DIREITOS DA ESQUINA VERSUS DIRETO DAS ESQUINAS

2024-01-23

Autoria: Sara Wagner York

Apresentação

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Finalizando o curso de Direito em uma das mais conceituadas universidades do Brasil, Victória Dandara encontra uma esquina: a quem chamar para a avaliação de seu trabalho? Quem estaria à altura de ser banca de um dos trabalhos mais próximos da realidade múltipla ocupada pelo corpo trans/travesti? Nunca perguntei o porquê! O fato é que o honroso trabalho enquanto avaliadora me atravessou de várias formas e sentidos. Uma travesti avaliando o trabalho de outra travesti. Gerações diferentes e a obrigação de “fazermos bonito” diante da centenária história cisgênera do Largo do São Francisco.

A orientadora foi breve e liturgicamente USPiana. Apresentei minhas constatações, possibilidades de ampliação e orgulho ao presenciar aquele momento tão único.

Este (pre)texto explora os pontos do que se vê nessa defesa materializada. Sob uma perspectiva transfeminista – isto é, que afasta a certeza de serem gênero e sexo sinônimos e interseccionais – atenta que as muitas espacialidades alcançam de diferentes formas todas as pessoas, desde o acesso à justiça, a dinâmica do acesso a direitos e cidadania para aqueles que recebem assistência jurídica. Sobretudo quando a justiça chega pelas mãos de uma travesti.

Uma pesquisa brasileiramente norteada (pois nosso norte é amazônico) desde a periferia e da quebrada, o estudo se baseia em uma autoetnografia que analisa a atuação em três projetos/instituições: 1) O Departamento Jurídico XI de Agosto, vinculado à faculdade; 2) A CPI da Transfobia, cujas atividades foram coordenadas durante o mandato da vereadora Erika Hilton na Câmara Municipal de São Paulo; e 3) O projeto de educação em direitos humanos desenvolvido no CIEJA Itaquera.

A busca de Dandara por justiça e cidadania é um caminho muitas vezes espinhoso. No entanto, sua amorosidade pelas suas e pelos seus torna facilitada a luta para e por aqueles que ocupam margens sociais e enfrentam múltiplas formas de discriminação. Esse livro se propõe a examinar as muitas questões através das lentes de uma travesti que percorre o caminho da advocacia e prática.

Ao adotar uma abordagem decolonial dos direitos, Dandara se alinha às demandas mais atuais da periferia e da quebrada que existe em cada brasileiro, reconhecendo a necessidade de um olhar crítico sobre o sistema legal e suas implicações com/para aquelas que historicamente são marginalizados.

Pontos-chaves desse estudo:

  • Seu percurso se fundamenta em uma autoetnografia, uma abordagem que coloca o pesquisador como participante ativo, utilizando suas próprias experiências para compreender fenômenos culturais e sociais.
  • A pesquisa é ancorada na atuação da autora em três contextos jurídicos distintos: o Departamento Jurídico XI de Agosto, a CPI da Transfobia e um projeto de educação em direitos humanos no CIEJA Itaquera.

1. Departamento Jurídico XI de Agosto

A análise começa pelo contexto acadêmico, onde a autora, enquanto estudante de Direito, esteve envolvida no atendimento jurídico oferecido pelo Departamento Jurídico XI de Agosto. Aqui, a questão central reside em entender como a identidade travesti da advogada impacta a relação com os assistidos e a efetividade na busca por seus direitos.

2. CPI da Transfobia

A CPI da Transfobia, coordenada pela autora durante o mandato da vereadora Erika Hilton, oferece um olhar sobre a atuação legislativa. Como as demandas legais das populações trans são abordadas em um contexto mais amplo? Qual o papel da identidade travesti na formulação e implementação de políticas públicas?

3. Projeto de Educação em Direitos Humanos

O terceiro ponto de análise é um projeto educacional no CIEJA Itaquera, onde a autora desenvolve atividades voltadas para a conscientização em direitos humanos. Aqui, o foco é compreender como a educação jurídica pode impactar a percepção dos assistidos sobre seus direitos e cidadania, especialmente no contexto de vulnerabilidade social.

Os resultados preliminares indicam a importância do reconhecimento da identidade travesti no acesso à justiça. Sua autoetnografia revela nuances complexas nas interações com os assistidos, ressaltando a necessidade de uma abordagem sensível e alinhada às demandas específicas dessas comunidades. Dandara, em sua participação na CPI da Transfobia, lança luz sobre os desafios legislativos e as possibilidades de transformação estrutural. Tê-la na coordenação da CPI influenciou a agenda legislativa, abrindo espaço para pautas historicamente negligenciadas para as quais dediquei quase toda minha vida e, enquanto mulher travesti, jamais imaginei que algo assim poderia ser feito por qualquer uma de nós.

O projeto educacional no CIEJA Itaquera oferece uma visão otimista sobre o potencial transformador da educação jurídica. Ao capacitar os assistidos com conhecimentos sobre seus direitos, Dandara e sua prática jurídica transcendem os limites do atendimento individual, contribuindo para uma compreensão mais ampla da cidadania. Ela é provedora e protagonista!

Seus resultados preliminares fornecem uma base sólida para desdobramentos futuros nas esferas latu ou strictu sensu e, em ambos os casos, se desdobram em estudos inéditos no Brasil. O reconhecimento da identidade travesti no acesso à justiça é um ponto de partida essencial, como escrevi com Megg Rayara (2020), Leandro Colling, Mario Gomes Caymmi (2022), entre outros, destacando a necessidade de políticas e práticas jurídicas mais inclusivas. A sensibilidade às demandas específicas dessas comunidades se revela como um elemento crucial para estabelecer uma ponte efetiva, e afetiva – como são as travestis em suas relações – entre os assistidos e o CIS-tema legal.

A participação na CPI da Transfobia revela desafios significativos na esfera legislativa. Apesar de avanços notáveis, há ainda barreiras a serem superadas para garantir que as pautas trans sejam devidamente incorporadas nas políticas públicas. O papel da advogada travesti, Victória Dandara, como agente de mudança legislativa é uma narrativa inspiradora, mas também destaca a resistência enfrentada por aqueles que buscam desmantelar estruturas discriminatórias. O projeto educacional no CIEJA Itaquera aponta para um caminho promissor. A capacitação dos assistidos com conhecimentos sobre seus direitos não apenas fortalece indivíduos, mas contribui para a construção de uma comunidade mais informada, atualizada. No entanto, o desafio persiste em escalar essas iniciativas para alcançar um público mais amplo e, assim, catalisar uma mudança cultural mais abrangente. Prosseguir nesse campo de estudo exige uma abordagem holística e colaborativa. O diálogo entre teoria e prática jurídica transfeminista deve ser contínuo, alimentado por uma constante reflexão sobre as dinâmicas de poder subjacentes nas interações legais.

Uma área de exploração adicional reside na análise das experiências das assistidas, dando voz às suas perspectivas sobre o impacto da advocacia travesti em suas vidas. Entender como essas práticas influenciam a autopercepção, a confiança no sistema legal e a participação cidadã pode fornecer insights valiosos para aprimorar futuras intervenções.

A colaboração entre organizações da sociedade civil, instituições acadêmicas e o próprio sistema legal é imperativa para avançar em direção a uma justiça mais equitativa. A criação de espaços de diálogo e parcerias estratégicas pode potencializar os esforços para transformar não apenas as políticas, mas também as mentalidades arraigadas na/da estrutura legal.

Torno a dizer, se uma travesti passou por um espaço sem ser percebida como travesti, nenhuma travesti passou. O corpo travesti diz, mesmo em silêncio como será constatado nesse livro.

Conheçam a primeira travesti bacharela em Direito pelo Largo do São Francisco da Universidade de São Paulo (USP), cuja avaliação, feita por tantos CIS-ícones, revigorou sua luta e compromisso, concedendo a honra deste momento a uma outra travesti – essa, tão distante e tão próxima em tantas realidades e compromissos éticos para com todas as nossas...

Boa leitura!

 

Sobre autoria:

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Sara Wagner York é doutoranda em Educação e ativista trans/intersexo. Para saber mais: sarawagneryork.com

Como citar este artigo: 

YORK, Sara Wagner. DIREITOS DA ESQUINA VERSUS DIRETO DAS ESQUINAS. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel