Ficções e a instauração de pedagogias do Grotesco

2024-01-23

Autoria: Lua Lamberti de Abreu 

Decorrendo do que já investigava no processo de Mestrado (LAMBERTI, 2021), reafirmo que ficção rompe o binário verdade x mentira, concordando com Rancière (2005, p. 57), em que afirma que “a revolução estética transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficção pertencem a um mesmo regime de sentido”. É um regime que não se propõe mentir ou dissimular a verdade, mas instaurar outras possibilidades da narrativa, do discurso, da sensibilidade poética, da afetação.

Não diferencio a produção científica e acadêmica da produção artística no que tange seu teor criativo e ficcional. Porque é pelo rearranjo de teorias, de epistemes, de experiências, que hipóteses são criadas, que conceitos são cunhados, que paradigmas são questionados. Tal qual o é com a linguagem, a tecnologia também pode ser jogada, ludicamente usufruída.

Tanto por uma necessidade visceral de negar radicalmente o que se vive como norma, ou normalidade, quanto por uma sede de viver outras vidas, a ficção é, para mim, um respiro, uma metodologia, uma técnica e uma pulsão. Porque pelo exercício do imaginário, a própria realidade pode ser negociada, inclusive – e principalmente – pela ação coletiva e compartilhada (CASTANHEIRA, 2018).

Não necessariamente isso se dá na romantização sonhadora de ficcionar futuros “melhores”, é também no ato de esgarçar a ficção una de realidade estática, pois “se o futuro está para ser moldado, e o presente é colapso, esgotar o que existe é a condição de abertura dos portões do impossível” (MOMBAÇA, 2021, p. 112).

A ideia de ficções políticas e visionárias de Walidah Imarisha (2016) me instigaram, porque a própria criação artística – pensando aqui especificamente o transformismo para o campo dos gêneros – cumpre a função de deturpar o véu de seriedade da norma que sustenta a narrativa da realidade, que é também um exercício de poder ficcional e, vale reforçar, “[...] não há inocência nas ficções de mundo, sobretudo nestas ficções que enxergam apenas injustiças no futuro de pessoas não-cis, não-brancas e não-heterossexuais” (AGUIAR, 2020, p. 148).

Rancière (2005) dialoga com essa noção, que a produção ficcional é um regime de discursos que não pode ser monopolizado pelas “Belas Artes”, justamente para que se possa criar, ficcionar, obras do ordinário, que demonstram possibilidades outras de experienciar o mundo, questionando mesmo a ideia de acesso ao sublime, quando se entende que “o banal se torna belo como rastro do verdadeiro” (RANCIÈRE, 2005, p. 50).

Uma criação ficcional, mesmo quando não se propõe assim, está negociando a realidade, seja por seu repertório, por seu embasamento, ou pelo discurso que dispara e, como tal, é um mecanismo urgente de ação política e social, já que “a grande sacada da ficção especulativa é a de representar do futuro aquilo que está já em jogo no presente” (MOMBAÇA, 2021, p. 111). Pelo viés da narrativa – e não explicitamente e exclusivamente textual – é possível acionar uma “[...] nova maneira de contar histórias, que é, antes de mais nada, uma maneira de dar sentido ao universo ‘empírico’ das ações obscuras e dos objetos banais” (RANCIÈRE, 2005, p. 55).

Contar histórias é revolucionário, é poderoso, conforme relatado pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019). Dodi Leal (2021) dialoga com esse entendimento ao problematizar o perigo de uma única pessoa trans ocupando os meios de produção de saberes – ou de histórias – e esse esvaziamento metonímico da polissemia narrativa.

A mídia oportunista se sente confortável em publicizar narrativas trans e criar estereótipos, com os quais caímos no imaginário do senso comum, ou seja, aquela narrativa como única e possível vivida por pessoas trans. Literalmente essa narrativa serve como uma régua ou um compasso para medir toda existência de uma população que por si só é diversa. Somos vistas por uma única lente, o que leva, mais uma vez, o Cistema a nos formatar, encaixar em uma única forma de ser e estar no mundo. Consequentemente, isso conduz as pessoas cis a nos comparar com esses personagens que, na grande maioria, não dialoga com a nossa realidade (ODARA, 2022, p. 137).

A composição iconográfica do horror, do errado, do feio e do desvio é permeada de representações que versam sobre existências reais, desde “[...] impensáveis figuras humanoides contorcidas como um atleta de circo que introduzisse a cabeça entre os joelhos” (ECO, 2022, p. 112), que dizem respeito às práticas incomuns e/ou sobre-humanas, mas também sobre condições existenciais, identitárias, corporais, sendo “[...] nascimentos anômalos, crianças de duplo sexo” (ECO, 2022, p. 107). Tais narrativas, mesmo quando imagéticas, causam no tecido social o ostracismo e patologização de sujeitas – artistas de rua, pessoas intersexo, identidades trans, sexualidades não reprodutivas – por entranhar no imaginário tais situações sendo ruins. “A transgeneridade foi historicamente associada com tristeza, sofrimento e moléstia desde a sua oficialização como categoria diagnóstica” (AGUIAR, 2020, p. 139). É necessário repensar onde reside, quem detém, de que forma opera o poder de narrar histórias e banhá-las de teor de verdade única.

Aqui, é necessário articular a noção de grotesco com o recurso pedagógico e moralizante que as ficções podem operar. Mesmo, e talvez principalmente, no campo imaginário, a atribuição de valores díspares – feio x belo, certo x errado – cumpre uma função de validar determinadas formas de ser, estar e desejar o mundo ao passo que instaura a ideia de que não ser assim, não concordar com isso, é errado, passível de punição, é feio (ANDRADE, 2015; OLIVEIRA, 2022; BALISCEI, 2020).

[...] antes mesmo da utilização da escrita, a imagem era utilizada para difundir determinadas formas de pensamento, podendo ser usada para reafirmar ou questionar situações de poder [...] Assim, os outros corpos, aqueles que se distanciam desse modelo, consideradas inadequados pela lógica da cisgeneridade heterossexual branca, imposta pelo modelo civilizador europeu, merecem e devem ser ignorados. Se por acaso forem retratados, devem ser mostrados de maneira a confirmar sua suposta inferioridade (OLIVEIRA, 2022, p. 43).

Oxigenar e pluralizar o imaginário, circular outras histórias, faz pelo tecido social um movimento de aprofundamento, de tensionamento, até mesmo por instaurar contradições dentro de uma mesma temática, com a mesma complexidade com que a matriz dominante opera, cheia de sinuosidades discursivas. É pela ficção que algo outro pode ganhar espaço, tempo e corpo, que outras pessoas podem compartilhar outras percepções de mundo, outras sensibilidades, outras afetações.

Não perdendo de vista que “[...] esses mundos fantásticos findam por abordar temas como guerra, racismo, opressão de gênero, poder, privilégio e injustiça” (IMARISHA, 2016, p. 09). A ficção, literalmente, move o mundo, lendas, mitos e fofocas alteram a sociedade, movem a economia.

Não é incomum, nesse panorama, que obras ficcionais e toda uma sorte de estéticas artísticas ajam sobre o entendimento de mundo e de sujeitas que, consequentemente, revidam na produção de outros mundos, de outras formas de ser e estar e desejar; quando trago a questão com o transformismo, vocês verão no decorrer da pesquisa, aparece de maneira recorrente que experimentar de maneira artística e ficcional a transição de gênero permite à própria pessoa questionar a estática da estética, a naturalização da cisnorma.

Megg de Oliveira (2022) denuncia os interesses narrativos sobrepostos às imagens de figuras trans, ou ao menos de sexos, anatomias e/ou performatividades de gênero não ciscentrados, em prol de reforçar uma perspectiva coercitiva, em delinear uma visão pejorativa e patológica do que seria narrado como desviante, deturpado.

Porque há na produção artística uma profunda conexão com o abalo da linearidade real e concreta, ou afetações em que “borram-se os limites entre arte e vida. A performance se converte num modo de existência” (CASTANHEIRA, 2018, p. 73). E não de maneira alienada e egóica, sim um existir não só para mim mesma, “[...] mas como a instauração performativa de um outro mundo” (MOMBAÇA, 2021, p. 108). Ficcionar é, de alguma forma, aproximar-se em vigília e no real, do sonho, do delírio, do desejo, afinal,

o imaginário é formado por uma espécie de fio, que se reporta às coisas, ordinárias ou não, do cotidiano, mas também contém as utopias e movimentos mentais sobre o que não existe. Parte do imaginário relaciona-se à vida diária, e outro ao sonho. Ambos compõem o que chamamos de real (CASTANHEIRA, 2018, p. 68-69).

As obras de ficção em geral, mas trazendo o recorte do cinema nas análises empreendidas por Jack Halberstam (2020) e João Baliscei (2020) para a discussão, produzem efeitos pedagógicos, moralizantes ou subversivos, em que instauram outras relações de mundo e de sujeitas, em que práticas corriqueiras e rotineiras são desafiadas, em que a norma é questionada de maneira lúdica e quase inocente, para dizer alguns dos possíveis efeitos. Teresa de Lauretis (1994) também aponta o cinema como uma tecnologia de gênero, em que a veiculação de formas de ser homem e mulher são absorvidas subjetivamente pelas sujeitas que consomem e leem aquelas imagens.

No que tange o teor pedagógico e social do cinema, Umberto Eco (2022) colabora ao apontar um traço de desejo pelo horrendo, historicizando a espetacularização das execuções públicas e que, hoje, num entendimento de avanço civilizatório, não são mais comuns. Isso se dá, em partes, porque o cinema, por meio da ficção, alivia esses desejos sádicos e cruéis ao respingar no imaginário social cenas de violência, martírio e degradação.

Vale ressaltar aqui que, majoritariamente, a cinemática LGBTI versa sobre justamente isso: os horrores que as pessoas gênero-sexo-sexualidade divergentes passam. O que há de pedagógico nisso? É inegável que existe um desejo sádico da norma cis, hétero e branca com as mazelas das minorias político-visuais (PRECIADO, 2020). Descentralizar a produção ficcional do cinema pode disparar narrativas e, consequentemente, realidades outras, e isso não basta apenas elencar uma protagonista travesti, mas repensar toda a produção. “No cinema, gostaria de ver filmes com equipes majoritariamente trans, quando este filme se propõe a falar sobre nós. E essa lógica segue para outras linguagens artísticas” (JESUS, LUZ, 2022, p. 120). O que também dialoga com as demandas do texto manifesto escrito por Sara York, Megg Oliveira e Bruna Benevides (2020) em que, dentre outras coisas, clama pela participação ativa e remuneração pelo trabalho de pessoas trans.

Quando a ficção é da ordem da hegemonia fica evidente que há um controle do imaginário para que se corrobore a norma, porque é reconhecido “[...] que a descolonização da imaginação é o mais perigoso e subversivo de todos os processos de descolonização” (IMARISHA, 2016, p. 04), afinal, acessar a produção ficcional é, também, “criar essa força imaginária” (MOMBAÇA, 2021, p. 108) que desafia a narrativa dominante.

Assim, esse experimento poderia contribuir na cartografia dessa situação, no diagnóstico desse problema do presente em sua especificidade lat(r)ina, ainda que seja, em alguma medida também, ficção e delírio. Se a realidade das margens sexuais é já um pesadelo distópico, é estratégico que, em alguma dimensão, a escrita política sexo-marginal se aproprie da narrativa, dos recursos, do instrumental e da maquinaria linguística da ficção (abigail LEAL, 2021, p. 41).

E ficcionar não é necessariamente oferecer respostas, mas“[...] é uma aposta na possibilidade de escapar à captura de nossa imaginação visionária pelas forças reativas do mundo contra o qual lutamos” (MOMBAÇA, 2021, p. 82-83). É muito mais sobre a errância, a divagação e a dúvida, porque “quando liberamos nossas imaginações, questionamos tudo” (IMARISHA, 2016, p. 04), com o mesmo teor anárquico da criança (HALBERSTAM, 2020), que por desconhecer, pergunta e desorganiza a normalidade e o funcionamento.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo de uma história única. Trad. Julia Romeu – 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

AGUIAR, Juno Nedel Mendes de. Habitando as margens: a patologização das identidades trans e seus efeitos no Brasil a partir do caso Mário da Silva (1949-1959). 2020. 179 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.

ANDRADE, Luma Nogueira de. Travestis na Escola: Assujeitamento e resistência à ordem normativa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015.

BALISCEI, João Paulo. Provoque: cultura visual, masculinidades e ensino das artes visuais. 1. ed. Rio de Janeiro: Metanoia, 2020.

CASTANHEIRA, Ludmila de Almeida. Performance arte: modos de existência. Curitiba – PR, Appris, 2018.

ECO, Umberto. História da Feiura. Trad. Eliana Aguiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2022.

HALBERSTAM, Jack. A Arte Queer do Fracasso. Trad. Bhuvi Libanio. Recife – PE: Cepe, 2020.

IMARISHA, Walidah, et. al (ed.). Octavia's Brood: science fiction stories from social justice movements. AK Press, 2015. Tradução: Jota Mombaça. Reescrevendo o Futuro: usando ficção científica para rever a justiça, Caderno de Oficina de Imaginação Política, 2016.

JESUS, Jaqueline Gomes de; LUZ, Rosa. Viver é Arte e Ciência da Resistência: conversa entre Jaqueline Gomes de Jesus e Rosa Luz. p. 114-126. In: OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de; NASCIMENTO, Letícia Carolina; JESUS, Jaqueline Gomes de (Orgs). Gritarias Epistêmicas: (r)existências de travestis e mulheres transexuais negras no Brasil. 1ª ed. Salvador: Editora Devires, 2022.

LAMBERTI, Lua de Abreu. Pe-Drag-Ogia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Metanoia, 2021.

LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 206-241.

LEAL, abigail Campos. ex/orbitâncias: os caminhos da deserção de gênero. São Paulo – SP: GLAC edições, 2021.

LEAL, Dodi T. B. Fabulações travestis sobre o fim. Conceição/Conception[S. l.], v. 10, n. 00, p. e021002, 2021. DOI: 10.20396/conce.v10i00.8664035. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conce/article/view/8664035. Acesso em: 12 jul. 2023.

MOMBAÇA, Jota. Não Vão nos Matar Agora. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. De santa à perigosa: representações e apagamentos de corpos trans femininos nas Artes Visuais até o século XIX. p. 42-77. In: OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de; NASCIMENTO, Letícia Carolina; JESUS, Jaqueline Gomes de (Orgs). Gritarias Epistêmicas: (r)existências de travestis e mulheres transexuais negras no Brasil. 1ª ed. Salvador: Editora Devires, 2022.

PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de Janeiro – RJ: Zahar, 2020.

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org. ed. 34, 2005.

YORK, Sara Wagner; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 28(3): e75614. DOI: 10.1590/1806-9584-2020v28n375614.

Sobre autoria:

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Lua Lamberti de Abreu, 29 anos, doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (PPE/UEM), docente no curso Artes Cênicas - Licenciatura em Teatro (UEM). Transativista, artista multilinguagem, pesquisadora e agitadora cultural. Destaque para as áreas de atuação em gênero, sexualidade, artes transformistas, grotesco e comicidade, artes eróticas, arte e educação e ficções/autoficções.

Como citar este artigo: 

ABREU, Lua Lamberti de. Ficções e a instauração de pedagogias do Grotesco. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel