POR UMA PEDAGOGIA DA PERGUNTA EM TEMPOS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Autoria: Glaucia da Silva Brito
“Há uma radicalidade na existência, que é a radicalidade do ato de perguntar.” (Freire; Faundez, 1985, p. 51)
A inteligência artificial (IA) já está transformando a forma como aprendemos, ensinamos e interagimos com o conhecimento. Ferramentas inteligentes podem personalizar a aprendizagem, automatizar tarefas burocráticas e expandir os limites da sala de aula. No entanto, junto com essas possibilidades, surgem desafios éticos, pedagógicos e humanos.
Os autores Azambuja e Silva nos alertam para os desafios éticos da Inteligência Artificial que são amplos e complexos, impactando a produção, a educação, as interações sociais, a política e a economia. Portanto
parece-nos imperativo para a universidade repensar seu posicionamento, suas estratégias pedagógicas e seus conteúdos fundamentais, não apenas para acompanhar essas transformações no mundo do trabalho, mas também para se inserir criativamente, tanto quanto possível, na modelagem do futuro. (Azambuja, Silva, 2024, p.2)
Esse posicionamento terá que dialogar diretamente com a demanda de formação de professores e alunos universitários para o uso da IA sem perder o viés ético, incluindo o desenvolvimento de competências para integrar a IA de forma crítica e reflexiva para retomarmos uma aprendizagem centrada no aluno e no aprender, e não somente no docente e no ensinar., como bem afirmou Freire (1999).
No entanto, como bem pontuou Santos (comunicação pessoal, 13 de março de 2025), é fundamental evitar a dicotomia entre ensinar e aprender, pois ambos são processos interdependentes. Ela ressaltou que, mesmo na ênfase no aprender, é necessário um ensino estruturado que favoreça essa construção, evitando a armadilha de reduzir a docência à mera transmissão. Assim, ensinar, na perspectiva freiriana, não é um ato mecânico de transferência de conhecimento, mas um exercício epistemológico de curiosidade e diálogo, essencial para a práxis docente. Portanto, ao integrar a IA na educação, é preciso considerar tanto o aprender quanto o ensinar, garantindo que a formação docente contemple uma abordagem crítica e reflexiva sobre o papel da tecnologia no ensino e na aprendizagem.
Como professores da educação superior, nos exigem sermos protagonistas nessa retomada da aprendizagem, mas temos que entender que não se trata apenas de usar a tecnologia, mas de compreender como podemos integrá-la de forma crítica e ética, preparando nossos alunos para um mundo no qual as tecnologias, como a, inteligência artificial é uma constante.
Tecnologias, segundo Bueno (1999, p. 87), é um processo contínuo
do qual a humanidade molda, modifica e gera a sua qualidade de vida. Há uma constante necessidade do ser humano de criar, a sua capacidade de interagir com a natureza, produzindo instrumentos desde os mais primitivos até os mais modernos, utilizando-se de um conhecimento científico para aplicar a técnica e modificar, melhorar, aprimorar os produtos oriundos do processo de interação deste com a natureza e com os demais seres humanos.
Brito; Purificação (2024, p. 65) analisam o conceito de Bueno relacionando-o ao uso pedagógico das tecnologias pois,
essa definição nos leva a refletir sobre como as ferramentas tecnológicas podem ser integradas de maneira significativa na educação de uma forma que modifique, melhore e aprimore o ensino e aprendizagem, tornando-os mais interativo, acessível e eficiente.
Essa integração no sentindo que apontam Scherer e Brito (2020) envolve não apenas a aprendizagem sobre as tecnologias disponíveis, mas também a compreensão de seus impactos éticos, sociais e epistemológicos na produção do conhecimento. Professores formados podem orientar os estudantes sobre como utilizar a IA para potencializar a aprendizagem sem comprometer princípios como autoria, integridade acadêmica e pensamento crítico.
Por onde iniciar a formação do professor da Educação superior para a integração das tecnologias da IA nas suas atividades administrativas e pedagógicas?
Destaco que a formação de professores do ensino superior na integração das tecnologias da IA em suas atividades administrativas e pedagógicas, tem que partir da perspectiva das "Tecnologias para Aprender" em vez das "Tecnologias para Ensinar". Isso significa superar a visão de que a tecnologia serve apenas para digitalizar ou substituir o professor, padronizar o currículo ou reduzir custos. É necessário compreender que a IA pode ampliar o potencial docente, levando a inovações educacionais na aprendizagem.
A formação deve estimular a exploração e a criação, desenvolvendo competências para que os professores utilizem a IA como ferramenta de pesquisa, criatividade e inovação em suas práticas pedagógicas. É fundamental que tanto docentes quanto discentes sejam empoderados no uso da tecnologia, criando experiências interativas e dinâmicas que engajem os alunos no processo de aprendizado, estimulando a autonomia e o pensamento crítico. A integração da IA deve ocorrer de forma gradual e contextualizada, respeitando a experiência dos professores e iniciando com ferramentas acessíveis e aplicáveis ao seu cotidiano acadêmico.
Alguns entusiastas propõem que se inicie a formação pela pedagogia do “prompt”, Cardoso (2024) conceitua esta pedagogia como sendo aquela que:
se baseia na utilização de prompts cuidadosamente elaborados para guiar e estimular a investigação e o pensamento crítico dos alunos. Mais do que simples instruções, os prompts assumem o papel de catalisadores da aprendizagem, abrindo portas para a criatividade, a resolução de problemas e o desenvolvimento de habilidades essenciais para o futuro.
Para este autor, os “prompts”, seriam perguntas abertas, desafios e ou problemas, mas esta ideia já foi elaborada por Freire e Faundez (1985) que apresentaram a ideia de uma pedagogia da pergunta como uma nova maneira de educar.
No entanto Silva (2024) afirma que Freire e Faundez já fundamentaram uma pedagogia da pergunta que nos ajudará nesta integração da IA na educação. Freire, segundo Silva, ficaria “entusiasmado com uma tecnologia que favorece sua pedagogia da pergunta”. Freire nos narra que estando em Buenos Aires participou de um programa de seminários diários com professores universitários, reitores, técnicos dos diferentes setores do Ministério, artistas, com visitas às áreas periféricas de Buenos Aires, em um domingo foi a periferia falar para as pessoas de uma associação de moradores.
[...] - Não vim aqui, disse eu, para fazer um discurso, mas para conversar. Farei perguntas, vocês também. As nossas respostas darão sentido ao tempo que passaremos juntos aqui.
Parei. Houve um silêncio cortado por um deles que falou:
- Muito bem, acho que é bom assim. Realmente não gostaríamos que você fizesse um discurso. Tenho já uma primeira pergunta.
- Pois não, disse eu.
- O que significa mesmo perguntar?
Aquele homem de uma favela de Buenos Aires, naquela manhã de domingo, fez a pergunta fundamental. Em lugar de responder sozinho, tentei arrancar do grupo o que lhe parecia ser perguntar. A cada momento procurava esclarecer um ou outro ponto, insistindo sobre a curiosidade que a pergunta expressa. Tu tens razão, talvez devesse ser este um dos pontos primeiros a ser discutido, num curso de formação com jovens que se preparam para ser professores: o que é perguntar. Insistamos, porém, em que o centro da questão não está em fazer com a pergunta “o que é perguntar?" um jogo intelectual, mas viver a pergunta, viver a indagação, viver a curiosidade, testemunhá-la ao estudante. O problema que, na verdade se coloca ao professor é o de, na prática, ir criando com os alunos o hábito, como virtude, de perguntar, de “espantar-se”. (Freire e Faundez, 1985, p. 25)
A pedagogia da pergunta de Freire, enfatizada pelo professor Marcos Silva, propõe uma abordagem educacional que valoriza a interrogação como um instrumento essencial para o aprendizado. Diferente da educação tradicional, baseada na transmissão de respostas prontas, essa abordagem incentiva a problematização, a reflexão crítica e a construção ativa do conhecimento pelos próprios estudantes.
Faundez destaca que é profundamente democrático começar a aprender a perguntar
- Penso, Paulo, que esse problema de ensinar ou de educar é fundamental e que, sem dúvida, relaciona-se ao que dizíamos antes: posições políticas bem determinadas em um mundo hierarquizado no qual os que detêm o poder detêm o saber, e ao professor a sociedade atual lhe oferece uma parte do saber e do poder. Este é um dos caminhos de reprodução da sociedade. Acho, então, que é profundamente democrático começar a aprender a perguntar. No ensino esqueceram-se das perguntas, tanto o professor como o aluno esqueceram-nas, e no meu entender todo conhecimento começa pela pergunta. Começa pelo que você, Paulo, chama de curiosidade.
Mas a curiosidade é uma pergunta! Tenho a impressão (e não sei se você concorda comigo) de que hoje o ensino, o saber, é resposta e não pergunta. (Freire e Faundez, 1985, p. 24)
Freire traz sua fala para o contexto da formação de jovens professores, a trago para o contexto do professor da educação superior e numa formação para o uso de IA nas suas atividades administrativas e pedagógicas, sendo necessário que um dos primeiros pontos a serem discutidos e praticados seja o ato de perguntar para a tecnologia.
A crítica presente no trecho da citação a de que o ensino atual se configura mais como resposta do que como pergunta é essencial, pois em um mundo saturado de informações e respostas instantâneas, muitas vezes proporcionadas pela tecnologia, torna-se ainda mais essencial resgatar o valor da pergunta, não como um fim em si mesma, mas como um motor para a construção do pensamento crítico e da autonomia intelectual no momento do uso das tecnologias de IA.
Silva (2024) nos apresenta quais seriam os fundamentos da pedagogia da pergunta, apresentada por Freire
- Educação problematizadora: A pergunta permite problematizar
- Pesquisa rigorosa: não se faz pesquisa sem pergunta.
- Curiosidade epistemológica: a pergunta expressa a curiosidade acadêmica.
- Dialogicidade: a pergunta alimenta o conversacional. Cada resposta é provocação a novas perguntas.
- Solidariedade Colaboração: A pergunta aprofunda a colaboração
- Criticidade: a pergunta empodera a análise critica.
Então pergunto ao ChatGPT
Eu perguntei:
No vídeo Pedagogia da Prompt (https://www.youtube.com/watch?v=9fGg4W-cRag) , o professor Marcos Silva enfatiza a importância dos fundamentos da abordagem da Pedagogia da Pergunta de Paulo Freire. Considerando esses princípios, você acredita que, para professores do ensino superior utilizarem chatbots de forma eficaz, é essencial que desenvolvam a habilidade de formular perguntas estratégicas e reflexivas?
O ChatGPT respondeu:
Sim, desenvolver a habilidade de formular perguntas estratégicas e reflexivas é fundamental para que professores do ensino superior utilizem chatbots de forma eficaz. A Pedagogia da Pergunta, baseada nos princípios de Paulo Freire, valoriza o questionamento como um meio de construção do conhecimento, promovendo uma aprendizagem ativa e crítica. Da mesma forma, a interação com chatbots depende da qualidade das perguntas formuladas, pois prompts bem elaborados direcionam a inteligência artificial para respostas mais relevantes e aprofundadas. Assim, ao aprimorar essa competência, os docentes não apenas exploram melhor as potencialidades tecnológicas, mas também incentivam nos alunos um pensamento mais crítico e autônomo. (ChatGPT, 2025)
Da resposta do ChatGPT destaco a ideia de que aprender a perguntar deve ser uma competência essencial no uso das tecnologias de IA, pois em um contexto em que a IA pode fornecer respostas rápidas e processar grandes volumes de informações, saber formular perguntas relevantes, críticas e bem estruturadas torna-se uma competência chave.
REFERÊNCIAS
AZAMBUJA, Celso Candido de; SILVA, Gabriel Ferreira da. Novos desafios para a educação na Era da Inteligência Artificial. Filos. Unisinos, São Leopoldo, 25(1):1-16, 2024 | e25107. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/27063. Acesso em 13 mar, 2025.
BRITO, Glaucia da Silva; PURIFICAÇÃO, Ivonélia da. Educação e novas tecnologias: um repensar. 3.ed. Curitiba: Editora Intersaberes, 2024.
BUENO, N. de L. O desafio da formação do educador para o ensino fundamental no contexto da educação tecnológica. 239 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia) – Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, Curitiba, 1999.
CARDOSO, Gêrlan. Novos paradigmas para a educação digital: pedagogia de prompt vs engenharia de prompt. Disponível em: https://pt.linkedin.com/pulse/novos-paradigmas-para-educação-digital-pedagogia-de-prompt-cardoso-lemdf#:~:text=1.,o%20pensamento%20crítico%20dos%20alunos. Acesso em: 13 mar. 2025.
CHATGPT. Resposta à pergunta sobre a relação entre Pedagogia da Pergunta e o uso de chatbots no ensino superior. OpenAI, 13 mar. 2025.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999
FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antonio. Por uma Pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. Disponível em: https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/15.-Por-uma-Pedagogia-da-Pergunta.pdf . Acesso em: 13 mar, 2025.
SCHERER, Suely.; BRITO, Glaucia. da. Silva. Integração de tecnologias digitais ao currículo: diálogos sobre desafios e dificuldades. Educar em Revista, Curitiba, v. 36, e76252, 2020. https://doi.org/10.1590/0104-4060.76252
SANTOS, Edméa. Comunicação pessoal via WhatsApp, 13 de março de 2025.
SILVA, Marco. Pedagogia da Prompt. YouTube, 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9fGg4W-cRag. Acesso em: 13 mar. 2025.
Sobre a autoria:
Glaucia da Silva Brito é professora Dra. Pesquisadora Sênior na Universidade Federal do Paraná atuando no programa de Pós-graduação em Educação (PPGE). Professora Dra. Pesquisadora no Centro Universitário UNINTER atuando no programa de Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias(PPGENT). Pesquisadora, palestrante nos temas: Tecnologias na Educação, Educação a Distância, Formação dos professores, Inclusão Digital, Inteligência Artificial na Educação. Lider do Grupo de Estudos e Pesquisas Professor, Escolas e Tecnologias Educacionais (GEPPETE)
Como citar este artigo:
BRITO, Glaucia da Silva. Por uma pedagogia da pergunta em tempos de inteligência artificial. . Notícias, Revista Docência e Cibercultura, março de 2025, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.