Quem busca ensinar? A prática da docência marginal

2022-01-19
Por Brune Bonassi
Doutorande em psicologia pela Universidade Federal do Ceará, mestre em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Psicanalista, membre da Articulação Brasileira Não Binárie e da Rede Não Binárie Abya Yala.

Es docentes bons no Brasil, a cada ano que passa, sofrem um estremecimento de suas certezas. A primeira certeza a ruir é a de que a comunicação é perfeita, e acontece sempre, de que a acústica da sala faz as vozes que ali circulam atingirem os ouvidos presentes, de que as palavras serão lembradas. Muita coisa está no meio entre o que se fala e o que se escuta.

As emoções, são imediatamente reconhecíveis: “naquele dia saí de casa e não pude ouvir nada, estava com muita raiva do que tinha acontecido, estava muito triste para o mundo”. As necessidades fisiológicas também tapam os ouvidos, quem consegue se concentrar quando tudo que passa no pensamento é comida? E quem, involuntariamente, não passou um dia todo pensando no amor? As barreiras do ambiente também impedem a audição, barreiras de acessibilidade a pessoas com deficiência, barreiras de igualdade para pessoas divergentes das normas higiênicas. Barreiras estas que se arrastam no Brasil, como zumbis, desde os tempos de colônia.

Contra o cissexismo, transfobia, exorsexismo, genderismo, só há um caminho: o que entende que o binarismo de gênero e de sexo também foram/são construções culturais historicamente inscritas como cisheteronorma, em um direito dos homens, cisgêneros, brancos, com posses, cristãos, casados embora não fiéis. A mesma norma que, na Modernidade brasileira, usou da ciência para dizer o que a mulher branca casada deveria fazer: usar sua burrice política para se afastar da política, essa burrice favorecia sua percepção de emoções, o instinto materno, o cuidado, a manutenção da casa, a docilidade, a submissão ante estupros consecutivos pelo marido, a submissão ante as regras de herança etc (COSTA, 1979). Ao mesmo tempo em que a mulher negra era comercializada, mal paga, forçada a colocar sues filhes na roda para amamentar filhes de branques, estuprada, obrigada a trabalhar sem condições mínimas, mal alimentada; ou seja, o escracho máximo da posição de sujeito de direitos do homem, em cuja concepção ética fazia uso de recursos humanos disponíveis sem se importar com algo como direitos humanos.

É a mesma norma que mutila pessoas intersexo (OLIVEIRA, 2020), que mortifica a potência de vida de travestis, transexuais, transmasculines, não bináries, e toda a multiplicidade de nomes que podem ser autoafirmados ou aceitos a partir daquilo que é a não norma, o não homem (Tuty GUIMARÃES, Thiago ODARA, 2021). Ainda podemos vê-la nos códigos que definem, no português, o plural como masculino por padrão, e que gerou comoção, entre os autopercebidos estudiosos da norma culta, quando a primeira presidenta do Brasil decidiu nomear a posição que ocupava no feminino.

E como seguir esse caminho, de reconhecer os problemas do binarismo compulsório, quando ainda é comum em graduações de psicologia no Brasil não existir uma obrigatoriedade de disciplinas que ensinem sobre as histórias do movimento feminista e de gênero, sobre as lutas contemporâneas, quais formações discursivas e técnicas elas veiculam. Dizem ser um conteúdo transversal, mas cada ume o atravessa de um jeito, do seu jeito, que se não tiver muito estudo e vivência, será carregado dos machismos, cissexismos, heterossexismos, racismos, capacitismos, etarismos estruturais.

E como continuar falando? Como continuar na educação ante a tantos problemas estruturais? Esses problemas não são os únicos. Como docentes de ciências humanas, estamos na grande maioria nos direcionando a uma carreira de baixos salários, mal reconhecida e mal valorizada, desrespeitada, trocada continuamente por coachs, opiniões na internet, e pela medicalização da vida. Quando somos pessoas não cisgêneras, a cada turma que passar por nós, estaremos sujeites ao desconhecimento, ao preconceito, às crises de disforia. Não temos uma proteção em nosso ambiente de trabalho, dentro da equipe, nas reuniões com colegas de outras áreas. Estamos, como sempre estivemos, desassistides e tendo que abrir nosso caminho, mesmo no que tange as burocracias cisgêneras. “Que potência está presente na raiva que pode se reconfigurar de uma emoção mortificante para a possibilidade de organização?”, me perguntou um amigo.

Enquanto escrevo este texto, presto ajuda a uma amiga que sofre agressão física da mãe desde criança, e agora ela e a filha dela apanham. Neste exato momento, enquanto trabalho, ela está passando por isso. Sofre todas as complicações de estar em uma relação abusiva: tem medo de fazer B.O., tem pena da mãe, tem medo de não ter onde morar, tem a saúde psicológica fragilizada, as irmãs batem e suportam mãe, o pai da criança não paga pensão, entre tantos outros agravantes. É mais um caso, como eu vejo com frequência, como eu escuto na minha rua, como eu atendo na clínica. É só mais um exemplo da posição de vulnerabilidade da mulher na sociedade.

Talvez a pergunta não seja quem busca ensinar sobre a diversidade, mas como as pessoas conseguem achar forças para não parar. Profissionais da saúde estão sobrecarregades no Brasil inteiro, assistindo os horrores da CPI do Covid. Charlatões aparecem por todo canto, golpes, caridade sendo pedida em todos os grupos. É esse o Brasil que o dia da visibilidade Trans encontra, um Brasil em que em tanta gente a vontade de se informar já morreu, ou foi obscurecida pela maquinação diária, mas isso não os impede de emitir opinião com vários tons de certeza.

Porém, ao olhar para a história da colonização no Brasil, me recordo que a situação de quem não aguenta a cisnorma em seu próprio corpo sempre foi péssima. Encarcerades em manicômios, mortes nas ruas, preses, patologizades, dopades, sendo alvo de experimentos, solitárias. Essa foi a vida das pessoas não cisgêneras perante os modos de governo que vigoraram no passado brasileiro pós invasão européia (MOMBAÇA, 2021). E continuamos aqui, não porque somos resilientes, mas porque a própria norma binária e cisgênera compulsória anuncia a sua implosão.

Continuamos aqui apesar dos erros da sociedade. Muitas foram e são assassinadas, muites escolhem deixar de viver em uma sociedade tão doente. Continuamos como grupo, no entanto, porque o erro não está em nós. O erro está em pensar que uma pessoa nasce com um sexo imutável e binário, determinado, baseado nos tamanhos e formas das genitais, que pode ser produzido nas genitais à revelia do sujeito, e que isso vai determinar papéis na sociedade.

Fazemos nosso trabalho bem, porque de fato somos competentes, e por algum acaso ainda nos sobra energia para ensinar e produzir conhecimento entre as centenas de microfascismos que temos que lidar todos os dias. Porque não são só os dos outros, são também os microfascismos que carregamos em nós, que são fruto do desconhecimento e dos privilégios. É nessa esfera micro, da micropolítica, que é possível ver um resultado aqui e um acolá. Somos muites e estamos conquistando os direitos básicos pela força coletiva e apesar do Estado.

Na não binariedade, por exemplo, pessoas que conseguiram retificar para o terceiro sexo devido à ação favorável de defensorias, agora estão enfrentando problemas para fazer seus documentos (RG, carteira SUS, CadÚnico etc.). Os órgãos responsáveis alegam problemas técnicos, o código da programação terá de ser modificado, o modo como se coleta estatísticas também, os bugs surgem dos ralos do esgoto, e o exorssexismo é gritante.

Então me diga, leitore. Que condições temos, nós, docentes não cis, de atuar com a saúde psicológica fragilizada, em um contexto que não valoriza nosso trabalho, e não nos protege de agressões? É certo que fazemos nosso melhor, porque é só o que podemos fazer, mas você percebe o quanto se perde com essa desgastante luta diária que temos que cultivar? Você considera que nas associações que criamos, nós, pessoas não cis, para nos defender, considera que estaríamos ali se não estivessemos obrigades a estar?

Estamos constantemente desgastades. Contantemente lidando com os preconceitos e empecilhos que a sociedade cisgênera nos impõe. Nesse mês da visibilidade Trans, no mês da visibilidade não binárie, lembre leitore: a) Não é porque você atuou nesses meses que pode relaxar seus cuidados nos próximos; b) Estamos sempre atuando, e já não dispomos mais de paciência; c) Respeite as pessoas próximas de você, você nunca sabe como teu descaso pode afetar outras pessoas; d) A militância vai muito além da mídia, disponibilize seus serviços, seu tempo, orientações técnicas, lembre que muitas pessoas trans não tem acesso aos serviços de proteção social, saúde, educação, e outros; e e) Contrate, remunere devidamente, pessoas não cisgêneras. Nós não aguentamos mais a cafetinagem acadêmica, ou empresarial, que nos pede capacitação sem oferecer nada em troca.

 

Referências

COSTA, Jurandir F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

GUIMARÃES, Tuty V. C., ODARA, Thiago. (Trans) solidões: a solidão do outro e de si. In: MORGADO, Morgan. A primavera não-binárie: protagonismo trans não-binárie no saber científico. Florianópolis: Rocha Gráfica e Editora, 2021, p. 39-60.

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

OLIVEIRA, Carolina I. A busca pelo corpo perfeito: uma rápida autoetnografia e análise interseccional da intersexualidade. In: GOMES, Aguinaldo R.; LION, Antonio R. C. de. Corpos em trânsito: existências, subjetividades, e representatividades. Salvador: Editora Devires, 2020, p. 384-401.

 

Como citar este artigo:

BONASSI, Brune. Quem busca ensinar? A prática da docência marginalNotícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner YorkFelipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos