Escrita acadêmica em coautoria

2021-02-01

 

Por Anamaria Ladeira Pereira
Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPed/UERJ). Atua no geni - estudos de gênero e sexualidadee no Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros (DEGENERA), ambos na UERJ. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Por Camila Santos Pereira  
Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPed/UERJ). Especialista em Orientação Educacional (UNIASSELVI). Integrante do geni - estudos em gênero e sexualidade e do Grupo de Estudos em Educação e Transgressão (GEETRANS). Licenciada em Ciências Sociais (UFRGS).

Inúmeros textos que tratam de questões relacionadas à escrita acadêmica e à metodologia concentram-se em uma perspectiva individualista e eurocêntrica, que parte do pressuposto de que apenas uma pessoa será a autora do conteúdo. Apesar disso, a escrita em colaboração é uma das possibilidades mais usuais para a divulgação dos resultados de pesquisas científicas. O estranhamento diante da ausência de sua abordagem de maneira mais aprofundada alimentou nosso interesse em elaborar estes parágrafos, cujos pilares defendidos aliam-se à forma com a qual vão sendo desenhados: não apenas por uma autora, mas por duas.

Focando nos quesitos éticos e técnicos de sua prática, começamos esta conversa questionando as motivações que nos levam a optar por uma escrita acadêmica em coautoria. As respostas podem ser bastante plurais, portanto, para melhor sintetizar o assunto, elencamos três categorias principais: a institucional, a afinidade temática e a afinidade pessoal. A seguir, distinguiremos algumas de suas particularidades.

Analisando o primeiro cenário, o âmbito institucional, nos deparamos com alguns atravessamentos hierárquicos que se sobressaem. Tanto no ensino técnico como na graduação, há um incentivo, especialmente, em projetos de iniciação científica, extensão, monitoria entre outros setores, para que as atividades sejam divulgadas em eventos e periódicos acadêmicos. Tendo em vista que a maior parte do corpo discente ainda está se familiarizando com o ofício científico, escrever com quem coordena os programas costuma ser a atitude mais habitual a ser tomada. Para quem está começando, representa uma oportunidade de aprender com profissionais mais experientes no campo e pavimentar o rumo para uma personalidade autoral singular.

Nem tudo são flores, no entanto. Vale destacar que a aparente rede de impulsionamento ao desenvolvimento acadêmico, às vezes, camufla alguns contornos opressivos que se devem à extrema verticalidade, ostensiva nesses espaços. Não falta, evidentemente, quem a justifique, afirmando que são os primeiros passos de estudantes nessa seara e a horizontalidade seria impraticável. De fato, faz-se necessário reconhecer a inexperiência de boa parte do corpo discente na iniciação científica, posto que, como o nome diz, estão iniciando essa caminhada. Ainda assim, é preciso considerar que já trazem sua própria bagagem. Amiúde, infelizmente, vivências anteriores acabam menosprezadas por atitudes cerceadoras de ideias cuja criticidade e criatividade se oponham às de quem está à frente dessas organizações. Julgamentos e depreciações à militância estudantil, ao envolvimento nas pautas sobre as quais a escrita se escora e à declaração do lugar de enunciação de quem pesquisa conseguem minar o entusiasmo de estudantes em prosseguir na carreira acadêmica. Esse ambiente científico eurocêntrico, por conseguinte, desmerece as contribuições de mulheres, pessoas trans, travestis, negras e não brancas, restringindo-as quanto aos temas sobre os quais expressar-se (hooks, 2017).

Se é bem verdade que há casos em que a orientação transforma-se em aval para que a pessoa orientadora agregue seu nome a trabalhos para os quais não contribuiu, efetivamente, sublinhamos que, por outro lado, as parcerias instigantes, também, se dão. Estas, que tivemos a sorte de formar, acontecem por meio de orientações ou associações entre pares, nas quais a escuta, as conversas, a troca de referências adubam um solo fértil para que as desavenças e o espírito autoritário esmaeçam. Um ambiente mais saudável se constrói, com efeito, a fim de proporcionar experiências em que a acolhida esteja presente, em um momento, especialmente, vulnerável: o ato de escrever.

Mudando um pouco o panorama, pensemos nos eventos acadêmicos e nos mais diversos espaços pelos quais passamos, no intuito de apresentar os resultados ou o andamento de nossas pesquisas. A partir dos diálogos com pares que demonstrem interesse no trabalho que estamos desenvolvendo ou por nossa própria iniciativa de contatar colegas, cujas investigações atraem nossa atenção, importantes alianças podem ser feitas. Tais vínculos, geralmente, levam a associações proveitosas no processo de escrita acadêmica colaborativa, posto que nos aliarmos com quem temos afinidade temática traz múltiplos benefícios. Abordagens teóricas similares, objetos de pesquisa que se aproximem, coletas de dados sobre o mesmo fenômeno ou metodologias em comum não raro promovem a motivação crucial para enfrentar a estruturação de um artigo, coletivamente. Além disso, traduzem-se em um excelente exercício, durante o qual as disputas egocêntricas, tão usuais no meio acadêmico, devem ser postas de lado, em prol da cooperação.

Nesse sentido, havendo afinidade em relação ao objeto de pesquisa, o fato de que as referências bibliográficas e as metodologias sejam diferentes, em vez de desestimular a adesão a um propósito de escrita em parceria, enriquece o processo, pois as lacunas de cada projeto poderão ser preenchidas por meio de um outro olhar, saindo um pouco da esfera de controle único da própria pessoa autora. De modo que é bem-vinda a união entre colegas do mesmo grupo de pesquisa ou que se conheceram através da elaboração de trabalhos advindos de projetos similares, inclusive entre diferentes universidades.

Fica patente, então, que um assunto que une duas ou mais pessoas para escrever possibilita uma troca de referenciais e trajetórias capaz de agregar maior pluralidade à produção final. Os cuidados, contudo, para que as vozes não sejam, demasiadamente, dissonantes entre si precisam acompanhar todo o processo de concepção da escrita coletiva. Há variadas maneiras de proceder e uma delas, sobretudo em textos com três ou mais pessoas autoras, parte do princípio de que, para haver harmonia, apenas uma pessoa deve redigir. Enquanto isso, as demais dão ideias, fazem fichamentos e resenhas essenciais de obras cujas citações serão usadas para reforçar a argumentação, participam do levantamento de dados e revisam, exaustivamente, o que vai sendo escrito.

Em consequência disso, o ato de “fatiar” o trabalho, dividindo cada parte do que será escrito entre quem participará da empreitada, tende a tornar o artigo um tanto desequilibrado, assimétrico. Observando o fato de que cada pessoa tem uma forma própria de usar a linguagem escrita, há o grave perigo de o produto final se assemelhar a um quebra-cabeças, o que talvez promova um desinteresse na leitura ou a descrença nos argumentos expostos, por falta de coesão entre eles, por mais que façam sentido. Uma forma desarmônica compromete a profundidade da expressão da temática, logo, o que se quer demonstrar corre o risco de perder o fio da meada e acabar truncado, impreciso.

Para evitar esse desfecho, no caso de que cada uma das pessoas autoras do trabalho resolvam escrever trechos de sua preferência, apenas uma delas ficará responsável por lapidar o que venha a ser agregado (que, posteriormente, terá de passar pela revisão minuciosa de todas). Dessa maneira, quem vier a ler não se perderá em meio às diferenças de estilo da composição final, posto que a prioridade será manter uma voz condutora do trabalho, que se mantenha afinada ao longo dele.

Por último, abordaremos uma das motivações não tão comentadas para aliar-se a alguém visando o desenvolvimento de um texto acadêmico, muito embora seja bastante usual: a afinidade pessoal. A priori, inexistem razões para que deixemos de buscar colegas, com quem tenhamos uma boa relação, para elaborar um artigo ou resenha, conjuntamente. Ainda que nossas pesquisas sigam abordagens diversas, não há por que desconsiderar a parceria, pois pode-se, sem grandes dificuldades, encontrar um assunto de interesse mútuo, que reúna especificidades de ambos projetos e que vá além.

Atenção às sutilezas em arranjos desse tipo, entretanto, faz parte da base para o bom andamento do trabalho, o que significa que, apesar de a afetividade ser uma questão central e um excelente incentivo, por si só, não basta para a realização plena da escrita compartilhada. Como o próprio nome indica, há a necessidade de muita disposição para coparticipar e, quando há uma relação prévia entre as pessoas autoras, pode ser mais delicado atentar para certas facetas.

Para que haja, realmente, uma parceria produtiva, as duas ou mais pessoas devem abrir-se ao diálogo, pois cada pequeno detalhe do projeto precisará ser conversado previamente e durante a sua realização, visando alinhar as ideias, as expectativas, o que cada pessoa autora fará e como pretendem cumprir os prazos estipulados. Também é essencial sentir-se confortável para fazer sugestões de mudanças sem que isso provoque mal-estar, saber aceitar críticas e fazê-las de modo cordial. As dúvidas que surgirem, no meio do processo, precisam ser resolvidas de forma coletiva. Fundamental ter em mente que todas as partes envolvidas devem contribuir com as tarefas de pensar, compor, revisar e criticar, além de responsabilizar-se pelo conteúdo publicado.

Há inúmeras vantagens, como o fato de que a experimentação se amplia em textos feitos em dupla ou trio, pois quem escreve sente-se mais confiante para apostar em novos caminhos. O trabalho, em geral, denso, que exige a escrita de um artigo, por exemplo, suaviza seu peso ao ser partilhado. Existem maiores chances de que as revisões sejam mais apuradas e o exercício necessário de elaboração de textos acadêmicos ocorra mais prazerosamente, posto que há troca de ideias, reflexão sobre melhorias e apoio mútuo, durante o processo. Pode ser, igualmente, menos amargo lidar com as recusas e mais emocionante receber os aceites.

Em suma, planejar ações com pessoas próximas ou de diferentes afiliações, sabendo lidar com os obstáculos, inerentes a todas as atividades humanas, ou não sabendo, mas tendo disposição para aprender a superá-los, contribui, imensamente, para o amadurecimento e para a ampliação das redes de contato e companheirismo.

 

 

Referências

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. - 2 ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

 

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Como citar este artigo:

PEREIRA, Anamaria Ladeira; PEREIRA, Camila Santos Pereira. Escrita acadêmica em coautoriaNotícias, Revista Docência e Cibercultura, fevereiro de 2021 online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: <>. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção NotíciasFelipe Carvalho e Edméa Santos