Carta a Paulo Freire

2021-05-11

Por Ana Clara São Thiago
É professora dos anos iniciais na Rede pública do Rio de Janeiro, no Complexo da Maré; mestranda em Educação, Cultura e Comunicação (FEBF/UERJ); integrante do grupo de pesquisa ‘Sociabilidades, Educação e Cibercultura’ (SoCib).

 

Petrópolis, RJ, 28/04/2021

 

Querido Paulo,

Ao escrever esta carta para compartilhar, contigo, os sentimentos que invadem meu coração, neste momento, penso:

“_Como Paulo agiria se ainda aqui estivesse?” “Como reagiria diante desse cenário inusitado em que vivemos, hoje, e que já acumula, só no Brasil, mais de 400.000 mortes?”.

Sou professora da Educação básica, das séries iniciais, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Ano passado, a grave pandemia do novo coronavírus, tomou conta de todos, e alterou os modos como nos relacionamos com o outro e com o mundo, impactando todos os setores das atividades humanas; e, em particular, a área de educação, que devido à necessidade de isolamento físico, teve de fechar escolas e migrar suas aulas do ensino presencial para plataformas digitais.

Seria o INÉDITO VIÁVEL[i] de que tanto falas? Como superar as situações-limite que nos são impostas, e continuar na luta, engajados, querendo SER-MAIS?

A ESPERANÇA[ii] precisa, mais do que nunca, tornar-se  ATO!

Sabes, Paulo, jamais imaginei que a saudade pudesse ser tão forte, a ponto de me pegar chorando, sem qualquer controle, enquanto elaborava as atividades pedagógicas, e pensava em meus alunos, em suas casas, passando por situações as quais eu não tenho o menor controle... Acredito que a emoção não esteja dando conta da distância, e da saudade, ainda mais , diante de tanta desigualdade aflorando, a cada dia.

Nesse momento, escrevo esta carta por meio de um dispositivo tecnológico, que é a forma mais utilizada nos dias atuais, mesmo sabendo que muitos ainda não possuem esse direito assegurado: o da conectividade e acesso aos meios tecnológicos. Como, então, desenvolver as atividades escolares, pautadas na troca, no diálogo e na partilha quando uma grande parcela dos alunos se encontra excluída desses processos interativos; quando, praticamente, só há uma ponta na relação de ‘aprenderensinar’ – o docente? Como bem dizes, “NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA”[iii].

Apesar disso, e da opressão de um governo negacionista, que, claramente, exibe um descaso com a saúde e educação da população, seguimos na tentativa de ultrapassar essas barreiras - resilientes e resistentes.

Neste dia em que te escrevo, por acaso, ou não, é comemorado o Dia Mundial de Educação; uma data que objetiva nos conscientizar da importância dessa instância para o desenvolvimento de sujeitos autônomos, conscientes de seus direitos e deveres. Mas, como fazê-lo, sem DIÁLOGO, sem que possamos exercitar nossa ESCUTA; uma escuta que não exclui, que entende que todos têm o direito de ser ouvidos e compreendidos?

Mas, acredite, nem tudo é tristeza. Há ‘muita coisa sendo realizada pelos professores que, percebendo, como eu, a gravidade da crise, lembram de teu ensinamento, de que ‘talvez valha a pena uma hora a menos de conteúdo, e uma hora a mais de sonho de um mundo melhor’, e exercitam a pedagogia dos encontros. Desse modo, sem subestimar o pensar, a busca pelo conhecimento, enfatizam a amorosidade e cuidado com o outro.  

Com efeito, conversamos com os alunos e seus familiares sobre as dificuldades e desafios do dia a dia, sem que dissociemos o ‘saber’, do ‘sentir’, estreitando nossas relações, por meio de ligações telefônicas e mensagens digitalizadas. Esses contatos constituem o IR ALÉM, mantendo-nos vivos e nos fazendo acreditar que, acima da ‘escola-conteúdo’ está a ESCOLA DA VIDA, como nos ensinas.

Paulo, eu sinto falta do cheiro da escola, do almoço que acontecia pela manhã, das gargalhadas dos meus pequenos, da correria, dos olhares, dos abraços. Sentimos muito, estamos muito afetados com o desenrolar dos acontecimentos no Brasil. Precisamos valorizar a vida, dar mais atenção ao meio ambiente, preservar nosso planeta, garantindo a qualidade de vida das futuras gerações.

O desenvolvimento das tecnologias digitais em rede permitiu que esses laços não fossem rompidos. Mas é preciso que eles se estendam a todos, que políticas públicas sejam pensadas a partir dos territórios, numa relação direta entre a educação, a sociedade e a cidade.

Eu te peço que nunca deixes de nos inspirar. Teus escritos nos `movem à indignação frente às imposições do mundo, não nos deixando abater, possibilitando-nos contemplar a BONITEZA[iv] da vida, como, por exemplo, nesta mensagem que recebi de um aluno: “Tia, estou com saudades da senhora”. Quanto amor há nesta saudade, que transforma nossas lágrimas em OUSADIA. Eu quero ousar crer que será possível um novo amanhã. Quero ousar sonhar que construiremos, juntos, esse porvir, em uma PRÁXIS[v], que nos mobilize.

Deixei, para o final desta carta, os agradecimentos que preciso te fazer, Paulo! Agradecer pela tua vida de luta incansável, uma luta em prol do coletivo, movida pelo AMOR, pela esperança, pela UTOPIA[vi] que sonha o possível; que não nega o passado, mas o compreende para a elaboração no presente, de um futuro outro. Uma história compreendida, que não nega os erros, nem os justifica; apenas os transforma em potenciais para o acerto.

Quem diria que, há quase 100 anos, um menino, sentado à sombra de uma mangueira, iria se tornar um dos maiores pensadores da Educação no mundo? Tuas palavras nos entusiasmam, Paulo Freire; tuas concepções contribuem para o desenvolvimento de nossa AUTONOMIA; tuas práticas mobilizam nossa paixão pelo ‘educaraprender’, visto que somos seres INACABADOS, incompletos.

Meus avós, Nilton e Helena, são os maiores exemplos de educadores que eu poderia ter, e que sempre praticaram o que ensinaste. Quem sabe, o vovô já tenha se encontrado contigo, nessa outra dimensão e, juntos, continuem a ser fonte de nossas inspirações?

Forte abraço, obrigada por tudo,

Ana Clara São Thiago


[i] Sobre o ‘Inédito Viável’, ‘Ser-mais’, ‘Ir além’, ver a nota explicativa nº 1, de Ana Maria Araújo Freire (Nita), contida na obra: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª ed. 2011, p.277-279.

[ii] O ato de ‘Esperançar’ – veja mais em FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª ed. 2011

[iii] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015, p. 25.

[iv] Termo muito presente na obra: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015, (ver p. 139)

[v] Sua concepção de práxis está contida na obra: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 56ª ed., 2014.

[vi] Veja mais sobre ‘utopia’ e ‘sonhos possíveis’ em: FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Org: Ana Maria Araújo Freire. 2ª Ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

 

 

 

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Como citar este artigo:

THIAGO, Ana Clara São. Carta a Paulo Freire.  Revista Docência e Cibercultura, seção Notícias, maio de 2021, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: <>. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Felipe CarvalhoEdméa Oliveira dos Santos e Mariano Pimentel