Chamada para publicação de artigos SOLETRAS n. 50 (set.-dez. 2024)

2024-07-17

A Revista Soletras divulga chamada para o número 50

 

Dossiê 50: Feminismos Decoloniais e Teoria Literária: outros percursos críticos

Organizadores: Catarina Caldeira Martins (Universidade de Coimbra), Maximiliano Torres (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Simone Pereira Schmidt (Universidade Federal de Santa Catarina)

Prazo para submissão: 5 de outubro de 2024, com publicação prevista para dezembro de 2024.

 

Ao longo das quatro últimas décadas, a crítica feminista e a crítica pós-colonial / decolonial desenvolveram propostas teóricas e trabalhos analíticos no âmbito dos estudos literários que transformaram profundamente a compreensão das literaturas. Visaram, sobretudo, a ocupação do cânone e dos sistemas literários pela literatura de autoria feminina e pela literatura do/a subalterno/a: de sujeitos colonizados e racializados, de literaturas periféricas no sistema-mundo, em línguas e linguagens não imperiais e não hegemônicas. Inclinaram-se, portanto, para a constituição de novos cânones ou linhagens de escrita, em oposição ao modelo eurocêntrico, branco, masculino e às respectivas estéticas consolidadas. Propuseram, com isso, a análise crítica das representações das mulheres, das identidades sexuais e de gênero dissidentes, bem como das personagens negras e indígenas, incluindo uma dimensão interseccional, desvelando intrigas e linhas de sentido de cariz colonial. Procurou-se, igualmente, estabelecer o que seria “o sexo dos textos” e/ou “a raça dos textos”, interrogando as próprias nomenclaturas de literatura feminina, literatura negra ou afrodescendente, literatura indígena, literatura gay, entre outras.

Ao mesmo tempo, tais literaturas e suas autoras e autores desenvolviam novas estéticas, muitas vezes com uma forte reflexão metaliterária, associada à escrita, que mereceram grande fortuna crítica, devido à forma como puseram e põem em causa normativas ou tradições de entendimento da própria literatura. Um exemplo destacado é o da “escrevivência”, de Conceição Evaristo, bem como tantas outras propostas de embodied writing, ou seja, de uma escrita do corpo, própria de quem sofreu a opressão e a discriminação, por causa de diferenças em relação à norma cristalizada, que se apresenta como “transparente” e sem a materialidade. Nesse sentido, é chegado o momento de pensar sobre as implicações de todos estes trabalhos no âmbito da teoria literária, na concepção dos vários domínios dos estudos literários, nas metodologias, bem como nos conceitos operativos e na terminologia da análise do texto - e, até, por que não, na própria concepção do que é a literatura.

A teoria, enquanto sistematização, é sempre uma imposição de ordem, a partir de um ponto de vista de poder. Ora, se a teoria literária e os métodos e conceitos analíticos que empregamos ainda remontam a um paradigma europeu, branco e masculino, há que se desenvolver uma dimensão crítica e autorreflexiva dos enviesamentos e da reprodução da ordem de poder que esse uso continua a provocar na leitura e na interpretação do texto literário. Acreditamos que um olhar assente na crítica feminista decolonial pode ser o caminho para o questionamento de nossos próprios instrumentos teóricos e metodológicos, para que os estudos literários correspondam com maior rigor e menos apagamento ou silenciamento às inovações que as literaturas das margens apresentam. Tomando como exemplo as literaturas contemporâneas, escritas por mulheres, cis ou trans, negras, indígenas, racializadas, periféricas, percebemos que estas trazem em si implicações teóricas que colocam em causa outros conceitos solidificados, como ficção e testemunho, pacto ficcional, a distinção autor/narrador, leitor real/ leitor implícito, a própria noção de autoria, dentre outros mais. Será que se aplicam, a essas construções, os conceitos da narratologia francesa, por exemplo, relativamente à estrutura diegética, ao tempo, ao espaço e até à personagem? Poderemos abordar uma lírica de mulheres negras, indígenas, transgênero, assumida como dando corpo a um lugar de fala específico, tantas vezes ligado à oralidade e a um novo posicionamento da voz, com o instrumental analítico elaborado para a tradição lírica, com conceitos como sujeito poético e os seus esquemas métricos e rítmicos? Como compreender o lugar destas escritas em sistemas literários e aparelhos de análise literária fortemente associados a um paradigma filológico, vinculado ao conceito de Nação? Como pensar estas escritas no limiar entre a literatura e as outras artes? Será suficiente um método comparativo num mundo globalizado de culturas misturadas, cujas linhas de sentido atravessam todo o tipo de fronteiras materiais, sistêmicas e paradigmáticas?

Diante dessa encruzilhada de indagações, o objetivo deste dossiê é propor um levantamento inicial dos caminhos que poderão ser percorridos num questionamento da teoria da literatura, dos diversos campos dos estudos literários (hermenêutica, historiografia, literatura comparada…), bem como dos conceitos e métodos constituídos segundo o modelo eurocêntrico. Pretende-se, por um lado, a revisão da teoria literária, desmontando a sua associação histórica a um lugar de enunciação determinado, bem como, por outro lado, a reflexão exploratória sobre os desafios das novas literaturas, que abalam o edifício consagrado dos estudos literários. Desse modo, convidamos à apresentação de propostas que apontem para tais interrogações, mesmo que de forma embrionária, no sentido de iniciarmos a construção de novos caminhos para a teoria e análise literárias, de um ponto de vista feminista decolonial.