A natureza (selvagem) somos nós

2020-07-28

Autoria: Fernanda Amorim Accorsi

 

A live

Link: https://www.instagram.com/p/CCUd8t6Fmap/

Neste ensaio, apresento algumas elucubrações produzidas para a live realizada junto ao projeto de extensão Cineatro, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), a respeito do filme “Na Natureza Selvagem” (2008), de Sean Penn. A live ocorreu no dia seis de julho de 2020, a convite da professora Beatriz Pazini Ferreira, coordenadora do projeto, em que articulei a crise sanitária do Covid-19 ao enredo do filme, ao vivo, durante 55 minutos pela rede social Instagram. A conversa está integralmente disponível no canal do Youtube do Cineatro.

Você pode perguntar: qual a relação entre o drama cinematográfico baseado em uma história real com a pandemia do Covid-19? A referida pergunta vai ser respondida nas próximas linhas, ancorada nas referências teóricas e discussões do Grupo de Pesquisas e Estudos em Práticas Educativas, Corpo e Ambiente (PEPECA), coordenado por mim, na Universidade Federal de Sergipe (UFS).  

Reconheço a pandemia causada pelo Covid-19 como uma tragédia social, mas entendo também a urgência de pensa-la como consequência dos hábitos, estilos e desejos humanos. O filme de 2008 apresenta a romantização da dor, do medo, da solidão, sentimentos e sensações vivenciados, agora, por nós, em 2020. O filme em questão apresenta o privilégio do homem branco, jovem, de classe média que pôde abrir mão do conforto da vida em busca de descoberta pessoal. Ele não teme ataques ao seu corpo, seu modo de ser, sua vida. Logo, ele desfruta do privilégio de ser homem e cisgênero, aspecto social já conhecido por nós, mulheres (ACCORSI, MAIO, 2019).

“Na natureza selvagem” levanta temas como o consumo de carne, a desigualdade social e a identidade cultural, problematizados a seguir. Temas apresentados entrelinhas, de modo sutil, analisados a partir de um referencial teórico, que aparece nos próximos parágrafos, inclusive, como possibilidades de outras leituras sobre os assuntos.  

Como em uma parábola, o filme, assim como o Covid-19, ressalta que não podemos dominar a natureza, que nosso modus vivendi predatório e parasita nos coloca em uma condição vulnerável enquanto ser humano (KRENAK, 2019). Somos ensinados/as, desde a tenra infância, a retirar, a extrair, a explorar e, ao mesmo tempo, a contemplar, a adorar a natureza. Ações apreendidas que são contraditórias, afinal como adorar o que está sendo devastado?

Para contrapor a referida contradição, é necessário repensar a concepção de natureza, levando em conta a ideia de Pacha Mama, cuja perspectiva advém de povos andinos e amazônicos, que não separam sociedade e natureza, os quais propõem uma “comunidade social e ecologicamente ampliada”, onde seja possível a convivência entre seres vivos humanos e não humanos baseada na retribuição (GUDYNAS, 2019).

A carne

No filme, a caça, a morte e a tentativa de preparação de um alce como alimento foi significada como “a pior tragédia da vida” do protagonista, uma vez que ele abate o animal, mas não consegue comê-lo. Na realidade vigente, o churrasco, a carne comercializada nos mercados não nos apresenta o animal, o ser vivo, mas seu pedaço, sem vida, sem dor, dissociando a relação entre vida e animal, como se minimizasse a morte dolorosa e violenta daquele bicho.

Assim como no filme, nos churrascos e festas entre amigos/as, a carne nem sempre é honrada, quando a preparação não dá certo e ela se torna lixo, quando o ato de comer é sinônimo de socialização e por isso, a carne é esquecida na churrasqueira, tostada e desperdiçada.  

“A carne é um símbolo do patriarcado”, escreveu Adams (2018, p. 73), retirar a carne do cardápio, desequilibrar a pecuária, é desestabilizar a “[...] cultura patriarcal mais ampla”, em razão do ato de caçar, abater e preparar sejam, majoritariamente, masculinas e representantes da masculinidade que deseja possuir para dominar. Não por acaso o agronegócio, aquele em larga escala, trabalha com o desmatamento, com os madeireiros e garimpeiros, que invadem terras indígenas e usurpam da natureza a sua naturalidade. Esta usurpação acarreta consequências, desequilíbrios, os quais temos que lidar, uns mais, outros menos, afinal o vírus novo é uma consequência do nosso estilo de vida predatório, fundado na desigualdade social, mas também na desigualdade étnica/racial, de classe, gênero e geração, para citar apenas alguns exemplos (OLIVEIRA, 2018).

A desigualdade

“Na natureza selvagem” há a menção de que o protagonista não precisaria, para sua descoberta pessoal e busca de liberdade, de telefone, cigarros, piscina, carros, cartão de crédito e documentos pessoais. Adereços e artefatos que são objetos de consumo, de desejo e, ainda, de ordem imperativa para a vida social que os sujeitos urbanos estão acostumados. No entanto, a pandemia, de uma maneira diferente a do filme, significou alguns adereços, algumas ilusões, quando fechou lojas, shopping e separou serviços essenciais e serviços não essenciais.

O excesso de uns e umas pode ser a falta de outros e outras, na mesma perspectiva que o excesso de bens materiais pode nos afastar da essência de nossa existência, como mostra o filme, como mostra o vírus. O filme põe em xeque o estilo de vida capitalista, o estilo de vida baseado no consumo de bens materiais; já o vírus agrava a desigualdade de acesso entre as pessoas, dividindo entre aquelas que têm acesso ao salário, aquelas que não têm, as que têm acesso à saúde, à educação, à higiene, e quem não tem.

As identidades

Há dois momentos do filme que merecem destaque: quando o protagonista reflete sobre sua existência, percebendo o que importa e como importa e, em seguida, quando ele se vê preso na natureza, quando percebe que não vai conseguir fugir da situação. São os dois momentos que ilustram as pluralidades desiguais de vivências durante a pandemia. Lembrando que não são as únicas. A primeira faz referência às pessoas que puderam fazer uma reflexão existencial sobre o momento pandêmico, puderam fazer jus ao jargão “fique em casa”; a segunda são aquelas que não tiveram para onde fugir, não puderem ausentar-se da situação de perigo como deslocar-se em transporte coletivo para o trabalho, aglomerar-se dentro dos ônibus enquanto ouviam “evitem aglomerações”, aquelas que reconheciam a importância de “lavem as mãos”, mas não tinham água corrente saindo pela torneira.

Logo, as identidades são plurais, o vírus talvez não saiba disso, mas o sistema em que ele foi propagado entende que há diferença entre quem pode se proteger e quem não pode. Enquanto “Na natureza selvagem”, o encontro do homem jovem com o homem velho é marcado por trocas, sabedoria, respeito e aprendizados, temos em nosso país a cultura da “velhofobia”, ódio àquele/a que não possui mais força de trabalho, que tem sido tratado como descartável, como sinônimo de custos ao Estado, como grupo de risco. São os detentores/as da história, do conhecimento do cotidiano, já castigados por aposentadorias ínfimas, negligenciados pela sociedade que prevê equivocadamente a juventude como imperativo ético de existência (BEAUVOIR, 2018).

No entanto, um possível diálogo entre o filme e as condições de vida na pandemia é verbalizado pelo protagonista nos momentos finais com a seguinte frase: “não é sobre ser forte, é sobre sentir-se forte!” Diante disso, desejo força a quem chegou comigo até aqui neste ensaio, pois a natureza selvagem somos nós, quando depredamos, mas podemos plantar, quando extraímos em vez de proteger, quando fingimos costume diante da aflição e da sensação de insegurança.

Sensações que podem soar como novas para algumas pessoas, mas são velhas conhecidas dos animais silvestres (traficados), dos peixes sufocados pela poluição dos rios, dos povos tradicionais, cujas reservas são invadidas e atacadas com a justificativa da necessidade de construção de hidrelétricas. A natureza não é o parque que está fechado, não é a praia esvaziada, nem as montanhas interditadas, a natureza somos nós, basta reconhecermos. Como ensina Krenak (2019, p.63), podemos “[n]ão eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos”.

As lives têm sido divertidos paraquedas, tanto para quem produz como para quem assiste. São transmissões ao vivo que fortalecem discussões, aproximam pessoas e, assim como o filme em questão, as lives disponibilizam reflexões sobre o momento que vivemos.

 

Referências

ACCORSI, Fernanda Amorim. MAIO, Eliane Rose. O objeto jogado do quarto andar era um corpo – de mulher. Diversidade e Educação, v. 7, n. 1, set. 2019, p. 27-38.

ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: uma teoria feminista-vegetariana. São Paulo: Alaúde Editorial, 2018.

BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

GUDYNAS, Eduardo. Direitos da Natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. São Paulo: Elefante, 2019.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

OLIVEIRA, Marize Vieira de. Feminismo indígena. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 301-324.

 

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ACCORSI, Fernanda Amorim. A natureza (selvagem) somos nós. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, julho de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Felipe da Silva Ponte de CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Oliveira dos Santos