Olhai pro Céu Carioca: Empréstimo de Acervo Didático em Astronomia para a Promoção da Autonomia de Educadores
Autoria: Vladimir Jearim Pena Suárez; Patrícia Figueiró Spinelli; Josina Oliveira do Nascimento
A Relação Museu-escola e a Observação do Céu Diurno
Os museus de ciências e tecnologia, entendidos como instituições onde processos de educação ao longo da vida podem acontecer, são lugares propícios para a formulação de ações educativas que vão desde a divulgação das pesquisas realizadas através de uma linguagem acessível até concepções cujos enfoques possam subsidiar as práticas do ensino formal, pois além de satisfazerem a dimensão conteudista da educação escolar, nestas instituições, as pessoas adquirem e exercem sua cidadania (Krasilchik & Marandino, 2007).
Expandindo este olhar, pode-se dizer ainda que, a complexidade do cenário atual imposta pelo rápido avanço científico e tecnológico, bem como o urgente debate de como a ciência se insere na sociedade, também motiva o fortalecimento de vínculos de cooperação entre os museus e as escolas. Segundo Cazelli, Marandino e Studart (2003) essas parcerias representam oportunidades de contribuir com o processo pedagógico feito nas escolas, alcançando um grande número de pessoas através de diferentes propostas educativas, sobre os assuntos de cunho científico e suas discussões intrínsecas.
Estes contextos também criam o interesse de ampliar as ações dos museus para fora de suas bases físicas. No caso do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), o projeto de pesquisa “A divulgação da Astronomia na colaboração museu-escola” teve como questão inicial a compreensão de como as ações de formação da ação “Olhai pro Céu” contribuíam para a prática de professores. Desenvolvida desde 2013 pelo MAST e pelo Observatório Nacional (ON), ambos localizados no Morro de São Januário, esta ação leva temas de Astrofísica contemporânea e experiências empíricas de observação do céu noturno às escolas do interior do estado do Rio de Janeiro (Spinelli e Reis, 2015). Em particular, a frente "Carioca" voltada para temas da Astronomia diurna começou sua atuação na região metropolitana do Estado em 2014, e foi o principal objeto das pesquisas desenvolvidas até agora.
“Olhai pro Céu Carioca” consiste em um encontro de formação com educadores e educadoras sobre tópicos de Astrofísica Solar e sobre os materiais de um kit educativo, denominado “AstroKit”, composto de um telescópio solar, filtros manuais de observação do Sol, materiais impressos sobre o telescópio em questão e sobre o próprio Sol, e uma apostila com atividades educativas. Os encontros são promovidos mensalmente ou bimestralmente, perfazendo 4 horas. Após, os participantes podem retirar o "AstroKit" e permanecer com ele por até dez dias corridos. Neste sentido, a centralidade da ação está nos e nas professoras que dela participam, já que se tornam os principais agentes de promoção da Astronomia. O Museu dispunha de três AstroKits, mas a partir de 2022 passou a ter cinco.
Ao longo da sua história, o MAST, através da Coordenação de Educação em Ciências, tem tido como prioridade o desenvolvimento de projetos que abordam a relação museu-escola (Valente, 2005). Ainda que a ação "Olhai pro Céu Carioca" não seja a primeira deste tipo, ela se difere de outras pelo seu modo de operar através do empréstimo de acervo didático. O uso educacional de acervos em museus é uma prática instituída há bastante tempo e, no Brasil, se inicia na Seção de Assistência ao Ensino do Museu Nacional. A prática pode ter diversos objetivos, porém destaca-se aquele com vistas a facilitar a comunicação entre os objetos museais e os públicos. Entre outros museus que promovem o empréstimo de material didático estão o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e a Estação Pinacoteca de São Paulo. A frente carioca da ação "Olhai pro Céu" se inspirou nessas práticas para conceber o "AstroKit".
No que diz respeito à temática da Astronomia como tema motivador para o ensino de ciências e como elemento integrador entre a educação museal praticada pelo MAST e o ensino escolar, acreditamos que esta sinergia possibilita reflexões sobre o processo histórico de construção do conhecimento científico, enquanto atividade humana, histórica, associada a processos de ordem socioeconômica, política e tecnológica. Isto porque a Astronomia é uma área interdisciplinar, que pode incentivar ações educativas que integrem diferentes setores da comunidade escolar, desde os alunos, professores e profissionais na escola, até os familiares e comunidade externa (Langhi e Nardi, 2012).
O recorte do tema da Astrofísica Solar nos pareceu apropriado, pois sabe-se que os professores e professoras enfrentam uma série de dificuldades em relação ao ensino da disciplina (Nardi e Langhi, 2005). Essas dificuldades compreendem tanto a “insegurança e temor pessoal em relação ao tema” como a "falta de infraestrutura nas escolas" e a “dificuldade em realizar visitas a observatórios e planetários”, sobretudo em escolas localizadas no interior do país. Levando em conta, ainda, que a maioria das atividades empíricas de observação do céu em instituições que disseminam este tipo de conhecimento, incluindo o MAST e o ON, são realizadas no período vespertino ou noturno, quando planetas, constelações e aglomerados de estrelas estão visíveis para a observação, esse último fator dificulta ainda mais o agendamento de visitas escolares a esses locais. Foi considerando todos estes aspectos e a realidade da cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana, que sofre com a poluição luminosa e que impõe dificuldades de segurança no planejamento de atividades noturnas, que concebemos o nosso "AstroKit" com foco no Sol.
Como forma de compreender como a ação de fato se desenvolve no contexto escolar, a emissão do certificado de participação dos educadores está atrelada ao preenchimento de um questionário com perguntas fechadas e uma pergunta aberta no ato da devolução do "AstroKit", após o empréstimo.
Educação e Popularização da Astronomia nas Periferias Cariocas
Entre 2014 e 2022, a ação "Olhai pro Céu Carioca" ofereceu formações para 247 professores, realizando 171 empréstimos dos "AstroKits", que beneficiaram 44.947 alunos da área metropolitana do Rio de Janeiro. Porém, durante os anos de 2020 e 2021 as ações estiveram suspensas por causa da Pandemia de Covid-19 e, em 2022, a programação de encontros de formação voltou de maneira menos frequente, considerando que a equipe que as mantinha diminuiu. Este impressionante quantitativo resulta em uma média de cerca de 260 estudantes contemplados em cada empréstimo do material.
O questionário de avaliação também nos fornece informações sobre a localização das escolas de atuação dos e das professoras participantes, representadas no mapa da Figura 1. Percebe-se que o "AstroKit" beneficia principalmente territórios periféricos, como as cidades de Duque de Caxias, São Gonçalo, São João de Meriti, assim como a Zona Norte e Oeste do Rio. Estes dados se mostram importantes justamente no que diz respeito aos "não-públicos" de museus de ciências, que deixam de visitar estas instituições por diversos fatores, entre eles, a concentração desigual de equipamentos culturais do Rio de Janeiro e a falta delas nestas regiões.
No que diz respeito às disciplinas e níveis de formação dos estudantes beneficiados, a maioria dos professores reportou ministrar a disciplina de Ciências no Ensino Fundamental II. Também constatou-se uma significativa quantidade de professores de Geografia e Matemática, e alguns poucos de outras disciplinas. Houve também uma notável quantidade de professores do Ensino Médio, que lecionam disciplinas como Física, e alguns educadores vinculados a espaços não escolares.
Figura 1. Painel da esquerda: Distribuição das escolas beneficiadas com empréstimos dos Astrokits entre 2014 e 2022 na área metropolitana do Rio de Janeiro. Painel da direita: Jornada de observação solar realizada por uma professora em sua respectiva escola.
O questionário ainda permite destacar alguns depoimentos interessantes feitos através da pergunta aberta, que versam sobre: (1) formação por parte dos professores participantes para grupos da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica; (2) o uso do "AstroKit em feiras de ciências; (3) o uso em escolas de inclusão e (4) sugestões de novas propostas de cooperação entre os professores e o Museu.
Concluímos que o uso do material transborda os contornos imaginados na concepção inicial dos "AstroKits", já que os testemunhos apontam para aplicações mais amplas que o previsto. Cumpre com o compromisso de compartilhar o acervo didático com outros públicos, tipicamente excluídos das ações que se realizam na sede do MAST e ON. Estes desdobramentos indicam a potencialidade da colaboração museu-escola para a autonomia dos participantes, sobretudo àqueles relacionados aos saberes disciplinares em Astronomia. Com base em tamanha potencialidade, desde 2023, o Observatório Nacional lidera a ação "Olhai pro Céu, Brasil" que visa empregar as melhores práticas da frente carioca em todo território nacional.
Referências:
CAZELLI, S., MARANDINO, M., STUDART, D. Educação e Comunicação em Museus de Ciências: aspectos históricos, pesquisa e prática In: Educação e Museu: a construção social do caráter educativo dos museus de ciências ed.Rio de Janeiro : FAPERJ, Editora Access, 2003
KRASILCHIK, Myriam; MARANDINO, Martha. Ensino de Ciências e Cidadania. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2007
LANGHI, R.; NARDI, R. Dificuldades de professores dos anos iniciais do ensino fundamental em relação ao ensino de Astronomia. Revista Latinoamericana de Educação em astronomia. n. 2, p 75-92. 2005
LANGHI, R.; NARDI, R. Educação em astronomia: repensando a formação de pŕofessores. São Paulo. Escrituras Editora. 2012.
SPINELLI, Patricia Figueiró ; REIS NETO, E. . Ao Encontro do Público. In: Maria Esther Alvarez Valente e Sibele Cazelli. (Org.). Coleção MAST - 30 anos de Pesquisa V.2. 1ed.Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2015, v. 2, p. 264-283.
VALENTE, M. E. O Museu de Ciência: Espaço da História da Ciência. Ciência e Educação (UNESP. Impresso), Bauru - UNESP, v. 11, p. 53-62, 2005.
Sobre a autoria:
Vladimir Jearim Pena Suárez é Bacharel em Física pela Universidad Industrial de Santander, da Colômbia. Mestre e Doutor em Astronomia pelo Observatório Nacional, do Rio de Janeiro. Sua pesquisa tem se desenvolvido em temas como a análise de abundâncias químicas em aglomerados estelares, e no ensino de Física e Astronomia, tanto em ambientes educativos escolares como não formais. Recentemente estuda a aplicação de métodos de data science na análise de dados astrofísicos procedentes de levantamentos como os feitos pela missão Gaia. Tem experiência como professor de Física e de Astronomia no ensino superior e na mediação em espaços de ciência e tecnologia. Se desempenhou como pesquisador do Programa de Capacitação Institucional do Museu de Astronomia e Ciências Afins, sendo ainda colaborador em pesquisas da Coordenação de Educação em Ciências do MAST. Atualmente faz parte do comité organizador da Feira de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro, da Fundação CECIERJ, e leciona no Instituto de Física “Armando Domingues Tavares”, UERJ.
Patrícia Figueiró Spinelli é graduada em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2004), mestre em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2007) e doutora em Astrofísica pela Ludwig-Maximilians-Universität e International Max Planck Research School on Astrophysics (LMU, IMPRS, 2011). Realizou estágio de pós-doutorado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP, 2013). Tem experiência na área de Astrofísica, com ênfase em Lentes Gravitacionais Fracas, Cosmologia e Astrofísica Extragaláctica. Atua na área de divulgação em ciências, em especial Astronomia, sendo membro fundador do Programa GalileoMobile. Atualmente é pesquisadora titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST, desde 2013), coordenadora adjunta externa do curso de Pós-graduação Lato Sensu em Divulgação e Popularização da Ciência (ESPDPC, desde 2014) e professora do Mestrado em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde (PPGDCST, desde 2016), ambos da Fiocruz/MAST/Jardim Botânico/Casa da Ciência/CECIERJ. É também a coordenadora brasileira do Portuguese Language Expertise Centre of Astronomy for Development da União Internacional de Astronomia (PLOAD-IAU desde 2015). Integra a Rede Primeira Infância em Museus, coletivo que reúne instituições museais e de ensino (PIMu, desde 2022) e a Rede Mulheres em STEM-Rio de Janeiro (MSTEM-RJ, desde 2020).
Josina Oliveira do Nascimento é graduada em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e doutora em Engenharia de Sistemas e Computação pela Coppe-UFRJ. Servidora do Observatório Nacional (ON), Ministério da Ciência, tecnologia e Inovação (MCTI). Coordena, dentre outros, os projetos de divulgação e popularização de Astronomia: 'AstroEducadores', 'O Céu em sua Casa: observação remota', 'Olhai pro Céu,Brasil!', 'AstroNasaBrasil' (ON e MCTI em parceria com IASC/NASA), 17ªIOAA (International Olympiad on Astronomy and Astrophysics). Compõe a Comissão Organizadora da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica (OBA). Atua em divulgação e popularização da ciência e Astronomia pelo Observatório Nacional através da participação em programas de rádio, TV e pelos canais das redes sociais do ON, como Instagram e YouTube. Coordena a Divisão de Comunicação e Popularização da Ciência (DICOP) do Observatório Nacional. É membro do NOC Brasil (National Outreach Coordinator) Coordenação Nacional de Divulgação ligado ao OAO (Office for Astronomy Outreach), ligado à IAU (União Astronômica Internacional), sendo vice-coordenadora nacional. É vice-representante nacional do Global Hands-On Universe (GHOU), programa educacional global para capacitação de professores e envolvimento de alunos em projetos científicos internacionais.
Como citar este artigo:
SUÁREZ, Vladimir Jearim Pena; SPINELLI, Patrícia Figueiró; NASCIMENTO, Josina Oliveira. Olhai pro Céu Carioca: Empréstimo de Acervo Didático em Astronomia para a Promoção da Autonomia de Educadores. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, maio de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias:
Frieda Maria Marti, Felipe Carvalho, Edméa Santos, Marcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel