Visibilidade trans 2022: estigmas e mitos ainda persistem no feminismo

2022-01-22
Por Beatriz Pagliarini Bagagli
Tem mestrado em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e atualmente é doutoranda em linguística pela mesma instituição. Integra o grupo de pesquisa Mulheres em Discurso, liderado pela professora Mónica Zoppi Fontana. Membro da Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (ABRASITTI); escreve para o transfeminismo.com e TransAdvocate Brasil. Pesquisa na área de análise do discurso temas referentes à subjetividade transgênera, a compreensão do sofrimento psíquico, corporalidades e feminismo radical trans-excludente.

Janeiro é referenciado como mês da visibilidade trans, momento em que buscamos evidenciar os movimentos de luta por cidadania da população travesti, transexual e transgênera. Infelizmente, estigmas e mitos a respeito da nossa população persistem e são reiterados muitas vezes em nome do movimento feminista, sobretudo pelo assim chamado feminismo radical trans-excludente (referenciado usualmente como “radfem” ou TERF). Pretendo neste breve texto abordar alguns dos principais mitos ou erros que esta corrente ainda perpetua sobre mulheres trans e travestis.

Ainda hoje encontramos pessoas que se reivindicam feministas radicais que insistem na invalidação das identidades trans. Reiteram o senso comum de que mulheres trans não podem ser “verdadeiras” mulheres em razão dos seus corpos serem categorizados pelo senso comum e pelo discurso biomédico como masculinos. Há, neste caso, a premissa de que mulheres trans estariam negando a realidade de seus corpos caso se reivindiquem enquanto mulheres. Acho válido explicar porque isso é equivocado.

Para um leitor já atento às questões e discussões transfeministas pode parecer redundante ou óbvio, mas é preciso ser dito explicitamente: mulheres trans e travestis simplesmente não estão reivindicando terem órgãos reprodutivos que não possuem quando reivindicam serem socialmente reconhecidas como mulheres ou travestis, tampouco estamos delirando, inventando e mentindo sobre o que somos ou sobre o que nos identificamos.

Quando alguém busca defender que uma mulher trans não pode ser reconhecida como mulher por uma “simples” questão do “real significado das palavras” ela está fazendo na verdade uma escolha e tomando uma posição que desconsidera os reais motivos que levam a população trans a reivindicar a autenticidade de suas identidades de gênero, assim como as implicações sociais (como discriminação, rejeição e exclusão) que decorrem do fato de suas identidades não serem eventualmente reconhecidas. Errar propositalmente o gênero de pessoas trans em nome da ciência ou da objetividade científica é igualmente errado. Para Zinnia Jones, trata-se neste caso de apenas mais uma desculpa esfarrapada no interior de uma disputa sobre a própria validade das identidades de gênero das pessoas trans.

Julia Serano observa que quando algumas feministas cis (especialmente as radfems) focalizam reiteradamente a sua retórica por meio da repetição da premissa de que "um homem não pode ser ou se entender enquanto mulher", ignora-se ou minimiza-se as nossas próprias experiências concretas e específicas enquanto mulheres trans e travestis em sociedades cisnormativas. Quando dizemos que “mulheres trans são mulheres” não estamos buscando dizer que nós mulheres trans ou travestis somos idênticas às mulheres cis, que enfrentamos os mesmos problemas sociais ou que temos os mesmos corpos que as mulheres cis - ao contrário do que comumente supõem ou mesmo afirmam as radfems. Questionamos a invalidação da identidade de mulheres trans e travestis para justamente mostrar que mulheres cis não estão expostas aos mesmos tipos de invalidações que mulheres trans e travestis estão expostas e que estamos inseridas, de fato, em questões e vivências específicas que decorrem do fato de vivermos em uma sociedade profundamente cisnormativa.

Reconhecer isso não significa considerar que um grupo seja mais importante que o outro ou que não existam diferenças no interior do próprio grupo de mulheres trans e cis. Falar sobre o que nos diferencia também é falar sobre o que nos une tendo em vista um objetivo comum de combater as opressões de gênero. É necessário reconhecer as muitas similaridades entre mulheres trans e cis que revelam a importância do estabelecimento de políticas de coalizão com o objetivo de combater diversos inimigos em comum: o sexismo, a violência de gênero, os estigmas machistas a respeito das feminilidades, a sexualização, a culpabilização da vítima, a falta de representatividade em cargos políticos e no mercado de trabalho, precariedade de políticas de saúde, etc.

Falar sobre o que nos diferencia é falar sobretudo sobre experiências que nos diferenciam no interior do próprio grupo o qual fazemos parte: a minha experiência de vida enquanto mulher trans branca universitária e que foi aceita pelos pais difere daquela experiência de vida  da mulher trans negra que foi expulsa de casa e da escola. Serano pontua nesse sentido que talvez a única coisa que une as mulheres trans seja o fato de que a nossa identidade de gênero não coincidiu com o gênero assignado ao nascimento.

Retomando ainda a questão dos corpos e da definição de gênero, Jones nos lembra que pinçar certas características corporais em comum entre mulheres trans e homens cis, por exemplo, deveria ser simplesmente irrelevante se formos discutir se mulheres trans podem usar os banheiros femininos ou se podem ter suas identidades reconhecidas socialmente e juridicamente. Defender que mulheres trans não devem deixar de serem compreendidas como mulheres em razão de critérios biológicos não significa ignorar a biologia ou as implicações biológicas dos corpos. Significa apenas constatar que, na maior parte das nossas interações sociais cotidianas que envolvem gênero, os aspectos biológicos dos nossos corpos são simplesmente irrelevantes ou mesmo desconhecidos (ao interagir com uma pessoa você não deve, não pode ou simplesmente não precisa inferir ou imaginar se ela tem um pênis ou uma vagina). No entanto, no senso comum e no discurso radfem ainda é usualmente comum a utilização da biologia para negar o reconhecimento da autenticidade das identidades trans.

A propagação do imaginário de que mulheres trans sejam homens e, particularmente, “predadores sexuais em potencial”, faz um efeito ainda devastador sobretudo quando se tematiza o uso do banheiro feminino por mulheres trans e travestis. Ainda hoje vemos inúmeras pessoas defendendo a expulsão de mulheres trans de banheiros femininos e de fato casos efetivos de constrangimento e expulsão ainda ocorrem. Tais acontecimentos impactam diretamente no acesso a direitos fundamentais para a população trans - pois simplesmente não é possível acessar educação, saúde, moradia e trabalho quando inúmeras pessoas assumem que o mero acesso e presenças em banheiros públicos representa uma ameaça a outras pessoas. Pessoas trans são simplesmente demonizadas quando se assume que a nossa presença representa uma ameaça às demais pessoas.

A ideia tão propagada pelo feminismo radical trans-excludente de que o movimento de mulheres trans é irreconciliável e antagônico com o movimento de mulheres cis é exemplificado na “discussão do banheiro” pelo seguinte raciocínio: mulheres trans e travestis demandam o uso do banheiro feminino; essa demanda representa uma ameaça à segurança das demais mulheres; “logo” o movimento trans é inimigo dos direitos das mulheres cis.

No entanto, tal raciocínio é falacioso, pois justamente a presença de mulheres trans e travestis em banheiros femininos não acarreta em uma ameaça à segurança das mulheres cis. Em primeiro lugar, não existem evidências de que políticas trans-inclusivas tenham aumentado o número de crimes em banheiros femininos em qualquer lugar do mundo. Assumir qualquer relação causal entre a presença de pessoas trans em banheiros e crimes em banheiros é simplesmente falso e desonesto. Em segundo lugar, tal raciocínio só pode fazer sentido a partir da adoção tácita de diversas premissas transfóbicas, tais como as de que mulheres trans são “verdadeiramente” homens que não precisariam ser “protegidas” da mesma forma que mulheres cis são pretensamente “protegidas” em banheiro femininos (quando na verdade temos inúmeros dados que mostram que são as mulheres trans e travestis que enfrentam inúmeras violências concretas nestes espaços).

Ainda é extremamente recorrente, no meio radfem, a ideia de que mulheres trans ou travestis reproduzem estereótipos de gênero. Esta ideia se articula intimamente com a deslegitimação da identidade trans, pois ela se baseia pela premissa de que mulheres trans ou travestis sejam "verdadeiramente" homens e que suas identidades femininas sejam uma forma caricatural de imitar as mulheres "verdadeiras". Além de se basear em uma perspectiva estigmatizante a respeito da transfeminilidade, a "acusação" de reprodução de estereótipos ignora a multiplicidade de expressão de gênero entre as próprias mulheres trans e travestis e os reais motivos pelos quais as pessoas trans podem expressar mais enfaticamente o seu gênero com o objetivo de contornar a invalidação cisnormativa de nossas identidades. Além disto, é bastante importante denunciar o raciocínio falacioso decorrente deste discurso segundo o qual mulheres trans e travestis defenderiam valores reacionários pelo fato de reproduzirem os tais pretensos estereótipos de gênero. A falácia deveria ser evidente, pois mobilizar uma expressão de gênero vista como estereotipada não implica na defesa de que todas as mulheres deveriam fazer o mesmo, mas tal raciocínio falacioso muitas vezes se expressa implicitamente no discurso radfem.

A própria sexualidade das mulheres trans e travestis é utilizada pelo discurso radfem como uma estratégia de estigmatização. E não há “escapatória” para o estigma neste caso: se por um lado mulheres trans e travestis que se atraem por homens são interpretadas novamente pela narrativa do “reforço dos estereótipos normativos de feminilidade” e até mesmo acusadas de terem sofrido uma estranha forma de conversão de sexualidade (a ideia equivocada que pessoas trans heterossexuais sofreram a “cura gay”); por outro, aquelas que não se atraem exclusivamente por homens são vistas como “homens fetichistas” (afinal, se atrair por outras mulheres sendo uma mulher trans ou travesti é visto como um sinal anômalo de masculinidade) e têm suas sexualidades patologizadas por meio da noção de autoginefilia (categoriazada como um tipo de parafilia), o que funciona como motor para alimentar os discursos de que mulheres trans são “estupradoras em potencial” e uma ameaça para a segurança de mulheres cis em banheiros, por exemplo.

É igualmente lamentável ver alguns profissionais da saúde manifestarem-se na mídia de forma a presumir a validade de noções de teorias de conspiração criadas e nutridas por radfems sobre a saúde de jovens trans, como a hipótese fraudulenta da disforia de gênero de início social de "surgimento rápido" decorrente de "contágio social". Casos notórios incluem as psicólogas Laura Edwards-Leeper e Erica Anderson no Washington Post, na Folha de S.Paulo e o psiquiatra Alexandre Saadeh no UOL.

Para um leitor leigo, as posições destes profissionais podem parecer aparentemente sensatas e moderadas, afinal, eles defendem o acesso a cuidados afirmativos para jovens trans, só estariam um pouco “preocupados” com supostos casos de indivíduos que não se beneficiaram das alterações corporais e se arrependeriam caso as concretizassem. No entanto, é preciso deixar bem claro que não há nada de moderado ou sensato em assumir a validade da noção de que a identidade de gênero de um jovem trans decorreu de uma ilusão fruto de um “contágio social”, pois trata-se de uma fraude pseudocientífica criada precisamente para impedir o acesso de qualquer cuidado afirmativo para jovens trans.

Portanto, não faz o menor sentido se “preocupar” com a existência de jovens que teriam o suposto diagnóstico de “disforia de gênero de início rápido” simplesmente porque… esse diagnóstico nem ao menos aponta para uma condição que exista na realidade: a “condição” de disforia de “início rápido” provém unicamente da percepção tendenciosa de pais que reprovaram a identidade transgênera de seus filhos e reagiram mal com o ato dos seus filhos de se assumirem trans. Não há nenhuma evidência de que exista uma nova condição na qual os jovens se enganam a respeito de suas próprias identidades de gênero, pois, a despeito do aumento do número de jovens que vêm conseguindo acessar cuidados de afirmação de gênero, a taxa de arrependimento permanece extremamente baixa ao longo dos últimos anos.

É preciso compreender então porque esses profissionais acabam dando credibilidade, mesmo de forma sutil e até mascarada, para confabulações sem nenhum fundamento empírico ao invés de desmascará-las prontamente como ilusões cisnormativas que de fato são. Saadeh, Edwards-Leeper e Anderson ilustram bem a tendência mais gatekeeper no cuidado com a saúde da população trans. Eles acreditam em um modelo de cuidado com a saúde que centraliza o poder de decisão na figura dos profissionais de saúde sob o argumento de proteger o usuário de saúde transgênero de eventualmente se arrepender de uma alteração corporal, por exemplo.

Em razão disto, eles realmente acreditam que, frente aos discursos paranóicos e cisnormativos de radfems e conservadores religiosos, eles seriam capazes de se portarem, frente à opinião pública, em um lugar respeitável enquanto profissionais que saberão diagnosticar os jovens “transexuais verdadeiros” e evitar qualquer tipo de arrependimento e dano. No entanto, acabam cometendo um erro que eventualmente é fatal para eles mesmos enquanto profissionais que atendem os jovens trans, porque, ao aludir noções provenientes de ilusões cisnormativas, estes profissionais acabam por legitimar um discurso extremista que não apenas se “preocupa” com jovens acessando recursos que não se beneficiariam, mas que defende, em última instância, que nenhum jovem deve acessar, mesmo que seja devidamente diagnosticado como um “transexual verdadeiro”.

É preciso alertá-los, caso não saibam, que a ideologia radfem prega, tal como o conservadorismo religioso, que a transexualidade é em si um erro moral e que nenhuma pessoa, idealmente, deve poder acessar os procedimentos de alterações corporais (principalmente as jovens menores de idade). Esses profissionais parecem superestimar a capacidade de construírem uma imagem de credibilidade frente à opinião pública e subestimar os efeitos deletérios que ideologias extremistas como o radfem e o fundamentalismo religiosos possuem para a nossa comunidade nos dias atuais. Eles parecem realmente ignorar, por malícia; ou desconhecer, por ingenuidade; que estes grupos desejam eliminar os serviços médicos para os jovens trans. Ou seja, eles ignoram ou desconhecem que para radfems e reacionários não existe diagnóstico de “transexualidade verdadeira” suficientemente capaz para legitimar moralmente a nossa existência.

Apesar de alegarem que estariam falando apenas a respeito de um subgrupo específico de jovens vulneráveis por essa nova condição, quando estes comentaristas falam a respeito da identidade trans ser resultado de uma espécie nefasta de “contágio social” o que eles estão realmente querendo atingir é a legitimidade em si de todas as identidades e vidas das pessoas trans, pois trata-se de uma estratégia que visa ser utilizada para produzir, na prática, uma desconfiança generalizada a respeito da identidade de gênero de todos os jovens trans.

Em suma, diversos mitos e equívocos a respeito da população trans  continuam sendo propagados em nome do feminismo, infelizmente. Hoje em dia, a desinformação crescente no meio radfem é a respeito dos jovens trans. Reconhecer, criticar e denunciar isso não implica no abandono dos verdadeiros ideais do feminismo, que são necessariamente intersecionais e inclusivos. É só assim que podemos construir continuamente o transfeminismo.

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Como citar este artigo:

BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. Visibilidade trans 2022: estigmas e mitos ainda persistem no feminismo. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner YorkFelipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos