Dororidade: Dor que só as Mulheres Transexuais e Travestis Negras Sentem
Iyálòrìṣá de candomblé da nação de Ketu, teóloga, transfeminista, negra, formada em serviço social, pós-graduada em direitos humanos e sexualidade, coordenadora nacional da CONATT, secretária executiva geral da ANTRA, coordenadora estadual do FONATRANS em São Paulo, presidenta do Instituto APHRODITTE-SP, coordenadora adjunta do Fórum Paulista LGBTI, integrante da comissão LGBTI da ALESP. E-mail: fernandamoraesantos@gmail.com
“Ser negra, na integridade...
Ser negra, de carapinhas. de dorso brilhante, de pés soltos nos caminhos.
Ser negra, de negras mãos, de negras mamas, de negra alma”.
Introdução
Transfeminismo é uma vertente do movimento feminista voltada particular e especificamente às questões das mulheres transexuais e travestis e, que propõe desfazer os papéis de gênero, os quais interpretam como influências da cultura e da educação cisnormativa pré-existentes. O transfeminismo nasce a partir do feminismo interseccional e da aplicação dos conceitos e pautas relacionadas às transexualidades e travestilidades e do discurso transfeminista sobre os conceitos desses segmentos sociais. Esta luta leva em consideração que existem fatores que criam desigualdades entre as mulheres e, pretende lutar pelos direitos de todas elas - cisgêneras, transexuais e travestis. Muitas pessoas não sabem, mas para além do transfeminismo como um todo, também existem várias ramificações específicas e, dentre elas, está o transfeminismo negro.
O transfeminismo negro surge também através do movimento organizado das mulheres transexuais e travestis, para atender algumas demandas específicas da população das mulheres transexuais e travestis negras, que foram e ainda são bastante oprimidas pelas RADFEM ou TERF, que é a corrente mais extremista do feminismo branco cisgênero, a qual não se encontra no princípio de igualdade e harmonia entre todas as mulheres, pois se opõem e sustentam radicalmente a paridade entre mulheres cissexistas das mulheres transexuais e travestis, alegando que as mulheres cisgêneras devem manter-se fora de qualquer relação com as mulheres transexuais e travestis, defendendo o gênero de nascimento como a única alternativa para o correto desenvolvimento da sexualidade das mulheres.
Ensinamentos de Experiências Vivenciadas
Dororidade é um neologismo criado para definir a cumplicidade entre a população das mulheres transexuais e travestis negras, pois existe uma dor que só elas sentem e reconhecem, por isso, a sororidade não alcança toda a experiência vivencida pelas mulheres transexuais e travestis negras, em seu existir histórico.
O conceito de sororidade, palavra derivada do termo em latim “sóror”, que significa irmã. A sororidade que significa uma relação de solidariedade, cumplicidade e cuidado entre todas as mulheres, sejam elas mulheres cisgêneras, lésbicas, bissexuais, heterossexuais, travestis e transexuais. Porém, não dá conta das vicissitudes das mulheres transexuais e travestis negras.
Não se pode construir um estado democrático de direito pleno sem observar as vulnerabilidades sociais e a inclusão das mulheres transexuais e travestis negras inseridas na estrutura social governamental. Portanto, há uma enorme "disparidade" no Brasil sobre a questão étnico-racial e o vocábulo ‘negro’, sobretudo porque várias mulheres transexuais e travestis inspiram-se por vezes nas falas e lutas da população negra de outros países. Porém, existem inúmeras histórias socioculturais dicotômicas entre essas lutas internacionalizadas e o movimento organizado das mulheres transexuais e travestis brasileiras. Uma palavra que em outro idioma, como o inglês norte americano pode soar como preconceituosa, mas aqui no Brasil serve para unificar a luta da população das mulheres transexuais e travestis negras.
Exemplificando: o termo negro ou negritude, tanto quanto a palavra preto ou pretitude e demais adjetivos, no dito popular brasileiro, têm diversas conotações e nuances de extremo preconceito e estigma social. Porém, a população das mulheres transexuais e travestis negras fizeram a ressignificação da palavra libertando-as de um termo tóxico, pesado e negativo. O preto é associado com poder, elegância, formalidade. Preto denota força e autoridade; ele é considerado uma cor muito formal, elegante e prestigiosa (gravata preta, terno preto). Na heráldica, o preto é o símbolo da dor, por isso o conceito de dororidade. Preto dá a sensação de perspectiva e profundidade, mas um fundo preto diminui essa legibilidade. Preto implica autocontrole e disciplina, independência e força de vontade, dando uma impressão de autoridade e poderio.
Então, o movimento social das mulheres transexuais e travestis negras brasileiras escolheram converter uma experiência totalmente negativa, que foi o período escravagista, em algo categórico e positivo. Não que a ditadura escravocrata no Brasil possa ser esquecida, mas elas buscaram nessa situação, que foi pesada e dolorosa para a população negra, trazer o lado bom de tudo isso, bem como os aprendizados obtidos a partir das vivências da negritude brasileira, como o “pajubá” ou “bajubá”[1]
A palavra pajubá tem o significado de “fofoca", "novidade", "notícia", referente a outras casas de axé ou fatos ocorridos com mulheres transexuais e travestis, tanto de coisas boas, como de coisas ruins. Esse linguajar passou a ser utilizada pela população das mulheres transexuais e travestis, durante o período da ditadura militar como meio de enfrentar a repressão policial e despistar a presença de pessoas indesejadas. Elas encontraram nessas adversidades forças e motivação para continuar sendo resilientes, resistindo, lutando e não se vitimizar, mas estão assumindo o papel de protagonistas das suas próprias vidas e histórias, como população cidadã. Portanto, foi por meio do vocábulo negro, que foi de suprema importância, nas décadas atuais, e como forma de transformação e unificação sobre a questão étnico-racial e contra a intolerância transfóbica racista. Então, foi a partir da palavra negro que elas conseguiram juntar a população das mulheres transexuais e travestis negras, ou pretas, numa só luta. Hoje em dia, muitas mulheres transexuais e travestis, de várias religiões, mesmo as de pele mais clara, ou não retintas, assumem-se como negras e lutam de maneira unificada pelo movimento negro.
Para Dália Celeste: “Enquanto uma mulher transfeminista, negra, pobre e de favela, um corpo que carrega todos os estereótipos que a sociedade mata e exclui falar sobre representatividade é falar sobre os corpos invisíveis, e questionar onde esses corpos estão... Não, é porque não nos dão oportunidades, é porque esses corpos socialmente não existem, são excluídos, corpos invisíveis”. Poderíamos citar vários exemplos, contudo o que mais importa é que foi através da ressignificação da palavra negro que elas conseguiram colocar no censo estatístico e geográfico, a população "parda" e preta como NEGRA, no IBGE.
Conseguiram verificar que aquela faixa de 56% (cinquenta e seis por cento) da população negra, é a grande maioria da população brasileira e que puderam juntar forças com outras mulheres transexuais e travestis. Elas sabem que preta é uma cor, porém sabem também que essa parcela da população brasileira é muito mais discriminada, assediada e assassinada, na escala do colorismo europeu preconceituoso que antigos historiadores brancos criaram para romantizar a história do período escravagista. E, verificaram a importância que foi usar o termo negro para unificar pessoas pretas e brancas de diversas etnias na luta antirracista. O que difere, por exemplo, da luta em outros países. Negro, para a população das mulheres transexuais e travestis negras, tem a mesma força que a população norte-americana utilizam na palavra afro-americano, ou seja, toda aquela pessoa que tem uma gota de sangue negro é uma pessoa afro-americana e a sociedade branca sabe muito bem identificar isso, seja aqui no Brasil ou em outros países.
A sociedade cisnormativa branca transfóbica racista sabe muito bem quem são as mulheres transexuais e travestis negras. Nós é que precisamos estar mais atentas a plenitude que o termo mulher negra, ou preta, significa para todas nós. No entanto, a cor é preta, porém, a raça é negra. Os antepassados ancestrais da população brasileira são os Òríṣás, Deuses Negros oriundos do continente africano da religião iorubá representados pela natureza. Foram enviados por Ọlọdùmarè (Elédá Ọlọrun = Deus Criador) para a criação do mundo e após isso, ensinar e auxiliar a humanidade a viver nesse plano terreno. Quase todos os Òríṣás encarnaram como humanos e tiveram vida aqui no áyé (terra), mas já existiam anteriormente no Ọrun (plano celeste), e outras eram pessoas que se tornaram Òríṣás pelos seus feitos extraordinários e sabedoria durante a vida, ou porquê teriam nascido com poderes sobrenaturais e podiam controlar a natureza, como: raios, chuvas, rios, fogo, vento, árvores, minérios e o controle de ofícios das condições humanas, como: agricultura, pesca, metalurgia, guerra, maternidade, saúde.
Como resultado da catequização que se deu durante o período da escravatura e, com à imposição do catolicismo colonial sobre população negra escravizada, cada Òrìṣá foi sincretizado e associado a um santo católico branco europeu, para que a população negra mantivesse suas divindades negras, os Òríṣás, vivas e não perder seu direito ao culto. Pois, foram obrigados a disfarçá-los na roupagem e com as mesmas categorias dos santos católicos europeus, aos quais cultuavam apenas aparentemente.
Colorimos e Passibilidade
Certamente, você já deve ter escutado este termo “colorismo” e “passibilidade” algum lugar! Principalmente nas universidades ou nos movimentos sociais. São terminologias usadas e debatidas em grande parte da comunidade das mulheres transexuais e travestis e, que implica que determinada mulher transexual ou travesti “passável” com o seu gênero de identificação de nascimento, ou seja, implica em ninguém perceber que essa pessoa é uma mulher transexual ou uma travesti, e pensarem que ela é na verdade apenas uma mulher cisgênero e para diferenciar várias tonalidades da pele negra, do tom mais claro ao tom mais escuro. Essas tonalidades da pele negra também permitem a inclusão ou a exclusão na sociedade.
Deve-se questionar a “glamourização” do colorismo e da passibilidade, pois é bem fácil detectar algo relacionado a esse tipo de pré-conceito, pelo simples fato de anular a etnia e a identidade de gênero, tentando camuflá-las e criando falácias, dizendo que uma mulher transexual ou uma travesti negra “é tão linda que você nem parece” ou “nunca imaginei que você fosse...” é o mesmo que dizer que uma mulher transexual ou travesti não pode ser linda por ser negra.
Ainda hoje, existe o tabu de que mulheres transexuais e travestis não são mulheres ou gênero feminino, e quando se pensa em mulheres transexuais e travestis negras e femininas, muita gente ainda se lembra das mulheres transexuais e travestis dos anos de 1970 e 1980, quando as mesmas eram vistas como “uma anormalidade” e que danificavam seus corpos com aplicações de silicone industrial e mal tinham conhecimento dos seus direitos ou acesso para fazer qualquer tipo de acompanhamento médico hormonal qualificado. Nem todas as mulheres transexuais e travestis conseguem ter essa “passabilidade”, e isso não deveria ser uma vulnerabilidade, pois é um problema social da cisnormatividade.
Entretanto, ao mesmo tempo, que algumas mulheres transexuais e travestis negras, não retintas, conseguem “passar” por mulheres “cisgêneras brancas”, isso jamais deve ser considerado uma conquista. Pois, cada vez mais o movimento social das mulheres transexuais e travestis brasileiras comprovam que os corpos transexuais e travestis podem ser lindos de inúmeras, diversas e diferentes formas e todos merecem o mesmo valor igualitário de qualquer outra mulher.
Considerações Finais
A sociedade brasileira, mesmo com os avanços recentes, apesar de demorados, nos direitos civis e sociais dessa parcela população, ainda está longe de se tornar uma sociedade que aceita, insere e inclui as diferentes formas de identidade e expressão de gênero feminino do “si mesmo”. Por mais que haja inúmeros questionamentos na valorização do “colorismo” e da “passibilidade”, em um país onde as agressividades sociais, o transfeminicídio e o travesticidio é gritante e as humilhações de intolerância transfóbica e transfobia recreativa, são com tamanha facilidade e romantismo, em um país onde proíbem mulheres transexuais e travestis de usarem banheiros públicos com o mínimo de conforto e onde essas são negligenciadas e assassinadas por terem nascido na condição de serem diferentes da heteronormatividade cisgênera, ter “pele não retinta” e ser “passável” se torna uma “vantagem” que, infelizmente, chega a se fazer necessária.
Querendo ou não, diante da sociedade cishegemônica discriminadora, são as mulheres transexuais e as travestis de “pele não retinta” e “passáveis” que influenciam mais credibilidade àquelas pessoas que estão começando a criar uma certa empatia pelas minorias, mas que ainda não conseguiram desconstruir e desmistificar os tais pré-conceitos que existem enraizados em suas mentes cisnormativas.
Cada mulher transexual ou travesti têm especificidades diferentes, porém a transexualidade ou a travestilidade são comuns à todas e, a união dessas especificidades e habilidades devem ser a chave para que as mesmas criem um mundo melhor e mais inclusivo para todas as pessoas, e para que essas habilidades deixem de ser uma característica vantajosa por causa do estranhamento social.
A sociedade cishegemônica heterossexista patriarcal não consegue absorver com naturalidade, fora da prostituição, lugar cultural e historicamente a que seriam destinados à todas as mulheres transexuais e às travestis, com a feminilidade presencial dos corpos das mulheres transexuais e das travestis negras, porquanto sua dor é completamente abjeta e invisibilizada. A aflição imperceptível vivenciada pelas mulheres transexuais e as travestis negras através do aniquilamento em sua totalidade dos direitos humanos, civis e sociais quando são encarceradas, do transfeminicídio ou do travesticídio a que sofrem e que estão sujeitas, as agruras da violência cotidiana, são bons exemplos desse disparate.
Os movimentos sociais, mas principalmente o movimento feminista precisam assumir abertamente a luta contra a intolerância transfóbica racista, ou seja, se tornarem também movimentos sociais antirracista; e a dororidade é um passo importante no entendimento dessa necessidade que a população das mulheres transexuais e travestis negras evidenciam no seu dia-a-dia. Por outro lado, muitas mulheres transexuais e travestis deste mesmo movimento, defendem a elaboração de fraternidades feministas igualitárias e na iniciativa de instaurar um "traviarcado" (regime social em que a autoridade é exercida pelas mulheres transexuais e travestis), como forma de compensação histórica cultural da população das mulheres transexuais e das travestis brasileiras.
Referências Bibliográficas
CELESTE, Dália (2018). Representatividade de um corpo invisível: Mulher trans, negra e a favela. Afrodescendência.
SILVA, Jovanna Cardoso da. (2021). Bajubá Odara: resumo histórico do nascimento do movimento de travestis e transexuais do Brasil. (Picos-PI). ISBN – 978.65.00.16059-8.
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[1]O “Diálogo de Bonecas” é uma linguagem secreta com uma mistura de palavras específicas, criadas pelas mulheres transexuais e travestis brasileiras, e do Iorubá, além de outras palavras comuns em casas de candomblé e terreiros de umbanda, frequentemente usada para excluir ou confundir pessoas de fora do grupo.
Como citar este artigo:
SILVA, Fernanda de Moraes da. Dororidade: Dor que só as Mulheres Transexuais e Travestis Negras Sentem. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner York; Felipe Carvalho, Mariano Pimentel e Edméa Santos