no CNPq. Nesse contexto, contamos com uma diversidade de grupos que se organizam nas comunidades científicas, como: Mídia Educação, Informática na Educação, EAD, Tecnologias Educativas, Educomunicação,  entre outros. A riqueza da diversidade citada nos permite boas e diferentes articulações teóricas e ou metodológicas. Entretanto, alertamos para uma possível prática eclética que nos coloca em armadilhas epistemológicas. E refutamos práticas ecléticas, optando por práticas multirreferenciais na cibercultura (SANTOS, PORTO, 2019), que nos permite operar na heterogeneidade das práticas e dos processos atentando para uma coerência epistemológica. 

Não nos permitimos, por exemplo, combinar os pressupostos skinnerianos com os pressupostos vigotskianos. Para os primeiros, somos organismos que aprendem mecanicamente, enquanto para os segundos somos seres culturais e aprendemos mais e melhor com mediações culturalmente situadas sem separar os seres humanos e os repertórios dos usos que fazem das linguagens e dos instrumentos culturais. 

Sendo assim, penso ser muito importante nos situarmos agora no que tange ao ensino híbrido, uma demanda do momento. Na literatura especializada, essa não é uma discussão nova. Muitos são os trabalhos e práticas sobre esses estudos encontrados na literatura também com as nomenclaturas ensino semipresencial e b-learning (SILVA, 2000). Se em 2020 a demanda era pelo “ensino remoto”, agora em 2021 a noção de ordem é o “ensino híbrido”, uma vez que escolas, universidades e outras redes educativas se encontram bastante pressionadas ao retorno de atividades presenciais. Como não podemos retomar ao presencial a que estávamos habituados no período pré-pandêmico, redes públicas e privadas começam a praticar currículos híbridos.

Com o avanço da vacinação em massa e a necessidade de retorno das atividades formais de ensino, a sala de aula híbrida é de fato uma alternativa. Lamentavelmente, potenciais inovações pedagógicas mediadas por tecnologias só são incorporadas quando o social se encontra em situações-limite, seja por falta de recursos econômicos ou por tragédias como guerras. A pandemia da covid-19 não deixa de ser uma situação de guerra, uma vez que no Brasil contamos com uma enorme crise sanitária, em consonância com uma tragédia política e crise de civilidade sem precedentes em nossa história. 

De todo modo, podemos afirmar que a presença das tecnologias em processos de formação, ensino e aprendizagem está em consolidação direta nas práticas, exigindo das pessoas e das instituições políticas de acesso, acessibilidade e formação para uma educação híbrida. São muitas as demandas sobre o ensino híbrido. Sabemos que o “ensino” é apenas uma unidade de processos educacionais mais amplos. E concordamos com Freire (2006), que trata o ensino como ato de educação autêntica e epistemologicamente curioso; logo, não reduzimos o ato de ensinar a processos de transmissão de conteúdos de um polo de comunicação a outro. Para nós, o ensino é então em potência um ato de cocriação entre seres humanos e objetos técnicos. Mas qual o “estado da arte” dessa discussão no Brasil neste momento de pandemia de covid-19? A esse respeito, Silva (2021) sugere:

Ouça o podcast Docentes na pandemia 1. Repare que ele reúne as falas de duas professoras pesquisadoras antenadas e eloquentes diante do mal-estar da exclusão digital dos professores forçados a lecionar 100% online na pandemia de covid-19. A professora Nilda Alves é precisa na crítica à condição estressante e dolorosa dos professores e professoras despreparados para o desafio abrupto. Por sua vez, a professora Edméa Santos convida à reflexão urgente sobre a sala de aula híbrida, uma vez que escolas apressadas e inconsequentes rompem com o confinamento absoluto e retornam à sala de aula física, dedicando uma parte da carga horária regular à modalidade online. (SILVA, 2021, online).

Em nossa pesquisa em rede e nas redes, categorizamos o ensino híbrido discutido e praticado em pelo menos três categorias: 

  1. Ensino híbrido com tecnologia educacional – Aquele que envolve práticas de ensino híbrido com uso das tecnologias para transmitir conteúdos e atividades do espaço presencial para o espaço online, conectando a escola com a casa dos estudantes via internet. Algumas escolas estão, por exemplo, fazendo a transmissão das aulas que acontecem em sala de aula presencial para a casa dos alunos que não estão na sala. Os alunos que não estão na escola acessam a aula e suas discussões via live. Live é toda transmissão de conteúdos e situações do presencial via audiovisualidades online (SANTOS, 2000). Será que essas aulas, essas lives são inovadoras? Que convergências de espaços / tempos e pedagogias estão sendo materializadas? Além disso, considerando os contextos em que os alunos são excluídos digitais, ou seja, não possuem conexões, como o ensino híbrido vem sendo praticado? Há casos que parte da turma se encontra na escola, enquanto outros alunos estão em suas casas, fazendo exercícios, listas de exercícios e roteiros estruturados em materiais impressos, sem conexão com as redes e muito menos com as escolas.
  2. Ensino híbrido com metodologias ativas – Há no Brasil um movimento bastante ativo em grupos de pesquisa acadêmicos, fundações e empresas de educação em torno do ensino híbrido fundamentado nas chamadas “metodologias ativas”. A discussão contempla a convergência de espaços, tempos e práticas mediadas por tecnologias e arquiteturas diferenciadas de salas de aula. A proposta defende o “centrar no aluno”, cabendo aos docentes a arquitetura e produção de roteiros para diferentes circuitos e situações que podem ser vivenciadas por uma mesma turma trabalhando em diferentes grupos e circuitos personalizados (HORN; STAKER, 2015). Validamos muitas dessas propostas e metodologias, mas criticamos e refutamos aspectos importantes. Para nós, as “metodologias ativas” devem ser “metodologias interativas” (Silva, 2021); em vez de “centrar nos alunos”, devemos fazer emergir mais redes e conexões. O centro são as “redes” na relação professor/aluno/conhecimentos/coisas. Esse “centrar no aluno” esteve muito presente do escolanovismo e nas clássicas discussões de EAD. A escola crítico-construtiva e a cibercultura já questionaram a “centralidade do aluno”, direcionando o foco para a relação professor/aluno/conhecimento. O “digital” nessa proposta muitas vezes é utilizado como repositório de conteúdos e não necessariamente como espaço/tempo de produção de conhecimento em rede.  
  3. Ensino Híbrido com e na cibercultura – Educação online. Nossa posição histórica é pela educação online que busca cocriar currículos em rede. Currículos que não separem a sala de aula presencial da sala de aula totalmente online, que façam convergência de espaços/tempos/pedagogias, que utilizem o que há de melhor em cada arranjo. Docentes e alunos protagonizando juntos e com os artefatos culturais, curriculares e digitais, se autorizando em rede de forma interativa na criação metodológica, bem como na produção de processos e produtos. Aqui não se defende o “centrar do aluno” e muito menos o “ensino personalizado”, princípios presentes no jargão das metodologias ativas. Defendemos que o estudante tenha autonomia e que protagonize suas itinerâncias de aprendizagem e formação, seja capaz de gerenciar seus tempos de estudo e adentrar módulos e ou unidades sem controle direto do docente. Mas não defendemos apenas o “autoestudo” centrado no aluno como comumente observado nos roteiros de EAD. Consideramos importante também que se garanta a mediação docente, em espaços e tempos presenciais e online. Muitas vezes as práticas de “ensino híbrido” não valorizam a mediação docente online, garantindo apenas alguma supervisão docente nos espaços físicos e presenciais. Vale ressaltar que, quando defendemos a mediação docente integrada (presencial e online), não estamos falando na mediação centrada do professor. Este deve, sim, fazer mediações, mas não ser o único mediador. Atuamos e defendemos as práticas de mediação todos-todos, em que toda comunidade é, em potência, mediadora. Além disso, não podemos ignorar o poder mediador das linguagens, dos artefatos curriculares e das coisas. Assim, defendemos a mediação em rede, com centros móveis (docentes, estudantes, coisas) e instituição de salas de aula interativas (SILVA, 2021). 

Desenvolver a terceira proposta é o nosso projeto de vida e formação há mais de 20 anos. Nossa obra em educação online é bastante ampla e seus rastros podem ser acessados em rede (www.edmeasantos.pro.br). Entretanto, agora o desafio é maior. Temos de materializar mais e melhores práticas híbridas, não só como demanda, mas com a legitimidade de uma comunidade educacional mais ampla, uma vez que a pandemia de covid-19 nos obriga a trabalhar com mediação tecnológica em rede. Isso faz com que o nosso trabalho seja bem mais valorizado e ressignificado em todos os níveis, incluindo a graduação, a pós-graduação stricto sensu e a formação continuada de professores formadores. A demanda atual nos convida a recuperarmos algumas experiências que vivenciamos no campo da formação de professores na cibercultura. 

Vamos então desenhar a nossa própria sala de aula na cibercultura? Venho desenhando essa educação com meu grupo de pesquisa GPDOC/UERJ/UFRRJ – Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura – e estudantes no Instituto de Educação e também junto ao PPGEDUC – Programa de Pós-graduação em educação da UFRRJ, bem antes do constrangimento da pandemia de covid-19. Neste momento, estamos vivenciando a educação online sem o recurso da sala de aula presencial.

 

Assim que avançarmos com a vacinação em massa e estivermos em segurança, será uma alegria enorme voltar a explorar o nosso campus universitário. Além de contarmos com a presença gritante da natureza de uma floresta de mata atlântica, contamos com equipamentos tecnológicos, científicos, culturais e artísticos potentes.  De todo modo, não vejo a hora de habitar a nossa universidade revitalizando-a física e, sobretudo, politicamente, para que possamos também continuar investindo em plataformas digitais públicas, gratuitas e fora da lógica mercadológica das grades empresas que estão plataformizando a educação em todo o mundo, inclusive, lamentavelmente, aqui no Brasil. 

Aproveitamos a oportunidade e partilhamos aulas e conversas que estamos tendo com diversos coletivos sobre ensino híbrido. Aproveitemos os conteúdos a seguir como disparadores para novos encontros, debates e reuniões de planejamento para redesenharmos nossas salas de aula. Bora, Bora! 

[]s

Méa


Apêndice

LIVES DE 2021 – Ensino Híbrido

1 – 23/02/2021 – Ensino híbrido: fundamentos e dispositivos formacionais. Congresso virtual UFBA. 

2 – 30/03/2021 – Educação, didática e tecnologia. Webinário Andipe 2021.1. 

3 – 20/04/2021 – Desafios do ensino remoto na pós-graduação. Seminário de Ensino 2021 da ENSP, Fiocruz.  

4 – 28/04/2021 – Gestão híbrida: ampliação de olhares sobre o ensino aprendizagem. Ciclo de Webinários Educação para Juventudes. Instituto Unibanco. 

5 – 06/05/2021 – Ensino híbrido e modalidades semipresenciais- características, exigências e possibilidades abertas. 2º Ciclo de debates/ Ensino híbrido: necessidades e desafios. Fórum Nacional de Pró-Reitores de Graduação. 

6 – 07/05/2021 – Um novo espaço para a Educação formal- Palestra com os professores Marco Silva e Edméa Santos 

7 – 26/05/2021 – Ensino híbrido na cibercultura: notas para a formação de professores – Palestra no VII SENID na UPF

 

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 

HORN, Michel B.; STAKER, Heather. Blended: usando a inovação disruptiva para aprimorar a educação. Porto Alegre: Penso, 2015. 

SANTOS, Edméa. EAD, palavra proibida. Educação online, pouca gente sabe o que é. Ensino remoto, o que temos. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, agosto de 2020, online. ISSN: 2594-9004.  

SANTOS, Edméa. #livesdemaio... Educações em tempos de pandemia. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, junho de 2020, online. ISSN: 2594-9004.  

SANTOS, Edméa. Educação online: cibercultura e pesquisa-formação na prática docente. 2005. 351 f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2005. 

SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. Santo Tirso, Portugal: Whitebooks, 2015. 204 p. Acesso em: junho. 2020.

SANTOS, Edméa. pesquisa-formação na cibercultura. Teresina: EDUFPI, 2019. Acesso gratuito na aba “Livros”

SANTOS, Edméa; PORTO, Cristiane (org.) APP-Education: fundamentos, contextos e práticas educativas luso-brasileiras na cibercultura. Salvador, BA: EDUFBA, 2019. 

SILVA, Bento. O contributo das TIC e da Internet para a flexibilidade curricular: a convergência da educação presencial e a distância. In: PACHECO, José A.; MORGADO, José C.; VIANA, Isabel (org.). Actas do IV Colóquio sobre questões curriculares. Braga: Universidade do Minho, 2000, p. 277-298. 

SILVA, Marco. Interatividade na educação híbrida. In: PIMENTEL, Mariano; SANTOS, Edméa; SAMPAIO, Fábio F. (org.). Informática na educação: interatividade, metodologias e redes. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2021. (Série Informática na Educação, v.3). 

 

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Como citar este artigo:

SANTOS, Edméa. O ensino híbrido como “a bola da vez”: Vamos redesenhar nossas salas de aula no pós-pandemia? Notícias, Revista Docência e Cibercultura, junho de 2021, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA. 

 

Editores/as Seção Notícias:  Felipe Carvalho e Mariano Pimentel