FAZ CIÊNCIA COMO UMA MENINA! ASTRONOMIA SEM FRONTEIRAS ENTRE COMUNIDADES LUSÓFONAS

2024-05-22

Autoria: Alejandra Irina Eismann; Patrícia Figueiró Spinelli; Bárbara Gonçalves Fagundes; Marta Filipa Simões; Dulcelena Cardoso Semedo

Em 2015, o dia 11 de fevereiro foi instituído pela Organização das Nações Unidas como o "Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência". Porém, foi desde 1975 que a mesma organização estabeleceu o dia 8 de março como o "Dia Internacional das Mulheres". 

Ambas as datas nos fazem refletir sobre o papel social esperado para meninas e mulheres em diversas sociedades e culturas. Elas nos convidam a pensar na divisão sexual do trabalho dentro do sistema econômico vigente, na luta pelos direitos das mulheres, nas várias formas de violência que enfrentam e na negação dos conhecimentos por elas produzidos.

A diminuta presença de mulheres em atividades científicas e, consequentemente, no campo da Astronomia está, então, relacionada com a complexidade das relações de gênero e profissionais. De forma simplificada, isto diz respeito à separação e hierarquização dos trabalhos considerados masculinos e femininos. Esta separação sugere que carreiras relacionadas com o cuidado e o trabalho doméstico são destinadas a "elas", enquanto as carreiras relacionadas com a racionalidade são exclusivas para "eles". Como resultado, os trabalhos femininos são frequentemente subvalorizados ou não remunerados, enquanto os trabalhos masculinos são mais prestigiados e bem pagos. 

Como alerta Grada Kilomba (Kilomba, 2019) junto com feministas e movimentos sociais, estas constatações são apenas a ponta do iceberg. Os espaços de produção e divulgação da ciência legitimados pela sociedade, como por exemplo museus e universidades, são permeados pelas percepções, estéticas e lógicas coloniais, baseadas no racismo, além do patriarcado. Portanto, apenas uma narrativa é validada nesses espaços, a narrativa valorizada por homens brancos, militares, burgueses e industriais, que ainda se sentem capazes de dominar a natureza (vista como mero recurso), e o cosmos com as suas tecnologias (Segato, 2014; Miranda e Sanchez 2024).

Assim, em espaços destinados à produção e divulgação de conhecimento temos a vantagem de poder refletir sobre estas grandes tensões e promover reestruturações com vistas a avançar para uma sociedade com maior justiça social, epistêmica e ambiental. Portanto, ainda que com suas origens forjadas na conjuntura colonial, nós defendemos que museus,  por serem instituições ao serviço da sociedade, devem deixar de perpetuar a invisibilização e opressão de grupos sociais. Aqueles que atuam nestas instituições têm o dever de agir de forma a que as mulheres e outros grupos sub-representados não continuem sendo pressionados socialmente a cumprir papéis subalternizados. E foi com esta responsabilidade em mente que, desde 2015, o programa “Meninas no Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST” se foi constituindo (Spinelli et al., 2022). 

As ações do programa se estruturam em frentes pontuais e prolongadas. As primeiras tratam-se, principalmente, do evento intitulado “Dia das Meninas no MAST” e as últimas referem-se ao acompanhamento por um período mais extenso de um grupo de estudantes que são envolvidas em atividades de pré-iniciação e divulgação da ciência (Benitez-Herrera, et al., 2019). Essas últimas fazem parte da pesquisa “A divulgação da Astronomia na colaboração museu-escola” realizada pela Coordenação de Educação em Ciências do MAST.

Porém, outras ações pontuais engrossam o programa, como por exemplo as realizadas com meninas e mulheres das comunidades de língua portuguesa no âmbito da cooperação com o Gabinete Lusófono de Astronomia para o Desenvolvimento (PLOAD, na sigla em inglês) da União Astronômica Internacional. Nesta parceria, busca-se colaborar com a Agenda de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a partir de uma perspectiva crítica. A mais recente experiência para promoção da equidade de gêneros da parceria foi liderada pelo MAST e é relatada a seguir.

Astronomia, Gênero e Decolonialidade - Intercâmbios e Descobertas

"Faz Ciência como uma Menina!" foi uma ação de educação em ciências realizada on-line pelo MAST e PLOAD entre os dias 11 de fevereiro e 8 de março de 2024 com meninas, jovens e pesquisadoras e educadoras residentes do Brasil, Cabo Verde, Portugal, Macau, e Moçambique. O objetivo foi promover atividades empíricas e de pesquisa aproveitando "o clima" das efemérides e fomentar um intercâmbio entre as participantes. Porém, desde a concepção inicial da ação um desafio se impôs: de que forma poderíamos intercambiar e nos aproximar estando todas as colaboradoras e participantes espalhadas por cinco dos continentes do nosso planeta? Experimentando horários, espaços, idades, culturas, realidades, religiões e até mesmo idiomas maternos diferentes? 

Para isso, a ação proposta foi executada a partir da perspectiva da educação museal on-line, e consistiu na resolução de tarefas relativas à Astronomia de forma assíncrona, lançadas em um grupo de WhatsApp criado especificamente para este propósito. A nossa tentativa foi criar um espaço-tempo para encontros (Marti e Santos 2019), onde as participantes pudessem interagir com as cientistas e educadoras museais, e a partir dessas trocas, contribuir para o processo de construção do conhecimento que foi sendo forjado.

Foram propostas cinco tarefas, lançadas em formato de episódios de Podcast, em áudio. Os episódios contavam partes da história de Anahí, nossa protagonista, que partiu em uma missão pessoal. Ao final de cada episódio, para prosseguir em sua jornada, a protagonista solicitava ajuda às participantes, fazendo perguntas que deveriam ser respondidas por meio de fotos e de áudios no grupo de WhatsApp. Ainda como parte de nossa estratégia metodológica, adotamos o Padlet para a organização e sintetização das tarefas e devolutivas das participantes.

Anahí foi idealizada como pertencente a um dos diversos povos originários do território, hoje chamado brasileiro. Ela guiou uma jornada em busca de um quadrante, objeto que utiliza a posição das estrelas para localização, e que tinha um significado importante para ela. Na viagem, ela se aprofunda em temas de Astronomia, com especial ênfase na Astrobiologia, e pensa sobre como a colonização impactou a saúde do planeta Terra, e também o diálogo entre as ciências praticadas por diferentes povos. Graças à empatia, ao acolhimento das mulheres que encontra e à cooperação de cada participante da atividade, ela consegue perseverar em sua busca. A história termina com suas indagações sobre as histórias que são valorizadas, sobre quem protagoniza os estudos da história e das ciências em escolas e outras instituições, inclusive em museus1.

Destacamos que o processo criativo desta história e roteiro das tarefas-episódios foram sendo moldados, partindo das discussões que emergiram no grupo. Ou seja, mesmo com um planejamento inicial de tarefas e objetivos definidos, as interações foram articuladoras e consideradas para a elaboração das tarefas-episódios seguintes. Como tarefas a serem cumpridas, as participantes precisaram: dizer por que gostam de observar o céu; relatar quais línguas são faladas no seu país; fazer registros sobre a Lua e contar as histórias locais sobre o satélite natural; pesquisar sobre astrônomas mulheres em seus países; pesquisar sobre a vida fora do universo e preparar perguntas para a Astrobióloga do grupo - com respostas muito interessantes que podem ser encontradas no Padlet

Figura 1 - Collage com imagens da lua crescente enviadas de diferentes partes do globo, fotos de astrônomas compartilhadas no grupo pelas participantes, e a capa do vídeo subido por uma das pesquisadoras do grupo (esquerda);  e plataformas utilizadas na ação (direita). Em conversas posteriores no grupo, as participantes nos informaram os diferentes nomes para Lua: Jacy (Tupi-Guarani do Brasil); Nweti (Changana, de Moçambique); 月亮 (pronuncia-se YuèLiàng, no Mandarim falado em Macau), 月亮 (pronuncia-se Jyut Loeng, no Cantonês também falado em Macau) e Lua (no Crioulo de Cabo Verde).

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                                                                                  Fonte: autoras

Como forma de "recompensa" pela participação na ação, juntando as tarefas-episódios narrados pela protagonista com as respostas das participantes enviadas por áudio, construímos o produto final, o emocionante Podcast  "Anahí e as Navegantes do Universo"2. Nele, a história completa de Anahí é contada de uma nova forma, já que recebe a generosa contribuição das participantes, o que contribuiu para uma experiência auditiva única, rica por sua diversidade de formas de falar.

Este produto tem seu valor agregado pelo processo de co-criação que o concebeu. Pois, por um lado, as tarefas-episódios propostos se alimentavam da interatividade das participantes no grupo de WhatsApp; por outro, o papel das educadoras museais e pesquisadoras era o de atuar como mediadoras, levantando à geração de perguntas e inquietações (Marti e Santos, 2019), estimulando novas conversas. Ao fazer a composição de todos os fragmentos desta experiência, tivemos a oportunidade de intercambiar, pesquisar sobre Astronomia, e valorizar os saberes e formas de viver locais. Não podemos deixar de sinalizar que a curiosidade pelas formas de falar umas das outras, pelos locais de procedência de cada participante e sobre o fuso-horário, por si só foram geradores de conversas, e adicionam uma camada extra de autenticidade e caráter à discussão.

Para a nossa alegria, a história foi bem aceita e a interação no grupo de WhatsApp aconteceu de maneira fluida. As interações foram diárias com mensagens, na maioria por áudio debatendo a história em si, respondendo às indagações que a história solicitava e levantando alguns questionamentos. Importante destacar também que a interação por áudio e virtual possibilitou a horizontalidade também entre as integrantes do grupo, sendo todas as mensagens validadas pelo conjunto das integrantes independente da sua formação acadêmica. 

Convidamos a todos e a todas a contemplarem o nosso Padlet, conhecerem a história final de Anahí e escutarem com atenção o que cada menina e mulher desta grande comunidade têm a dizer. Mal podemos esperar para uma nova próxima oportunidade de intercâmbios como esta.

Notas:

1 - Achamos importante destacar que o grupo de educadoras museais e pesquisadoras idealizadoras da ação são brancas. Portanto, foi com muito cuidado que a história de Anahí foi elaborada, porém sendo passível de falhas. Porém, julgamos que as falhas não poderiam ser um motivo para deixar de trazer a cultura de povos indígenas para o centro do debate em uma atividade com jovens cujo elo de ligação é a língua portuguesa, imposta pelo passado colonial. Defendemos que a validação das ciências dos povos invadidos não cabe aos colonizadores fazerem. Falar de ciências e línguas a partir de outras perspectivas e ainda estabelecer um olhar crítico aos espaços museológicos é papel de toda a sociedade. Foi com esta compreensão que decidimos percorrer este desafio, desenvolvendo uma história com o protagonismo científico de mulheres indígenas, mesmo podendo incorrer em erros.

2 - Além de pesquisadoras e educadoras, contamos com o trabalho do cineasta Felipe Sá Carrelli, que fez a edição do produto final, a partir do material em áudio compartilhado no grupo de WhatsApp.

Referências: 

BENITEZ-HERRERA, Sandra; SPINELLI, Patrícia Figueiró; MANO, Sonia Maria Figueira; GERMANO, Ana Paula.. Pursuing gender equality in Astronomy in basic education: the case of the project Girls in the Museum of Astronomy and Related Sciences. In: International Symposium on Astronomy and Astrobiology education, 2017, Utrecht, Países Baixos: Anais, p. 1-10. 2019.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Cobogó, 2019.

MARTI, Frieda; SANTOS, Edméa Oliveira. Educação museal online: a educação museal na/com a cibercultura. Revista Docência e Cibercultura, v.3 (2), p. 41-66, 2019.

MIRANDA, Cláudia; PEREIRA, Celso Sánchez. Branquitude ambiental, cimarronaje e re-existência em Abya Yala: des/reaprendizagens da luta por justiça ambiental e territorial. Revista Cocar, v. 23, 2024.

SEGATO, Rita. Colonialidad y patriarcado moderno: expansión del frente estatal, modernización, y la vida de las mujeres. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala, 1, 2014.

SPINELLI, Patrícia Figueiró; MATOS, Cláudia Sá Rego; da SILVA, Taysa Basalo; do NASCIMENTO, Josina Oliveira; SANTOS, Simone Daflon. Astromeninas em ação: experiências acadêmicas e culturais de jovens no Museu de Astronomia e Ciências Afins. In:  DAHMOUCHE, Mônica, Exatas É Com Elas: Tecendo Redes No Estado Do Rio De Janeiro. Fundação Cecierj, p. 35- 58, 2022. Disponível em: https://www.cecierj.edu.br/divulgacao-cientifica/elas-nas-exatas-tecendo-rede/-

Sobre a autoria:

5nZhIhq.jpg Alejandra Irina Eismann é formada em Biotecnología (Universidad Nacional de San Martín, Argentina/ 2012), Mestre em Ciências no programa de Tecnologia de Processos Químicos e Bioquímicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (TPQB, UFRJ/ 2013) e Doutora em Biologia Marinha e Ambientes Costeiros, no programa de Pós-graduação com esse nome, na Universidade Federal Fluminense (PBMAC, UFF/ 2019). Trabalha com educação em ciências e educação ambiental desde 2019. Atualmente é pesquisadora bolsista do Programa de Capacitação Institucional (PCI)/CNPq MAST, com dedicação exclusiva ao projeto da Coordenação de Educação “Meninas no MAST”.

gP8jrfB.jpg Patrícia Figueiró Spinelli é graduada em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2004), mestre em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2007) e doutora em Astrofísica pela Ludwig-Maximilians-Universität e International Max Planck Research School on Astrophysics (LMU, IMPRS, 2011). Atualmente é pesquisadora titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST, desde 2013), coordenadora adjunta externa do curso de Pós-graduação Lato Sensu em Divulgação e Popularização da Ciência (ESPDPC, desde 2014) e professora do Mestrado em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde (PPGDCST, desde 2016), ambos da Fiocruz/MAST/Jardim Botânico/Casa da Ciência/CECIERJ. É também a coordenadora brasileira do Portuguese Language Expertise Centre of Astronomy for Development da União Internacional de Astronomia (PLOAD-IAU desde 2015). Integra a Rede Primeira Infância em Museus, coletivo que reúne instituições museais e de ensino (PIMu, desde 2022) e a Rede Mulheres em STEM-Rio de Janeiro (MSTEM-RJ, desde 2020).

xZgqwIG.jpg Bárbara Gonçalves Fagundes é aluna do curso de Gestão em Turismo e Licenciatura em e trabalha com comunicação popular e educação.

nIViHi1.jpg Marta Filipa Simões (ORCID ID: 0000-0002-8767-9487) trabalha atualmente como professora e investigadora no Laboratório Estatal Chinês para as Ciência Lunares e Planetárias (SKLPlanets), na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST), na China. A sua pesquisa, centrada na astrobiologia e astromicologia, explora a ecologia e biodiversidade fúngica em ambientes similares ao espaço. Estuda o crescimento de fungos em condições espaciais simuladas, a utilidade e aplicação de fungos filamentosos, e a contenção do crescimento fúngico para proteção planetária. Além disso, investiga a exploração de fungos para futuras missões espaciais.

HmwLGol.jpeg Dulcelena Cardoso Semedo tem curso de Professor Primário pelo Instituto Pedagógico (2006), é Licenciada em Ensino de Matemática pelo Instituto Universitário de Cabo Verde (2016), tem Pós-graduação em Ensino de Astronomia pela Universidade Cruzeiro do Sul -SP (2018) e é Mestranda em Recursos Geológicos e Ambiente na Universidade de Cabo Verde. Atua também como professora do Ensino Básico (Ensino Fundamental em BR) desde 1998.

Como citar este artigo: 

EISMANN, Alejandra Irina; SPINELLI, Patrícia Figueiró; FAGUNDES, Bárbara Gonçalves; SIMÕES, Marta Filipa SEMEDO, Dulcelena Cardoso. FAZ CIÊNCIA COMO UMA MENINA! ASTRONOMIA SEM FRONTEIRAS ENTRE COMUNIDADES LUSÓFONAS. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, maio de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Frieda Maria Marti, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel