Paulo Freire on-line: Um ensaio estético
Autoria: Aristóteles Berino e Talita Cabral
Para a Turma 1 do curso de extensão Paulo Freire em Tempos de Distanciamento Social (UFRRJ/2020)
As aulas no Instituto Multidisciplinar da UFRRJ mal haviam começado no primeiro semestre de 2020 quando a pandemia da Covid-19 nos mandou para casa. O retorno às aulas presenciais ainda não sabemos quando poderá ocorrer. Segue agora na universidade a discussão sobre a adoção dos chamados Estudos Continuados Emergenciais. Foi nesse cenário de emergência epidemiológica e dúvidas sobre o que fazer para a continuidade dos estudos que a Escola de Extensão da UFRRJ abriu uma chamada para propostas de cursos e eventos remotos que pudessem atender ao interesse da comunidade acadêmica por alguma continuidade das suas atividades educacionais. Como resultado, no dia 30 de abril teve início o curso Paulo Freire em Tempos de Distanciamento Social, lecionado pelo professor Aristóteles Berino. Talita Cabral, orientanda do docente no mestrado, foi uma das alunas do curso.
Tratava-se de um desafio inédito para nós dois, que nunca havíamos participado de um curso com encontros on-line, embora já tivéssemos experimentado com satisfação irregular a EAD. Como seria estudar Paulo Freire on-line? Neste breve artigo, o propósito é conversar exatamente sobre a nossa experiência no curso. Destes dois lugares, docente e discente, partimos já do pressuposto de que não seria nada melhor ou pior do que o encontro presencial, mas, sobretudo, algo diferente, com oportunidades e dificuldades próprias da situação. O fato incontornável é que a pandemia provocou uma curiosidade para experimentar algo desconhecido, mas que nos parecia possível de ser percorrido.
Descobertas
No seu livro Pedagogia da autonomia, há uma recordação escolar de Paulo Freire (2015, p. 43) que me pareceu interessante citar nesta breve conversa. Paulo Freire narra um episódio em que fala da sua insegurança e como o gesto de um professor repercutiu muito afirmativamente para ele: “Olhando ou re-olhando o meu texto, sem dizer palavra, balança a cabeça numa demonstração de respeito. O gesto do professor valeu mais do que a nota dez que atribuía à minha redação”. Paulo Freire (ibidem, p. 44/45) segue falando-nos sobre a importância das “tramas do espaço escolar" e da “pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço”. E agora, on-line, como o corpo se presentifica na relação entre o educador e o educando? O espaço da educação, como se afigura remotamente? Qual a forma do encontro no ensino on-line? Apesar das dúvidas, com Paulo Freire (ibidem, p. 46), o que não poderíamos recusar é que “não há prática docente verdadeira que não seja ela mesma um ensaio estético e ético”. A ideia de um “ensaio estético e ético” foi a chave para ingressar em outra experiência.
O nome do curso, Paulo Freire em Tempos de Distanciamento Social, foi imaginado para explorar a ambivalência do termo “distanciamento social” durante a pandemia. Distanciamento social pode ser lido como resultado das políticas e práticas do neoliberalismo. É algo que se tornou ainda mais identificável, muito visível até, durante a pandemia. No entanto, de outro modo, distanciamento social é também, durante a pandemia, um cuidado para conter o contágio. A proposta era percorrer a obra de Paulo Freire através de cinco livros que permitissem pensar a sua atualidade e até a sua importância agora, diante da emergência epidemiológica. Os livros foram: Pedagogia da indignação (2000), Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1970), Pedagogia da esperança (1992) e Pedagogia da autonomia (1996). Cinco livros para discutir a concepção de educação em Paulo Freire e a contemporaneidade do seu legado diante dos distanciamentos colocados em questão, a indiferença, e o seu contrário, a atenção.
Agora que me detenho em discutir a experiência que foi o curso como uma prática pedagógica on-line, me ocorre ainda a imagem do distanciamento como um entendimento paradoxal do “remoto”. Paulo Freire em Tempos de Ensino Remoto, eu poderia ter pensando também. No caso, remoto não possui também uma ambivalência? Trata-se, na pandemia, de um distanciamento que tanto nos afasta como nos aproxima através de uma qualidade possível da educação mediada por tecnologias digitais. Paulo Freire foi um educador do século XX e voltar à sua obra para mantê-lo atual e relevante no século XXI significa considerar sua apropriação diante das condições da nossa época. Não uma submissão a um suposto imperativo do tempo, mas uma exploração do existente e das suas contradições, apostando sempre nas mudanças que poderiam responder às demandas sociais mais legítimas, por autonomia e libertação, portanto.
O curso foi programado para 10 encontros de 3 horas cada. Ofereci 35 vagas, que em poucas horas foram preenchidas. Aproximadamente 17 concluíram o curso, a desistência foi significativa. Ainda não analisei mais detidamente os motivos prováveis de um índice tão elevado de desistência. Por outro lado, para o grupo que permaneceu a participação foi bastante ativa. Os encontros duravam as 3 horas programadas. Utilizei a plataforma RNP Web Conferência para os encontros on-line. Com um canal de bate-papo simultâneo à conversação on-line logo vi que seria impossível administrar sozinho a aula. Contei sempre com o auxílio da minha orientanda do doutorado, Janaína Rodrigues. Ela acompanhava a conversa pelo bate-papo e anotava as inscrições para a participação oral, que na experiência on-line necessita de cuidados adicionais, porque o microfone aberto para mais de uma pessoa é sempre desconfortável para os participantes. Janaína usou a comunicação com os outros estudantes pelo Whatsapp também, para favorecer as mediações necessárias.
A dinâmica dos encontros era a discussão dos textos seguindo o cronograma de leituras. Geralmente, eu realizava uma breve introdução e logo depois os participantes apresentam suas questões. Algo que realmente me surpreendeu foi a intensidade das discussões. Como precisava ficar durante todo o tempo atento, a exigência de concentração foi bastante exaustiva, mental e fisicamente. Logo entendi que para cursos regulares (disciplinas da graduação e pós-graduação), o on-line não é ideal para 100% da carga horária de um curso. Inclusive, usei também como suporte um grupo que já possuía no Facebook para o meu ensino de Paulo Freire em outros cursos que já havia lecionado presencialmente. Ali eu usei o Arquivo do grupo para a partilha de conteúdos em PDF. Ao longo da semana também me comunicava através da Linha do Tempo para dar alguns informes, além de compartilhar notícias sobre eventos diversos a respeito do Paulo Freire. Os participantes do curso também publicavam com o mesmo propósito de comunicação e informação.
O uso de algum grupo no Facebook já fazia parte das minhas práticas de ensino e, certamente, para um grande número de professores também. Redes sociais já fazem parte dos nossos cotidianos educacionais. A aula presencial já possuía uma plasticidade dada pela relação que mantinha, de modo complementar ao menos, com as tecnologias digitais. O que a pandemia fez foi nos obrigar a repensar essa plasticidade a partir da cibercultura e não mais do presencial. Mesmo aqueles que hoje são absolutamente contrários à continuidade dos estudos regulares através de alguma modalidade de ensino remoto fazem e/ou assistem às “lives" para uma conexão com a vida profissional e acadêmica. Acredito, inclusive, que mesmo o retorno às aulas presenciais será feito indelevelmente com práticas digitais também, que estarão ainda mais estabelecidas nas correspondências pedagógicas praticadas do que no período pré-pandemia.
Uma dúvida que aparece muitas vezes a respeito da educação escolar mediada por tecnologias digitais é a respeito do aspecto humanista da educação presencial, como no exemplo que usei inicialmente a partir do próprio Paulo Freire sobre o aspecto marcante que são os gestos e as emoções que transcorrem nas aulas e a consequente admissão da tessitura do espaço escolar como condição da educação, para além dos conteúdos escolares fixados. No entanto, é Paulo Freire mesmo que vai observar sobre o experimento estético que é a docência, que poderá ser realizado, penso agora, nos diferentes modos em que poderá ocorrer. A estética como propriedade da atividade docente nos coloca no campo da criação e não da conclusão do que é o humano. Dizer humano, para Paulo Freire, não é uma recorrência a um ser acabado e finalizado. Pelo contrário, o lado humano é o da descoberta, das possibilidades que se abrem.
Importante fazer uma ressalva como uma importante nota. O uso de tecnologias digitais e a prática da cibercultura em uma atividade de ensino contêm desafios e questões que ultrapassam o objetivo mais direto da nossa conversa aqui sobre a experiência on-line em curso de extensão universitária. Esperamos voltar mais amplamente ao assunto em outro artigo. Agora, estamos exclusivamente nos detendo em alguns registros pedagógicos mais práticos de um curso livre que foi proposto para profissionais da educação e estudantes da graduação e pós-graduação, da UFRRJ e de outras instituições também. Feita a ressalva, na minha avaliação, a experiência on-line com Paulo Freire foi bastante satisfatória para o meu trabalho como educador e acrescentará conhecimentos à minha docência para o que virá: o “novo normal”?
Aproximações
Recentemente, circulou pelas redes sociais um texto que conta um episódio, ocorrido em uma aula de Antropologia, em que um aluno perguntou à antropóloga norte-americana Margaret Mead o que ela considerava ser a primeira evidência da civilização humana. No momento em que a pergunta foi feita, alguns debates antropológicos apontavam diferentes fatos que poderiam ser considerados o tal marco civilizatório: o surgimento da linguagem simbólica (como a capacidade de usar metáforas e interpretar, por exemplo), a invenção de ferramentas de caça, a criação de artefatos religiosos, a percepção de que alguns comportamentos são inaceitáveis (como o incesto, por exemplo), dentre outros. No entanto, a resposta da professora apontou para outra direção. Segundo ela, o marco civilizatório que representa o início da humanidade estava representado em um fêmur, encontrado em um sítio arqueológico há aproximadamente 15 mil anos. O fêmur em questão possuía uma marca de fratura que havia sido curada. A explicação de Mead é fantástica: nenhum animal é capaz de sobreviver com um osso de fêmur fraturado. Com esta enfermidade, ele seria facilmente morto por outro animal, ou morreria por infecção antes que o osso pudesse se refazer em seu organismo. Desse modo, um osso fêmur curado datado de 15 mil anos demonstra que quem o fraturou recebeu cuidados de seus pares. Cuidaram, protegeram, e o alimentaram por um bom período de tempo (este é um processo de difícil cicatrização), até que a calcificação fosse possível. Assim, o que a antropóloga nos diz é que o que marca a civilização humana é o primeiro registro que se tem notícia do cuidado de um ser humano com outro.
Menciono este texto para chegar onde preciso: na experiência do curso Paulo freire em Tempos de Distanciamento Social. Como mencionado inicialmente pelo professor Aristóteles, o curso surgiu como uma alternativa de estudo em meio a uma realidade, posta pela pandemia da Covid-19, em que não é possível mantermos o contato social. Assim, as aulas presenciais foram suspensas e não temos ainda, hoje, uma previsão de seu retorno.
O “isolamento social” ou “distanciamento social” se tornou, portanto, uma necessidade, não uma escolha. Ironicamente, nós, que somos seres sociais e históricos, que precisamos uns dos outros para sermos civilizados e humanizados, precisamos nos manter distantes como uma condição de nossa sobrevivência. Precisamos disso para nos proteger e para proteger os demais. Desse modo, a solução que nos parece possível mora na reinvenção. Precisamos, então, recriar nossas relações, nossas atividades, nosso cotidiano, de modo que o distanciamento seja somente “físico” e não “social”, nesse sentido.
Se o que nos humaniza é a interação com o outro e com o mundo, precisamos reinventar as formas de estarmos presentes e nos fazermos presentes nele. Paulo Freire, no livro Pedagogia da Autonomia – sobre o qual conversamos no último encontro do curso – fala, logo nas “Primeiras Palavras”, sobre como a presença humana no mundo é algo “original e singular”. “Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe” (FREIRE, 2015, p. 20). No mesmo livro, Edina Castro de Oliveira explica a razão de ter aceitado o convite (e o desafio) de escrever o Prefácio. Movida por uma das “exigências da ação educativo-crítica”, defendida pelo próprio Paulo Freire, ela justifica o aceite: “testemunhar a minha disponibilidade à vida e os seus chamamentos”. Refletindo sobre estes dois trechos, penso que o curso foi, portanto, uma possibilidade. Uma possibilidade de nos apresentarmos disponíveis ao “chamamento” da vida agora, desse “novo normal”, que surgiu com a existência de uma inimaginável pandemia. Uma possibilidade de recriação de um cotidiano que nos permitiu estar perto socialmente, em interação, ainda que distantes fisicamente. Uma possibilidade de transformação do nosso lar em um espaço também de debates e aprendizagens. E, ainda, uma possibilidade de cuidarmos uns dos outros nesses tempos difíceis.
Foram muitos os momentos de partilha e interação. Em outras experiências que tive com o “ensino mediado por tecnologias”, a interação não acontecia, pois o formato proposto não permitia. Neste curso, foi o oposto: inicialmente, nos conhecemos, nos apresentamos, nos olhamos, nos ouvimos. Conversamos no chat, trocamos ideia pelo Facebook e compartilhamos materiais. Isso, certamente, nos aproximou. Me senti próxima do professor, dos alunos, de suas histórias, de seus comentários, ainda que estivéssemos cada um em sua própria casa, separados pela tela de um computador e alguns quilômetros de distância. O “distanciamento social” se transformou em “aproximação virtual”, por fim, e o saldo disso é absolutamente positivo.
Construir memórias faz parte da vida. É inevitável, inclusive. E, nesse aspecto, as construções são individuais e intransferíveis. Me lembrarei das discussões em torno da “esperança”, do “inédito viável” e da “situação-limite” talvez com muito mais detalhes do que os demais presentes. Talvez porque sejam aspectos de maior interesse para mim. O fato é que para além das lembranças que se transformam em conhecimento, existem em nós as memórias afetivas. Estas transformam “o nosso ser e estar no mundo”. Transformam o que somos. Transformam as nossas relações. Transformam as nossas experiências. E transformam as nossas possibilidades. Sobre estas, eu posso dizer que o curso Paulo freire em Tempos de Distanciamento Social foi, para mim, “um marco civilizatório” de um “novo normal”. Em tempos difíceis como estes que estamos atravessando, me encontrar nas tardes de quinta com um grupo disposto a “cuidar do fêmur” um do outro foi algo inesquecível. A pandemia trouxe medo, agonia, perdas, preocupações, ansiedade, tristeza e quase toda – se não toda – a caixa de Pandora. Mas no fundo da caixa há a esperança. Não podemos nos esquecer. Talvez seja a mesma esperança de que nos fala Paulo Freire. Ou aquela “meninazinha de olhos verdes” do Drummond. Ou essa que aparece na gente quando o fêmur cuidado pelo outro começa a calcificar. Quando a pandemia passar, vou me lembrar de que também senti esperança. De que o vírus nos impôs algumas condições e limitações, mas que fomos criativos e reinventamos a realidade. Como aprendi com o “Paulinho” (nome carinhoso que demos ao Paulo Freire no curso): “[...] somos seres condicionados mas não determinados. [...] a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, [...] o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável” (ibidem, p. 20).
Fonte: Arquivo pessoal de Vivian Martins
Referência
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 51ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
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Como citar este artigo:
BERINO, Aristóteles; CABRAL, Talita. Paulo Freire on-line: Um ensaio estético. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, julho de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias: Felipe da Silva Ponte de Carvalho, Mariano Pimentel e Edméa Oliveira dos Santos