ENTRE TELAS E TELHAS: A EXCLUSÃO DIGITAL NA PANDEMIA

16-09-2025

Autoria: Léo Bentes dos Santos

“Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.” (Freire, 1996, p. 29)

Em uma zona periférica da cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Madureira (zona norte), o jovem Ruan, de 15 anos, estava na laje de sua humilde residência, em uma manhã de segunda-feira, com o céu nublado. O garoto olhava para o céu e esticava seus braços. Há quem possa pensar que Ruan estava tentando tocar o céu; afinal de contas, quando se é jovem, pensando de maneira metafórica, há sempre uma tentativa de alcançar o inalcançável. No entanto, no caso de Ruan, ele tinha em mãos um celular, e estava esticando os braços e olhando para cima porque na verdade, estava procurando sinal de internet para que pudesse assistir a sua aula da escola, que ocorria por telas. Ele consegue se conectar à aula, mas se depara com problemas como imagem congelada, voz do professor falhando, internet caindo, entre outros. O jovem tenta ir para outro ponto, mas de nada adianta, e ele começa a ficar aflito e a falar para si “não posso ficar sem assistir aula, preciso me conectar”. Mas, ele não desiste e persiste.

Sua grande preocupação em não perder a aula se devia ao fato de que o jovem não queria perder o conteúdo de aula, por ser o componente para sua aprendizagem. “Em muitos casos, eu não lembrava do conteúdo, mas tudo que eu lembrava eu escrevia, mesmo sem o slide estar lá pra eu copiar”, relatou Ruan um pouco sem graça.

Desafios enfrentados pelos estudantes

Durante a crise sanitária de Covid-19 no ano de 2020, o cenário descrito acima passou a ser recorrente no campo educacional. Diversos setores da sociedade foram gravemente afetados pela pandemia, e na educação, não foi diferente. Milhares de estudantes brasileiros se viram na necessidade de encontrar métodos improvisados para que pudessem estudar e assistir aulas. Muitos deles faziam de locais como padarias, praças, calçadas, esquinas, telhados, etc., salas de aula improvisadas, na tentativa de encontrarem sinal de internet, para que o acesso às aulas e estudos não fosse interrompido. Por outro lado, também houve vários casos de estudantes que conseguiam se conectar facilmente e rapidamente, do conforto de suas casas, por meio de seus celulares, notebooks, tablets, etc. Dessa forma, nesse período, houve uma desigualdade de acesso à tecnologia, que se agravou ainda mais na pandemia; enquanto uma parcela de alunos tinha fácil acesso à internet da tela de suas casas, outra tinha que buscar tal acesso das telhas. Não houve equidade.

Enquanto alguns alunos tinham o privilégio do fácil acesso à internet e aos recursos digitais, em um ambiente calmo e com ótima conexão de Wi-Fi para o acompanhamento às aulas, outros dividiam celular com os irmãos ou dependiam de boa conexão de rede de vizinhos generosos, e em muitos casos, dependiam de pacotes limitados de dados e do celular. 

Dados do IBGE mostram que mais de 4,8 milhões de crianças e adolescentes, no ensino remoto – modelo de ensino emergencial e não planejado tido como solução imediata para a continuidade das aulas em meio à pandemia – não tinham acesso à internet em casa nesse período. O documentário Desconectados: os impactos da pandemia na educação brasileira (2022), por meio de imagem, som e narrativas, evidencia que esses números não são apenas dados estatísticos, retratando claramente todas as dificuldades enfrentadas por docentes e estudantes nesse período no ensino-aprendizado.

A pandemia de Covid-19 forçou uma mudança muito rápida no âmbito educacional e totalmente inesperada, exigindo uma reconstrução. Instituições de ensino e educadores tiveram que ir em busca de soluções imediatas para a continuidade do ensino, com o ensino remoto. Pela falta de presença física e pelo uso dos dispositivos digitais, a educação também assumiu o formato de ensino híbrido, “em que não existe uma forma única de aprender e na qual a aprendizagem é um processo contínuo, que ocorre de diferentes formas, em diferentes espaços.” (Bacich; Neto; Trevisani, 2015, p. 43). Cada estudante e docente se encontrava em um local distinto no momento da aula. Essa modalidade, embora tenha trazido novas possibilidades, também trouxe algumas dificuldades ao contexto docente.

Desafios enfrentados pelos docentes

Um dos principais desafios enfrentados pelos professores nesse modelo era ter que saber lidar com o vazio deixado pelos estudantes, que por diversas vezes, não abriam suas câmeras e microfones, fazendo com que o professor desse aula para o silêncio e sem saber se os alunos estavam de fato assistindo aula ou se estavam conectados à aula apenas de maneira protocolar. “Às vezes eu falava por uma hora sem saber se alguém estava me ouvindo. Eu me sentia como se não estivesse dando aula para ninguém”, relata a professora Marilene, evidenciando que o ensino remoto/híbrido mudou a realidade dos docentes e forçou uma nova adaptação pedagógica.

No documentário Desconectados: os impactos da pandemia na educação brasileira (2022), essa realidade é retratada com precisão. De um lado, os docentes tentam ensinar e o único retorno recebido é o silêncio; do outro, alunos tentam aprendem mesmo fora das condições ideais mínimas. O filme mostra a imagem de um aluno sentado no telhado com um caderno no colo e tentando buscar sinal de internet com o celular. Tanto docentes quanto alunos enfrentaram problemas diversos.

Ainda no âmbito docente, houve também o problema de que muitos professores não familiarizados com os dispositivos e recursos digitais se viram na obrigação de se adaptar a eles, o que para muitos deles não foi fácil. O desafio não estava só em ter habilidades com tais dispositivos e recursos e saber fazer uso deles, mas também em aliar as práticas pedagógicas a eles, de modo a oferecer um ensino de qualidade para a boa aprendizagem dos alunos. Por estarem mais adaptados ao presencial, muitos deles não tinham essas habilidades, e na pandemia, não houve tempo para eles buscarem cursos específicos sobre como fazer uso dos dispositivos e recursos digitais e como trabalhar com eles pedagogicamente. As coisas ocorreram na base do improviso.

É válido lembrar que no âmbito presencial do ensino, professores estavam mais adaptados ao ensino tradicional, isto é, aquele em que o professor é figura central do ensino e os alunos são seres passivos. O professor transmite o conhecimento e os alunos apenas o recebem, memorizam, repetem e fixam. Isso se refletiu no âmbito do ensino remoto. Como não sabiam como trabalhar pedagogicamente com os dispositivos e recursos digitais, o caminho encontrado pelos docentes foi o de seguirem vinculados aos métodos tradicionais. Entretanto, “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” (Freire, 1996, p. 21). No contexto da pandemia, isso configurou um grande desafio à prática docente: o de pensar na questão da inovação didático-pedagógica e fazer dos alunos seres ativos no contexto da aprendizagem.

E depois da pandemia? O que aconteceu?

Bem, depois da “tempestade” provocada pela pandemia de Covid-19, com tempos difíceis, sombrios e desafiadores para todos, muitas escolas passaram a adotar o modelo híbrido de ensino, misturando o presencial e o online. De maneira forçada, o Brasil aprendeu que para além dos livros e transposição do saber, a educação contemporânea exige que os recursos tecnológicos também contemplem esse contexto. Assim, com a volta às aulas presenciais, somos levados a refletir: o que aprendemos com a exclusão digital? Ainda faremos de conta que nada disso ocorreu ou vamos tirar o que aconteceu como aprendizado para que políticas e práticas educativas mais inclusivas sejam repensadas? Essas são questões importantes a se pensar, pois a pandemia trouxe uma defasagem que ainda será sentida por algum tempo.

É sempre importante ressaltar que a educação é um direito de todos, independente de qualquer coisa. Todos os indivíduos que integram a sociedade têm o direito de estar incluídos nela, em qualquer esfera. Pensar em políticas públicas inclusivas na educação é algo necessário, pois o acesso a ela deve ocorrer em equidade para todos. Todo e qualquer tipo de desigualdade na educação deve ser combatido.

Ruan, o garoto da laje, segue estudando, e tem como sonho se tornar, no futuro, um médico. Sua atitude de subir ate a laje, erguer o braço e buscar sinal de internet é um gesto claro da geração atual: o de resistência e que desistir não é um caminho. Para alcançar o céu, é preciso manter a cabeça e o braço erguidos. Com esse tipo de cena se repetindo em tantas periferias brasileiras, o que se pode tirar de lição é que, sem inclusão digital efetiva, o ensino híbrido persistirá com a desigualdade.

 

REFERÊNCIAS

BACICH, Lilian; NETO, Adolfo Tanzi; TREVISANI, Fernando de Mello. Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação. Porto Alegre: Penso, 2015.

DESCONECTADOS: os impactos da pandemia na educação brasileira. Direção: Pedro Ladeira; Paulo Saldaña; Ana Graziela Aguiar. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2022. Documentário. Disponível em: https://youtu.be/yGFxVyQ6eK0?si=GRYATeLIBSACVhRh. Acesso em: 7 set. 2025.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.   

 

Sobre autoria:

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Graduado em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), tendo publicado, durante esse período, um capítulo de um livro, voltado ao ramo da linguística. Realiza trabalho voluntário voltado ao ensino de técnicas de redação para estudantes carentes. Pós-graduado no Curso de Administração Escolar, Orientação Educacional e Supervisão Escolar pela Universidade Veiga de Almeida. Foi monitor da disciplina Estágio Supervisionado II em Letras - Português/Literatura, ministrada pela Prof Dr Cláudia Cristina Mendes Giesel, no ano de 2020.2. Possui um mestrado pela Universidade Estácio de Sá na área de educação, voltado ao campo das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação). Publicou, durante o período de mestrado, um artigo de revista, voltado às tecnologias digitais e ensino de Língua Portuguesa na formação docente. Atualmente, está cursando uma pós-graduação Lato Sensu Ead pela Universidade Estácio de Sá em Neuroaprendizagem, Metodologias e Tecnologias. Além disso, também pela Universidade Estácio e Sá, deu início ao doutorado na área de educação, tendo as TICPEs (Tecnologias de Informação e Comunicação nos Processos Educacionais) como linha de pesquisa.

Link do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7523184051880714

 

Como citar este artigo: 

SANTOS, Léo Bentes dos. ENTRE TELAS E TELHAS: A EXCLUSÃO DIGITAL NA PANDEMIA. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, setembro de 2025, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/re-doc/announcement/view/2026>. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Frieda Maria Marti, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel