Relatos de uma atriz trans-negra, educadora e mediadora

2024-05-30

Autoria: Jennifer Froes Martins; Iguatemy da Silva Carvalho

Construir o corpo performático de uma atriz, é algo demorado e que demanda estudos, tempo para aperfeiçoamento de técnicas e rituais. Pontuo as técnicas a partir do princípio de que toda atriz precisa ter uma boa respiração, um bom controle do diafragma, uma boa voz, foco, expressividade e estado de presença para obter uma boa apresentação no palco.

Por outro lado, ser uma mediadora em um museu acaba demandando os mesmos cuidados. Eu paro para pensar e correlacionar as minhas vivências enquanto atriz de teatro pertencente a um grupo teatral, e também estudante do curso de licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Maranhão, como um ponto de partida para tornar a minha mediação didática e híbrida.

Mas surge a pergunta: “Onde está o ritual nisso tudo?”. Bom, acredito que o ritual está presente em tudo o que fazemos, por exemplo, quando você acorda pela manhã, você pode ter o ritual de rezar, ou apenas levantar e ir escovar os dentes de forma imediata, ali você já produziu um ritual. Ritual é tudo aquilo que seguimos e repetimos em nossas vidas com algum sentido e/ou significado, e o ritual pode ser do mais simples do cotidiano, até algo simbólico de alguma religião ou arte.

O principal ritual que possuo e sigo enquanto atriz, é sempre aquecer a minha voz para qualquer apresentação em público, ou ensaio. Tenho o cuidado de preparar o meu corpo para entrar em cena. A partir do momento que chego no espaço museológico da Casa do Maranhão, eu construo meu código ritualístico de pedir licença e fazer o sinal da cruz para respeitar aquele espaço, pois tenho a consciência de que tudo ali antes, foi habitado por sociedades indígenas e também por pessoas negras oriundas da diáspora africana.

E para além disso, sempre que inicio a minha mediação, eu construo todo o meu corpo e voz, assim como faço no teatro, para poder evidenciar a informações que serão passadas ao público, emito uma postura corporal para ser evidenciada e projeto a voz para ser audível a todos que estiverem no saguão do museu. E sempre adapto a comunicação dependendo do público que está visitando o espaço, sejam escolas, comunidades tradicionais, turistas de outros estados e países.

Diante disso, chego no meu local de fala enquanto educadora, ser uma atriz me torna uma educadora e o mesmo ocorre no meu cargo de mediadora de um espaço museológico. Nas duas funções eu educo os mais diversos grupos, e proponho pensamentos e discussões.

Só a minha presença já provoca reações pelo fato de eu ser um corpo trans, uma travesti negra. Sou uma pessoa política em todos os campos de atuação que ocupo, seja em um palco de teatro, em um acervo de museu ou uma escola. Sou graduanda de um curso de licenciatura, e vivenciar o trabalho na posição de mediadora do museu Casa do Maranhão, me proporciona diferentes momentos de aprendizados e trocas de saberes, pois ali é um ambiente institucional com um quadro de profissionais diversos. Os saberes que adquiro ali, evidenciam a minha construção de carreira enquanto arte-educadora.

Diversidade e Educação na Casa do Maranhão

Falar sobre diversidade é algo complexo e abrangente, visto que esse termo está atrelado a diversos significados e áreas de estudo. Como por exemplo, os estudos de diversidade étnico-raciais que vem aumentando e sendo discutidos com frequência em diversas instituições de ensino e sociedade em geral, assim como a diversidade de identidades de gênero dessa nova geração. Assim como também o reconhecimento das diversidades existentes no quadro de mediadores do espaço museológico da Casa do Maranhão.

Esse espaço tem como objetivo apresentar aos visitantes o quadro diverso existente da cultura popular maranhense, contando com um acervo rico de histórias e dissidência da manifestação do bumba meu boi, assim como também a festa do Divino espírito santo, o tambor de Crioula e o carnaval de rua
da grande ilha de São Luís.

Além desse acervo carregado de diversidade cultural, a Casa do Maranhão enquanto instituição formadora de conhecimento, apresenta também em seu acervo, exposições temporárias que tem como foco a decolonialidade. Por ali já passaram exposições de fotografias e instalações de artistas indígenas,
negros, trans e também acervos de pesquisas de instruções públicas como o Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IEMA) e a Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

Destacamos aqui uma dessas exposições temporárias de grande importância, que é a do “Saberes Tradicionais e Etnográfia” que conta com um acervo pautado no resgate popular de memórias de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos e assentados do Maranhão e demais estados da região da Amazônia legal, onde os próprios membros dessas comunidades puderam ser protagonistas de toda essa catalogação de objetos para exposição e pesquisa no museu.

A Casa do Maranhão serve como um ambiente transmutador de saberes e trocas de aprendizagens, a parte administrativa da instituição preza pela diversidade em seu quadro de estagiários mediadores. Ali é uma das poucas instituições museais com um quadro repleto de corpos dissidentes, ou seja, a diversidade de pessoas trabalhando é notória.

Atualmente o quadro de mediadores é formado em grande maioria por pessoas negras, periféricas, pdc e membros da comunidade LGBTQI+ +. É necessário a ocupação desses espaços que historicamente foram colonizadores.

Surge então um novo ponto a ser descrito e discutido, que é a educação daquele lugar. Se discutir a diversidade nos leva a pensarmos muitas coisas, a educação vai na mesma onda. Como já explanado aqui, a origem dos mediadores desse espaço de saber e cultura é diversa, o pertencimento dessas pessoas é rico em vivências e isso influencia na educação desse lugar. Ou seja, cada mediador dissidente constrói a sua mediação.

O contato que os visitantes têm com esses grupos minoritários tendo voz para mediar sobre uma cultura tão rica como a do Maranhão, gera surpresa e quebra de ideologias e estereótipos do senso comum. Existe um susto colonial como diria o pensador Fanon, quando alguns visitantes cis heteronormativos brancos tem quando avistam uma mediadora negra/trans mediando em um espaço de saberes como um museu. Muitos até se surpreendem quando veem alguns dos mediadores falando em outros idiomas.

Então a casa do Maranhão ocupa este espaço de dar voz a esses grupos minoritários em ascensão, pois a riqueza desses jovens estudantes é extrema, até as áreas de conhecimento que cada mediador estuda é diversa e contribui para o enriquecimento cultural daquele lugar.

Obtemos alunos de Artes Visuais, Teatro, História, Ciências Sociais, Comunicação Social, e Estudos Africanos e Afro brasileiros presentes nessa instituição. A educação é gerenciada por eles, cada um traz seu entendimento e vivência do que entende sobre o universo que abrange a cultura popular maranhense, diante do que estudam em seus cursos de graduação e experiências do cotidiano familiar.

E através de todas essas escritas, dessas “escrevivências”, termo que trago emprestado de Conceição Evaristo, acabou encerrando esse texto com a certeza de que a educação segue sendo a melhor arma de “TRANSformação” de realidades e pensamentos.

Sobre a autoria

ZrXexmg.jpg Jennifer Froes Martins é graduanda em licenciatura em Teatro (UFMA), mediadora da Casa do Maranhão e atriz do grupo teatral Improviso. A mesma também é pesquisadora pelo LABORITEC (Laboratório de Teatro e Memórias) e foi pesquisadora pelo PIBID. É bailarina contemporânea em formação pelo NAE (Núcleo de Arte e Educação) no Teatro Arthur Azevedo e performer de vogue pela House Of Diamonds. É ex estagiária das instituições TV UFMA e Teatro João do Vale. Possui experiência nas áreas da educação, teatro, dança, audiovisual e comunicação.

8BnZds4.jpg Iguatemy da Silva Carvalho é filho biológico de Luzia Viana da Silva e José Batista de Carvalho e do axé do Ilé Agbára Omi Nàná-Bùkúù. Integrante do Coletivo Dan Eji. Artesão. Matraqueiro do Boi Sotaque da Ilha do MA. Graduado em Filosofia pela UFMA e Prof. Ms. em Cartografia Social e Políticas da Amazônia pela UEMA. Integrante da Rede de Educadores em Museus do Brasil e do Maranhão e atualmente estar com Diretor da Casa do Maranhão, órgão do Estado vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão.  

Como citar este artigo: 

MARTINS, Jennifer Froes; CARVALHO, Iguatemy da Silva. Relatos de uma atriz trans-negra, educadora e mediadora. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, maio de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Frieda Maria Marti, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel