Feminismos exclusivos ou excludentes?

2023-01-12
Por Bruna Benevides
Travesti Feminista e Militar antifascita. Secretária de articulação política da Associação nacional de travestis e Transexuais (ANTRA). Coordenadora da clínica jurídica LGBTQIA+ na Universidade Federal Fluminense. Coordenadora adjunta do Projeto Resistência Arco-Iris e Projeto TransFormação pelo DIHS-ENSP/FIOCRUZ. Responsável pela pesquisa anual sobre violência contra a população  Trans brasileira e pesquisadora sobe pessoas trans nas eleições e violência política. Coordenadora do pré-vestibular social Preparanem Niterói. Eleita uma das 100 mulheres pioneiras na liderança política pela Woman of the world e vencedora do Prêmio faz diferença do Jornal o Globo..Por Sara Wagner York
Ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior, pessoa com deficiência visual. É doutoranda e mestra em Educação (UERJ - com bolsa CNPq e CAPES), Especialista em Gênero e Sexualidades e Especialista em Orientação Escolar, Supervisão Escolar e Inspeção Escolar. Graduada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas e Jornalismo, é considerada a primeira âncora do jornalismo brasileiro através da mídia TV Brasil247. Voluntária na ONG Britânica Sahir House no Reino Unido (2011/2012). Recebeu a Medalha ALUMNI da Universidade Estácio de Sá (2017) Articuladora - ANTRA e da Rede Campanha Pelo Direito à Educação. Membro do Comitê Científico de Acessibilidade da ANPED. Segunda secretária financeira da ABETH – Associação Brasileira de Estudos da Homo Trans Cultura.  Membro cofundadora da CIPAAI - Câmara de Implementação de Políticas Afirmativas Antirracistas e Interseccionais da UERJ.

 

Mulheres negras, principalmente as feministas negras já apontavam para o fato de não serem vistas como mulheres (HOOKS, 2014) um exemplo clássico está na própria história de Sojourner Truth (1797 – 1883) ao questionar o sistema de sua época “se acaso ela não seria mulher? Truth é um desses símbolos de luta em vários sentidos, o próprio nome foi uma autodeterminação – já comumente usado por pessoas cisgêneras, direito que foi conquistado recentemente pelas pessoas trans. Quem está validada a ser chamada “mulher” quase 150 anos após a sua morte? Nesse mesmo sentido vemos a negação da mulheridade de travestis e mulheres trans, para ainda serem movidos esforços que tentam responsabilizá-las pelas opressões praticadas pelos sistemas dominados por homens cisgêneros. Judith Butler, cujo gênero foi retirado dos seus documentos pessoais como forma de reivindicar não loci a partir do que há entre suas pernas perguntava em “Problemas de Gênero” seu livro de 40 anos “quem é o sujeito do feminismo?” e se seria “possível, pensar de forma categórica e universalizante em ‘mulher’?”

Os movimentos feministas precisam dar um próximo passo quando o assunto são mulheres trans e travestis e o patriarcado, e assumir o compromisso em defender a vida e os direitos de mulheres trans/travestis é um deles. É urgente estarmos atentas a ouvir o que pensadoras e pesquisadoras transfeministas tem produzido e que podem nos ajudar a compreender como a violência de gênero, o patriarcado e o machismo alcançam a vida e as experiências de diversas mulheres invisibilizadas, entre elas as mulheres trans, sem que isso seja algo que deva ser usado para negar ou dizer que são exatamente as mesmas opressões que mulheres cis enfrentam.

Travestis e mulheres trans enfrentam diversas questões, e muitas não apenas iguais em alguns aspectos e similares em outros, mas incluem outras também específicas e cruéis motivadas pelo fato de o gênero feminino que se reconhecem ser diferente daquele que foi designado ao nascer. Sem que isso represente que essas violências não sejam motivadas pelo seu gênero.

A Genitalização do gênero ou o essencialismo de gênero estruturados no binarismo do século XVIII em nada contribui para a luta feminista. Já vimos ao longo da história os perigos de organizar mulheres e homens, brancos e negros, hetero e homo a partir de critérios biológicos ou corporais, e os resultados foram todos desastrosos não só para a mulheres, mas para história recente da humanidade frente ao holocausto  –movimentos que encontraram razoabilidade nas ideias médico-científicas de outrora à la Robert Knox (1791-1862) e Cesari Lombroso (1835 -1909).  Knox em The races of man (As raças humanas, de 1840) diz: “…Que a raça decida de tudo nos negócios humanos é simplesmente um fato (...) A raça é tudo: a Literatura, a Ciência, a Arte [...] a civilização dela depende”. O que ele chamava de raça excluía todas as formas não saxônicas e pensava no pós-morte branco, já que seu mundo era composto por brancos.

Inclusive para que possamos romper com a ideia que tenta aprisionar pessoas em conceitos universalizantes e mulheres em uma mulheridade universal, que apaga subjetividades e posiciona todas em igualdade, um simulacro. Especialmente em razão da forma que essa discussão vem sendo feita, operando junto a transfobia e os estereótipos negativos contra pessoas trans, parte da premissa que mulheres trans não são mulheres e que por isso não deveriam ocupar espaço no feminismo(sic).

O que por si já seria motivo suficiente para não ser aceito como uma teoria feminista. Visto que a partir desse entendimento tem sido produzidas inúmeras violências como pode ser visto até aqui. Contribuindo ainda com o estigma de que pessoas trans seriam violentas, por supostamente terem sido socializadas como homem (sic), criando um ideal de ser trans cristalizado e único, o que ignora todas as experiencias e a própria noção de interseccionalidade tão defendida pelos feminismos progressistas. Não é sobre atravessar o rio, mas sobre as possibilidades de trânsito sobre ele, como adverte Alzanduá.

E são esses, dentre outros tantos absurdos, que permitem que essa narrativa violenta ganhe espaço entre grupos feministas e progressistas. Acontece que a suposta "socialização masculina" mencionada por feministas transexcludentes não traz quaisquer vantagens a mulheres trans, muito pelo contrário, impõem diversas violências e violações, dentre elas violências psicológicas, simbólicas e patrimoniais, estupro - inclusive corretivo, tentativas de aniquilações das subjetividades não normativas, expulsões de casa e até mesmo o assassinato.

Utilizar a justificativa de supostas pautas exclusivas de mulheres cis para tentar defender a segregação de espaços femininos, limitando o acesso de mulheres trans a esses espaços é, acima de tudo, uma atitude altamente antifeminista. Principalmente porque estas não são as responsáveis pelo processo de subalternização de mulheres cisgenêras e tem muitas contribuições a serem introduzidas nos feminismos, especialmente quando pensamos na criação de espaços seguros para todas as mulheres e a possibilidade de alianças com outras sujeitas “não-mulheres”.

A luta feminista sem travestis e mulheres trans, sem mulheres cis negras e sem alianças entre nós fortalece unicamente o poder hegemônico que põe todas as mulheres em subalternidade e risco.

O quadro ajuda a organizar alguns paralelos entre as experiências, violências e desigualdades enfrentadas por mulheres, cis e trans, a fim de ilustrar como afetam ou impactam nossas realidade. Nessa discussão devem ser consideradas ainda questões de classe e raça, que irão impactar em como mulheres, cis e trans, são afetadas por essas opressões:

 

Tipos de opressão

Mulheres Cis

Mulheres trans

É inferiorizada/subestimada intelectualmente

x

x

Enfrenta sub-representação na política e em espaços de poder

x

x

Vive com a hiperssexualização e objetificação de seus corpos

x

x

Sofre pressão para a reprodução de estereótipos de gêneros

x

x

É vítima de violência doméstica

x

x

Enfrenta risco de assassinada em decorrência do seu gênero

x

x

Tem a maior parcela do seu grupo atuando na prostituição

-

x

Não são recebidas como mulheres em diversos espaços

-

x

São impedidas de acessar ou são expulsas de espaços destinados ao gênero feminino

-

x

Tem dificuldade no acesso a saúde, inclusive a saúde específica corporal

x

x

Pode ser vitima de violência psicológica e física em relações afetivas

x

x

Sofre assédio sexual e moral em ambientes laborais

x

x

É vítima de violência em decorrência do seu gênero

x

x

Pode ser vítima de violência obstétrica

x

-

Acumula tarefas domésticas e cuidados com a casa

x

x

Faltam referências de sucesso na carreira ou em posições de liderança

x

x

Tem baixa representatividade positiva na mídia

x

x

Tem negada autonomia sobre o próprio corpo

x

x

Tem leis específicas de proteção a violência e para a garantia de direitos

x

-

Pode sofrer com a pobreza menstrual

x

-

Sofre os impactos da criminalização do aborto

x

-

Muitas vezes é presa em decorrência de atividades ilícitas do parceiro

x

x

Quando presas tem sua identidade negada sendo enviadas para unidade masculina

-

x

São expulsas de casa por se reconhecerem como mulheres

-

x

Podem ser vítimas de estupro (incluso corretivo)

x

x

Podem gestar e ter filhos naturalmente na grande maioria

x

-

Pode ser mães e constituírem-se como chefes de família

x

x

Podem fazer uso de hormônios

x

x

Devido a pressão estética podem realizar  por procedimentos de afirmação de gênero

X

x

Podem amamentar

x

X

 

Obviamente que essa lista não se trata de hierarquizar opressões, assim como existem muitos outros exemplos possíveis, e o que pretendemos com esse texto é refletir sobre quais as aproximações podemos fazer enquanto mulheres, cis e trans/travestis, inclusive considerando a possibilidade de contribuir com pautas que não são especificamente nossas, mas com a intenção de fortalecer mutuamente a luta das mulheres e produzir ganhos aos feminismos. Afinal, vale a máxima que não se precisa ser trans para lutar contra a transfobia, e vice-versa no causo de pautas que não sejam efetivamente uma luta pessoas trans (quais?).

A maternidade, por exemplo, não é uma pauta antagônica a luta trans e nem tampouco exclusiva de mulheres cis. Muitas travestis e mulheres trans são mães e tem constituído famílias  que precisam ser reconhecidas como parte da luta pela maternidade plena, assim como a defesa de meninas e mulheres, por exemplo. Seriam os direitos sexuais e reprodutivos reivindicados por mulheres cis, de fato exclusividade delas? É quase impossível afirmar pelo menos um deles que não seja compartilhado com outros corpos daqueles alocados como não-mulheres em alguns discursos. Afinal, quem tem vagina ou sistema reprodutor designado como sendo (endosexo e/ou diático[1]) feminino, podem ser (a partir da ADI 4275/2018) homens, pessoas transmasculinas, homens trans, pessoas não binárias e/ou até mesmo Intersexo.

Aliás, quais seriam exatamente as pautas exclusivas de mulheres cisgenêras e quais riscos estariam postos ao compartilhar espaços com mulheres trans? Elas realmente existem ou fazem parte de um apego a uma categoria biologizada e pensada por elementos de outros tempos? Que são automaticamente excludentes daquelas pessoas que não são mulheres, mas que tem útero, podem gestar, menstruam, etc? Afirmar a existência de pautas exclusivas a corpos com vagina e/ou útero é acima de tudo promover a violência do apagamento sobre corpos trans e direcionar essas pessoas à ausência do cuidado, à invisibilidade, à impossibilidade de acesso à saúde, assim como à morte social e até mesmo ao suicídio.

Acreditamos que buscar em 2023 o “sexo dos anjos” numa escala binária tornou-se uma uma discussão contraproducente para a luta das mulheres. Estabelecer e coadunar com a manutenção de um ideal de mulher verdadeira (sic) ou biológica(sic) para sustentar uma segregação histórica entre nós, mais se assemelha a um ideal de “raça pura”, que apaga identidades e corporalidades diversas apenas pela defesa de uma subalternidade que está muito mais ligada ao gênero do que a fatores biológicos, anatômicos e/ou genotípicos.

É importante ressaltar que homens trans, pessoas transmasculinas, não binárias e/ou Intersexo são pessoas que, providos de útero, podem vir a engravidar, menstruar, gestar, conceber ou abortar. E necessitam estar inseridos nas discussões sobre o acesso a saúde sexual e reprodutiva, assim como na garantia do enfrentamento da pobreza menstrual, ainda que sejam homens.

A menstruação, por exemplo, é uma função biológica, e não é uma “coisa inerente ao ser mulher”. É uma experiência que pode ser altamente variável e significar reações diferentes para diferentes pessoas. Não é necessário diferenciar partes do corpo ou funções corporais. Podemos desmistificar e desestigmatizar a menstruação sem excluir ninguém. Entendemos que a busca por um direito não anula outro.

Nossos corpos ou suas funções não determinam nossas identidades e somos muito mais do que meros corpos. Somos seres complexos e o cuidado em saúde deve contemplar nossa integralidade enquanto sujeitos. A subalternidade alcança mulheres de diferentes formas e é um grande desafio para um feminismo – encaixotado - enxergar a subalternidade das mulheres trans sem hierarquizar a dor que sentimos.

E nesse sentido, as contribuições transfeministas não podem ser vistas como uma ameaça ou antagônicas a qualquer outra teoria ou espaço feminista ou de mulheres, como fizeram com o feminismo negro. A identidade de gênero feminina de travestis e mulheres trans não deveria sequer deveria ser assunto de discussão, especialmente no feminismo. Deveríamos mesmo era discutir formas de enfrentar juntas a violência de gênero, o cissexismo, a transfobia, a misóginia, o racismo e os desafios de ser mulher em uma sociedade machista, racista, colonial, neoliberal e patriarcal. A quais interesses atende essa exclusão? Mulheres trans são um problema real às mulheres cis ou isso é mais um espantalho que pretende criar segregacionismos nos feminismos?

 

REFERÊNCIAS:

Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Editora José Olympio, 2018.

Collins, Patricia Hill. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. Boitempo Editorial, 2022.

Anzalduá, Gloria; MORAGA, Cherríe. This bridge called my back. Writings of Radical Women of, 1981.

Moreira, Martha Cristina Nunes et al. Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, p. 3949-3958, 2022.

Sidoti, Francesco, and Maria teresa Gammone. "The Lombroso biologism: a centenary of controversies." Salute e società 2010/En3 (2010).

 Vicente, André Luíz Coutinho, et al. "LINGUAGEM INCLUSIVA DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO." Diversidade e Educação 10.1 (2022): 251-276.

BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. Visibilidade trans 2022: estigmas e mitos ainda persistem no feminismo. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Acesso em: 11/01/2023.

Truth, Sojourner. ¿ Acaso no soy una mujer?. Editorial Galerna, 2021.

YORK, S; CUNHA, N. Vácuo cis e a emergência trans. Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo 2020. Acesso em 11/01/2023.


[1] Tanto a endosexualidade quanto a diaticidade são dois conceitos relacionais que de modo breve se apresentam como antogônicos à intersexualidade. Estimativa ONU/OMS sugere algo em torno de 1,7% de pessoas Intersexo em todo mundo. Somente no Brasil o número alcançaria algo em torno de mais de 2.8 milhões de pessoas, cujo a grande maioria desconhece o próprio mapeamento genético hormonal.

 

Como citar este artigo:

BENEVIDES, Bruna; YORK, Sara Wagner. Feminismos exclusivos ou excludentes? Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel