A QUEM INTERESSA MINHA DOR? TRAVESTIS NEGRA EM PRIMEIRA PESSOA

2022-01-31
Por Thiffany Odara Lima Da Silva
É Ialorixá do Ilê Axé Iba Omin Ajô Ewé, Pedagoga, Especialista em Gênero raça/etnia sexualidade na formação de educadores. Mestranda em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade na Universidade do Estado da Bahia PPGEduC-UNEB sob orientação do Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho. Membra do Grupo de Pesquisa Experiências, Memórias e Trajetórias de Populações Negras e do Candaces: Grupo de pesquisa sobre Gênero, Raça, Cultura e Sociedade.

Quem entende a dor de uma travestis/ mulher trans negra?

É urgente perceber as feridas incuráveis  do  colonialismo nos dias atuais, o quanto a  sociedade e suas dinâmicas sociais ainda são  sustentadas por um  ranço colonial racista que  afeta diariamente  pessoas negras de diversas maneiras, outrossim é a  cisheteronormatividade[1] engendrada pelo anti-afeto ou anti-amor que causa impactos diversificados nos corpos  de  travestis e transexuais, reverberando em frustrações  que consequentemente nos leva  a  sentir  que em nossas  vidas existe pouco ou nenhum amor, como bem nos lembra a autora  norte americana bell hooks. Essas afirmativas vão de encontro ao sentimento de exclusão e de negação vivido por nós, travestis e transexuais negras, diante de uma sociedade cujo cis’tema[2] que prevalece é determinado pela supremacia branca. bell hooks nos explica que

Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer amar. (hooks, 2010, sn)

Nesse sentido, é  salutar perceber como os processos de hierarquização e marginalização produzem efeitos subjetivos negativos na vida de travestis e pessoas trans negras, uma vez que estes efeitos se instauram e condicionam a  negativa social apresentada pelo modelo de dominação vivido  nas  relações  interpessoais  que temos através de diferentes formas nas relações familiares, experiências coletivas nas escolas, em ambientes de sociabilidade com amigos, ou sexual com companheiro/as, o que para Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil - ANTRA (2022) isso (...) “está  relacionado a reação de quebra de padrões sociais de gênero”.

Trago  para esse debate  como se da construção do  afeto na  vida das travestis e de  pessoas trans negras, uma vez que vivemos num país com índices altíssimos de assassinatos de pessoas trans no mundo. Segundo a ANTRA, "o Brasil permanece como o país que mais assassinou pessoas trans no mundo, contabilizando 125 mortes em 2021” das quais, 81 por cento são travestis e pessoas trans  negras. O que se correlaciona à cultura do anti-amor anti-afeto reverberando no sentimento de repulsa e  ódio conclamado por uma sociedade covardemente racista, cisheternormativa que fere e afeta as existências de travestis e transexuais negras, logo  bell hooks salienta que;

Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, "feridos até o coração", e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. (hooks, 2010, sn)

Esta breve explanação vai de encontro ao  sentimento profundo e  incurável que insiste e grita no lado esquerdo do meu peito, que consome diariamente meu corpo, uma sensação de negação da minha existência, fazendo do meu clamor apenas mais uma dor. Por isso, escolho escrever sobre esse tema, visto que assim consigo aliviar um pouco minha dor, assim como nos diz Conceição Evaristo em suas escrevivências

Gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um pouco minha a dor, eu digo um pouco. Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingança talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança (EVARISTO, 2003, p. 2)

Essa escrevivência fala muito do choro preso, calado,  engasgado, da exaustão da recusa diária, da negação de afeto e do anti-amor que me joga na solidão. Acredito que falar dessas lamúrias é um exercício diário de escolher o amor como uma ética da coexistência de  ir contra os valores predominantes de uma  cultura  cisheteronormativa. Para  bell hooks, escolher o amor é ir de contra  os  valores  de dominação  que  impõe sentimentos de auto rejeição, auto ódio e destruição. A autora  enfatiza que “muitas pessoas se sentem incapazes de amar a si mesmas ou a outras porque não sabem o que é o amor”. (hooks,2006) O que dentro de um cis’stema forjado por imposições, negações ao corpo trans negro será negado sob a opressão estrutural, o que nos joga em um grande mar de solidão e dores. Ao qual posso ratificar que  viver será o ato de resistir às dores  constantes do anti-amor e anti- afeto imposto.

Por uma dose de amor

Pensar nesse corpo feminino negro e não cisgênero é trazer compilado das fissuras coloniais.  Me coloco aqui enquanto interlocutora da narrativa apresentada uma vez que parto  do local social no qual ocupo, pois a cultura do anti-afeto e anti-amor  permeia minha vida.  O que paralelamente pode ser e  ter uma retórica parecida com a de outras travestis e mulheres trans negras cuja existência se defronta com os marcadores sociais de gênero, raça/etnia que “permeia como dispositivos que promovem e indicam a   opressão e desigualdade  social”  como salienta a teórica Cláudia Pons Cardoso, quando ela  ratifica que

Os marcadores sociais são, inegavelmente, dispositivos que promovem a desigualdade entre os grupos sociais, mas, também, podem ser acionados pelas mulheres em situações de agenciamento e empoderamento para o questionamento das estruturas de Opressão (CARDOSO, 2012, p.57)

Diante disto vejo o quanto a minha existência é negada em um mundo perverso. O mínimo que o ser humano pode ofertar ao outro como o reconhecimento do nome, para uma travesti é negado, Somos empurradas e jogadas para a margem, sem direitos, sem escuta do nosso clamor.  O processo colonizador é determinante, diário, nefasto sobre corpos e existências de travestis e transexuais negras. Neste sentido, observo que a “discriminação, notavelmente, gera uma série de efeitos negativos sobre a saúde mental  do indivíduo e contribui mas tarde para seu adoecimento” (ANTRA, 2022).

Superar, ressignificar aqui não só como verbo transitivo direto, mas como  ações sólidas e imateriais para nossos corpos transgressores, cujo a existência é moldada no confronto  incessante e diário do racismo engendrado com cisheteronormatividade que tenta a cada segundo barrar nossos afetos, amores,  escolhas, o direito à vida como todo.

Alguns ditos populares fazem metáforas sobre dores que carregamos por quaisquer circunstâncias na vida. Temos como exemplo os seguintes ditos: quem tem sua dor, é quem  geme! Cada um sabe onde mora sua dor!. Retóricas que podem até parecer  individuais,  mas estão muito presente na coletividade, principalmente  quando me deparo com colegas e amigas travestis e mulheres trans negras,  em bate papos informais ou até mesmo em  rodas de conversas, percebo o quanto  nossas dores tem ligação, em face de uma estrutura CIS-têmica do anti-afeto e do anti-amor. Isso diz muito também do lugar que ocupamos e de quais vozes são ouvidas. bell hooks ratifica  que o amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, mas esse amor  não está presente na vida das travestis e mulheres trans negras quando  somos expulsas de casa, por exemplo.  O que recai na falta de amor reverberando nas dificuldades em nossas vidas e na garantia das nossas sobrevivências, sendo assim me  pergunto a quem interessa a dor das travestis e mulheres trans negras? 

A quem interessa essa negação de amor e afeto? Por que preocupar-se em sanar a dor da travesti ou mulher trans negra? Incompletude que possivelmente continua em um próximo texto.

 

REFERÊNCIAS

 ANTRA, Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021 / Bruna G. Benevides (Org). – Brasília: Distrito Drag,  2022

CARDOSO, Cláudia Pons. Outras falas: Feminismos na perspectiva de mulheres negras brasileiras. Universidade Federal da Bahia,2012.

 CONCEIÇÃO, Evaristo. Gênero e Etnia: uma escre (vivência) de dupla face.

Texto apresentado no Seminário Nacional X Mulher e Literatura I Seminário

Internacional Mulher e Literatura/ UFPB – 2003

 hooks, bell. Vivendo de amor. 2010.  Tradução: Maísa Mendonça. Acesso: 29 de janeiro de 2022 às 16:27

 hooks, bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243-250. Tradução: wanderson flor do nascimento.

 JESUS, Jaqueline Gomes de. XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 250-260.

 York, Sara Wagner, Megg Rayara Gomes Oliveira, and Bruna Benevides. "Manifestações textuais (insubmissas) travesti." Revista Estudos Feministas 28 (2020). 


[1] A cisheteronormatividade é uma  imposição social baseada no padrão cisgênero e da orientação sexual hetero como únicas possibilidades de expressão e existência da identidade de gênero e orientação sexual. Ver mais em: JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.

[2]  É colocado sistema com C, para demarcar o cis ’tema político da cisgeneridade compulsória  que determina os padrões e expressão de gênero a partir do órgão genital.

 

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Como citar este artigo:

SILVA, Thiffany Odara Lima da. A QUEM INTERESSA MINHA DOR? TRAVESTIS NEGRA EM PRIMEIRA PESSOANotícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner YorkFelipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos