SIMULADOR DA ESCRAVIDÃO: UM DISPOSITIVO RACISTA RECREATIVO, ESTRUTURAL E ALGORÍTIMICO
Mestre em Educação pelo PPGEduc/ UFRRJ e Membro do Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura.
No dia 24 de maio de 2023, um fenômeno assombroso pousou sobre diversos perfis no Instagram. Em um movimento de indignação, diversos perfis do ativismo preto, se posicionaram contra o jogo hospedado no Play Store, loja de aplicativos do Google, cujo nome é “Simulador da Escravidão”.
Figura 1: Play Store
Fonte: Google Store.
Neste movimento, no transcorrer do avanço das denúncias, perfis como Quilombo Periférico, Pretos em Conexão, Joaoseupimenta, apresentaram críticas e mobilizaram seus seguidores para fortalecer a engajamento em prol da denúncia do jogo. Uma onda de solicitações tomou conta das redes, forçando ao Ministério Público Federal um pronunciamento, visando a instauração de procedimento para apurar a disponibilização pela Play Store. Em uma grande orquestra contra o racismo, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) emitiu uma nota oficial repudiando a manutenção do jogo na plataforma Google.
Enquanto a notícia se espalhava, muito políticos e entidades da sociedade civil, impetraram ações judiciais, que visavam a apuração urgente da referida situação, como é o caso da vereadora Thais Ferreira (PSOL), mulher preta, que entrou com uma representação no Ministério Público contra o Google, que mantinha o jogo em sua loja de aplicativos.
“Com profunda consternação e indignação que tomamos conhecimento da existência desse jogo, que promove a banalização e a apologia à violência e à desumanização vivenciadas por milhões de pessoas que foram escravizadas ao longo da história. Essa forma de entretenimento é extremamente ofensiva e reforça estereótipos racistas, causando danos emocionais e perpetuando a opressão enfrentada pelas pessoas negras até os dias de hoje”. (Thais Ferreira, vereadora do PSOL)
O jogo online “Simulador da Escravidão”, foi produzido pela empresa de entretenimento MagnuGames, cuja proposta, era de simular ser um proprietário de escravos, promovendo a produção de lucro sobre suas vendas, construindo estratégias para aprisionamento dos escravos, permitindo que o usuário simulasse dinâmicas de violências e torturas.
Mesmo não sendo adepto a jogos online, imediatamente, fiz o download do jogo, fomentando ainda mais o seu algoritmo, porém o meu olhar para este fenômeno era de um pesquisador preto, LGBTQIA+, indignado com toda a inquietude que rondava as redes e meus coletivos, assim como, despontava o meu desejo em escrever urgentemente sobre este caso.
Uma das minhas primeiras ações no jogo foi buscar informações que me fornecesse subsídios para entender a idealização do projeto, momento em que me deparei com a seguinte descrição:
Figura 2: Play Store
Fonte: Google Store.
“O melhor simulador de proprietários de escravos”, destaca a proposta de criação de jogo. Mediante tal fato, precisamos destacar que na história social do Brasil, carregamos um legado de 300 anos de escravidão, fato que justifica um designer de jogos, anônimo, simular, hoje, esta atrocidade. Continuo dizendo que o Brasil, foi o último país das Américas, a abolir, com muitas aspas, a escravidão.
Simulações racistas como estas, afirma e naturalizam atitudes enviesadas pelo racismo, fortalecendo a existência do apartheid, política estatal de segregação racial imposta na África do Sul, que separava o país entre brancos e negros, criando profundamente no inconsciente coletivo da sociedade brasileira um pensamento que marginaliza as pessoas negras, impedindo-as de alcançar sua plena cidadania.
Hoje compreendemos que essa naturalização de ações, hábitos, situações, discursos e pensamentos já enraizados na vida cotidiana do povo brasileiro promovem, de forma direta ou indireta, a segregação e o preconceito racial. Trata-se, portanto de um processo que afeta de maneira intensa e constante a população negra, os quais denominados racismo estrutural.
Silvio Almeida, em seu livro Racismo Estrutural, parte do princípio de que o racismo é sempre estrutural, ou seja, integra a organização econômica e política da sociedade de forma inescapável. Para o autor, advogado e estudioso da teoria social, “racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade”. Destaca ainda, que o racismo, afirma, fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea.
O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição. (ALMEIDA, 2020, p.50).
Então, por que essa discussão é importante? As autoras Maristela Midlej Araujo Veloso, Edméa Oliveira dos Santos e Kathia Marise Borges Sales, em seu recente artigo denominado “O Racismo Cotidiano: um caso de Pesquisa Etnográfica na Cibercultura”, analisam sob a luz da etnografia casos de racismo cotidiano que mobilizaram a mídia e todos seus mecanismos, em prol dos debates perante as questões do racismo. As questões raciais são fundamentais nos círculos de debates sociais, pois nossas subjetividades, incluindo nossos preconceitos, de alguma forma podem ser potencializadas através de uma teoria denominada viés de confirmação, onde tudo que é dito, se torna verdade.
Vejamos na imagem a seguir, um os trechos que fundamenta a existência do referido jogo:
Figura 3: Play Store
Fonte: Google Store.
Temos dentro do jogo, três tipos de escravos: trabalhadores que visam a produção do capitalismo, os gladiadores que são utilizados para romper com a lógica de poder do próprio escravo, ou seja, escravo tomando conta de escravo e os tipos de prazer, que servem para a satisfação de seus proprietários. Destacamos aqui a relação entre proprietário e propriedade, um viés de confirmação estabelecido pela subalternidade.
As pessoas pretas ocuparam e ainda ocupam na estrutura social lugares de extrema subalternidade e abjetificação. O corpo preto ocupa um não-lugar pelo simples fato de existir, portando, dispositivos racistas como estes, se apropriam de uma condição história para evidenciar um racismo lúdico, definido por Djamila Ribeiro e Adilson Moreira, como racismo recreativo.
Figura 4: Play Store
Fonte: Google Store.
De acordo com Moreira (2019, p. 62) “por esse motivo, o humor não pode ser reduzido a algo independente do contexto social no qual existe. A produção do efeito cômico depende dos significados culturais existentes nas mensagens que circulam nas interações entre os indivíduos. Ele é, portanto, um tipo de mensagem que expressa o status cultural de que as pessoas gozam em uma determinada comunidade”.
Dialogando com o que Adilson Moreira apresenta em seu livro, Racismo Recreativo, é muito importante observar que os estereótipos descritivos e prescritivos expressos em piadas racistas são produto de percepções que naturalizaram a condição inferior do negro na nossa sociedade. Corroboramos, portanto, com as descrições estereotipadas e prescritas sobre os negros, se condensam na construção deste game.
Racismo e entretenimento se juntam para organizar um dispositivo que potencialmente irradiará o algoritmo racista e fomentará a organização formal de grupos descontextualizados do seu tempo. Lamentavelmente, essa exclusão não se limita apenas ao mundo físico. De acordo com o instituto SaferNet, uma ONG que defende os direitos humanos, o racismo é a principal causa de denúncias na web, resumidamente, o racismo encontrou uma nova forma de disseminação: o digital.
Dessa forma, Moreira (2019, p. 66) destaca que dizer que o racismo recreativo é um tipo de política cultural significa reconhecer seu caráter discursivo, implica a necessidade de examinarmos os processos responsáveis pela produção das representações derrogatórias sobre minorias raciais.
Durante a evolução de downloads do dispositivo racista recreativo, até a manhã do dia 24 de maio, o game tinha sido baixado por mais de mil usuários, mantendo assim, uma avaliação no app, que registrava uma nota 4,0, e a composição de mais de 70 opiniões. Uma das fórmulas de satisfação do cliente, produzidas pelo algoritmo, é buscar entender a opinião dos usuários através da metrificação por estrelas, que se estabelecem em uma linha de critérios de uma a cinco estrelas.
Em meio a tantas opiniões, buscamos destacar a relevância de informações abaixo da métrica cinco, pois nos releva a conscientização racista dos jogadores. Vejamos, assim na imagem a seguir, que um dos jogadores atribuiu média três, justificando que o jogo precisa de melhorias, entre elas, a adição de pontos de felicidades aos proprietários dos escravos.
Figura 5: Play Store
Fonte: Google Store.
Destacamos a seguir, outro jogador que a partir da métrica de cinco estrelas, nota máxima na avaliação, afirma que se trata de um jogo educativo.
Figura 6: Play Store
Fonte: Google Store.
Para além das pontuações sobre letramento crítico racial, que iremos discutir mais a frente, precisamos destacar o que se encontra intrínseco na frase “jogo muito educativo”, visto que se trata de um olhar que referencia a educação para o racismo e não antirracista. Compreendo que romper com as estruturas sociais, é um processo lento e de conscientização, porém naturalizar o racismo nos coloca em uma posição ainda mais desfigurada socialmente. A frase em questão tem como objetivo estigmatizar, selecionar e marcar um inimigo, buscando manter ou alterar uma determinada situação, fundamentando-se na segregação. Para atingir esse propósito, o usuário racista se utilizou de uma linguagem simples, mas que potencialmente, articula um meio de opressão.
Na figura a seguir, o “show racista” continua, principalmente porque a partir da opressão, o jogador aciona outro dispositivo de dor e sofrimento da população preta, que conhecemos como tortura.
Figura 7: Play Store
Fonte: Google Store.
Muitos são os questionamentos a respeito da construção deste game, entre eles, ponderações que perpassam os critérios judiciais para atos racistas públicos, estruturação de políticas efetivas para combate ao racismo cibernético, construção de campanhas de conscientização empresarial, assim, como banimento e punição para empresas que permitam a propagação de atos e atitudes racistas, por parte de seus usuários.
Ao final do dia 24 de maio, a empresa Google emite um posicionamento, vejamos:
“O aplicativo mencionado foi removido do Google Play. Temos um conjunto robusto de políticas que visam manter os usuários seguros e que devem ser seguidas por todos os desenvolvedores. Não permitimos apps que promovam violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica, ou que retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas. Qualquer pessoa que acredite ter encontrado um aplicativo que esteja em desacordo com as nossas regras pode fazer uma denúncia. Quando identificamos uma violação de política, tomamos as ações devidas”.
O racismo presente na internet, englobando todos os ambientes online onde ocorre interação entre pessoas, como jogos, fóruns, redes sociais ou blogs, é algo que pode ser testemunhado por qualquer pessoa nos dias de hoje. É notável como uma ideia de superioridade racial atravessa fronteiras e se concretiza em apenas um clique. Poderíamos então, falar da relação da internet e proliferação do debate sobre a construção de algoritmos racistas, refletindo sobre os vieses racistas construídos a partir da manipulação algorítmica.
A partir do olhar do pesquisador Tarcízio Silva, precisamos avançar em importantes questionamentos, como: Mas e o que acontece quando as máquinas e programas apresentam resultados discriminatórios? Seriam os algoritmos racistas? Ou trata-se apenas de erros inevitáveis? De quem é a responsabilidade entre humanos e máquinas? E o que podemos fazer para combater os impactos tóxicos e racistas de tecnologias que automatizam o preconceito?
Em sua obra Racismo Algorítmico, Tarcízio Silva, revela que o tema se tornou um conceito relevante para entender como a implementação acelerada de tecnologias digitais emergentes, que priorizam ideais de lucro e de escala, impactam negativamente minorias raciais em torno do mundo. Quando algoritmos recebem o poder de decidir – a partir dos critérios de seus criadores – o que é risco, o que é belo, o que é tóxico ou o que é mérito, os potenciais discriminatórios se multiplicam.
Portanto, racismo algorítmico, é o modo pelo qual a disposição de tecnologias e imaginários sociotécnicos em um mundo moldado pela supremacia branca realiza a ordenação algorítmica racializada de classificação social, recursos e violência em detrimento de grupos minorizados. Tal ordenação pode ser vista como uma camada adicional do racismo estrutural, que, além do mais, molda o futuro e os horizontes de relações de poder, adicionando mais opacidade sobre a exploração e a opressão global que já ocorriam desde o projeto colonial do século XVI (SILVA, 2022, p.69)
Embora um jogo online em si não promova diretamente um algoritmo racista, certo elementos presente nos jogos podem contribuir para a perpetuação de preconceitos raciais por meio do uso de algoritmos. Por exemplo, os algoritmos podem ser usados para gerar automaticamente personagens não jogáveis ou controlar o comportamento dos personagens controlados pelo computador.
Para tanto, visando romper com a estruturação racista, recreativa, estrutural e algorítmica do racismo, precisamos nos tornar antirracistas, e compreender a importância do letramento racial para a construção de espaços de acolhimento e proteção para a comunidade preta. Edmea Santos, em sua notícia, “Para sermos antirracistas, não precisamos mudar de cor. Sejamos nós mesmos!”, destaca que os processos de escravização são fenômenos das gentes. O hegemônico tem cor de pele, classe social e sexualidade definida pelas genitálias. O hegemônico é “branco, macho e cristão”, e suas histórias de privilégios, legitimadas pelo racismo estrutural, ganham formas de atos.
A partir da afirmação da existência do corpo preto, precisamos mobilizar ambiências e saberes que sejam capazes de promover o letramento de outros corpos. Destaco como parte deste letramento, corpos outres, trans/travestis LGBTQIA+, mulheres, crianças, dentre tantos outros que vivem ocupando não-existências e entre-lugares, e que estão representados em minha dissertação de mestrado, Currículo Ciberqueer: autorias LGBTQIA+ na cibercultura.
Corroboro quando Edmea Santos, em seu texto-notícia, destaca que através de corpos diversos, precisamos construir uma noção de grande circulação na atualidade, fundamentada na interseccionalidade. Não é possível descolonizar sem combater de frente o racismo, letrando a todas, todos e todes. A professora Aparecida de Jesus Ferreira, importante teórica do letramento racial crítica, destaca em seu texto “Letramento Racial Crítico: falta representatividade negra em materiais didáticos e na mídia” que a partir do letramento precisamos refletir sobre raça e racismo, e nos possibilita ver o nosso próprio entendimento de como raça e racimo são tratados no nosso dia a dia, e o quanto raça e racismo têm impacto em nossas identidades sociais e em nossas vidas, seja no trabalho, no ambiente escolar, universitário, em nossas famílias, nas nossas relações sociais. [...].
Diante disso, proponho exercitarmos as nossas atitudes, ampliando repertórios para mais letramentos críticos, construindo uma rede de afetos antirracistas, apropriando de leis e regulamentos de proteção e direitos, promovendo a cultura negra e história preta no currículo, denunciando atos racistas e buscando sempre, romper com práticas racistas em nossa comunidade.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020
FERREIRA, A. de J. Letramento Racial Critico Através de Narrativas Autobiográficas: Com atividades Reflexivas. Ponta Grossa, Pr: Editora Estúdio Texto, 2015.
MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2019
SILVA, Tarcízio. Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc, 2022.
SANTOS, Edméa. Para sermos antirracistas, não precisamos mudar de cor. Sejamos nós mesmos! Notícias, Revista Docência e Cibercultura, setembro de 2022, online. ISSN: 2594-9004.
VELOSO, Maristela Midlej Araujo; SANTOS, Edméa Oliveira dos Santos; SALES, Kathia Marise Borges. O racismo cotidiano: um caso de pesquisa etnográfica na cibercultura. Revista Periferia, v. 15, p. 1-24, 2023.
Prints do Jogo “Simulador de Escravidão” realizados durante manipulação do autor no dia 24 de maio de 2023.
Como citar este artigo:
CORADINI, Fábio dos Santos. Simulador da escravidão: um dispositivo racista recreativo, estrutural e algorítmico. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, maio de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias:
Felipe Carvalho - Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá (PPGE/UNESA)
Edméa Santos - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Rural (PPGEDUC/UFRRJ)
Marcos Vinícius Dias de Menezes - Graduando em Letras - Português, Inglês e Literatura em modo de licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Bolsista de Iniciação Científica na FAPERJ
Mariano Pimentel - Professor do Programa de Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGI/UNIRIO)