“Cavaleiros de aço” no YouTube: polícia militar, masculinidade e violência em contexto sul-mato-grossense
Autoria: Alister Dante Burema
Introdução
Logo no início da minha adolescência tive a experiência de conviver com um policial militar (PM), na época ele era o marido da minha mãe. A exaltação da virilidade, isto é, a valorização da capacidade reprodutiva, sexual e influência social, além da aptidão à violência (Bourdieu, 2012), observada diariamente, se via fortemente interligada na formação identitária do PM. De fato, a reiteração constante de ideais de masculinidades hegemônicas à minha volta me levou a reflexões muito além do que é ser policial, me vi ponderando sobre o próprio conceito de gênero e como ele se aplica na sociedade.
Entre idas e vindas, observando o mundo e depois a mim mesmo, me reconheci fora das fronteiras da cisgeneridade (Favero, 170), enquanto pessoa não binária e curiosa, cheia de dúvidas e indignações que me levaram em 2020 a iniciar minha carreira como pesquisadore. Meu ponto de ignição foi um convite para compor o Impróprias – grupo de pesquisa em gênero, sexualidade e diferenças (UFMS/CNPq), liderado pelo professor Dr. Tiago Duque. Fui inserido em um projeto que propunha a análise de artefatos culturais do Mato Grosso do Sul (MS), nele escolhi descrever justamente o universo que primeiro me fascinou, o dos PMs, apresentado em canais do YouTube.
Essa escolha foi feita devido ao fato de que em tempos “pós” pandêmicos nunca nos foi tão escancarado o poder da internet como centro de produção e disseminação cultural, uma vez que em meio a importantes restrições, outras formas de interação social nos foram impossibilitadas. Ainda, esse conteúdo, ao ser compartilhado na plataforma YouTube, atinge a possibilidade de um rompimento de fronteiras, aquilo que é produzido no MS se torna consumido em todo o Brasil e participa, enquanto um artefato cultural, da formação identitária do grupo que o consome (Steinberg, 1997; Silva, 2013).
Com isso, tenho como proposta neste texto contar sobre um dos vídeos de um desses canais, um recorte que visa descrever parte dessa realidade enquanto reflete suas consequências na construção de narrativas de violência (Efrem, 2017ª) de gênero e raça sul-mato-grossenses. Por questões éticas, não informo a identidade do canal, do autor e da audiência que comenta o vídeo. Assim, de forma concisa no espaço deste texto, busco apresentar o quanto a produção das diferenças está envolta em relações de poder e subalternidades em um contexto específico, buscando focar mais nas normas e convecções do que em sujeitos em si (Duque, 2022).
“Você vai me matar?”
O vídeo selecionado começa com o emblema da GETAM (Grupamento Especial Tático de Motos) em destaque, mostrando ao público que já acompanha esse tipo de conteúdo o que será retratado, um acompanhamento tático. Em outras palavras, uma perseguição de moto e abordagem. Surge, então, um aviso escrito na tela:
Esse vídeo contém cenas de ocorrências reais onde foram tomadas todas as medidas legais cabíveis. Sua divulgação tem como objetivo desestimular a prática de atividades nocivas à sociedade, além de valorizar os policiais que diuturnamente se arriscam para garantir a ordem pública e proteger o cidadão de bem (retirando de um canal de PM no YouTube).
As medidas legais cabíveis que foram tomadas e a prática nociva que merece ser desestimulada nunca são de fato citadas no vídeo, fica passível para a audiência imaginar o crime cometido por aquele que está sendo abordado, tal qual o que se entende como valorizar os PMs ou o que é de fato um “cidadão de bem”. Ao mesmo tempo, o aviso fornece um certo alívio a audiência, uma vez que dificilmente alguém se reconheceria como não sendo um “cidadão de bem”. Dito de outro modo, quem assiste ao vídeo, se percebe como aquele/a/u que será protegido/a/e.
Em contraposição, tão logo começa a gravação, observa-se uma perseguição em alta velocidade, chegando a cerca de 120 km/h em o que aparenta ser um bairro residencial, inclusive em seu percurso atravessando área escolar. A câmera implantada no uniforme passa à audiência uma sensação de imersão, como se ela estivesse no controle da operação, com muita adrenalina. Nesse momento, em que o PM se encontra na fronteira do que seria em quase todos os casos, senão o dele, ilegal, surgem certos questionamentos: uma vez que a audiência se coloca na imagem do PM em meio ao vídeo e participa de uma trangressão que só a ele como PM é permitida, não seria essa uma atividade nociva que está sendo encorajada?
Chegando em um terreno, pelas imagens do vídeo, aparentemente abandonado, vê-se a bandeira do estado do MS, sobreposta por pixos, ilustrando as paredes da construção. O PM desce de sua moto aos gritos: “Mão na cabeça porra!”. Ao mesmo tempo, saca uma espingarda calibre 12, recarrega e aponta para um homem negro, que, no chão, em meio a abordagem chora pedindo perdão. O PM responde: “põe as mãos atrás das costas!”. Ao som de sirenes, começa o beat da música Still por Dr. Dre, rap que estourou nos anos 90 e comumente encontrado em produções midiáticas centralizadas em gângsters e policiais. Enquanto isso o homem abordado, ainda ao chão e chorando, pergunta continuadamente ao policial: “você vai me matar, né?”.
Os comentários não escondem o desdém pelo homem abordado, dado seu corpo nomeado por alguém da audiência como de “delinquente”, que, segundo as palavras de Foucault, “se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza” (1999, p. 280). Além disso, ele é caracterizado pelo público como “vagabundo” e “zé droguinha”. Ainda, tem sua masculinidade questionada, afinal diz um comentário: “Pra corre ele é o machão, mas depois que a casa caiu pra ele, fica chorando”. Enquanto isso, a imagem do PM, autor solo da violência como exposta na gravação, tem sua virilidade exaltada e representada naquilo que compõe a sua força de combate. Ele arrecada admiração e sugestão de maior poder em termos de armas de fogo: “Acho que uma metralhadora portátil calibre 9mm como a HK MP5 seria uma boa arma para os cavaleiros de aço.”
O que se pretende com essa descrição não é justificar o crime cometido pelo criminoso, mas demonstrar o quanto o crime em si é desconsiderado dentro do universo do vídeo. Pouco se sabe sobre aquele sendo abordado, nada se sabe sobre o suposto crime por ele cometido que justificaria a abordagem. O importante tanto para o autor quanto para sua audiência é apenas a “imagem do criminoso” como convém ao policiamento. Podemos dizer, então, que nessas narrativas o crime não é algo que se atribui ao sujeito ou algo que concerne a sua ação, o crime é o sujeito (Efrem, 2017b).
Discutindo a pornografia humilhatória, Díaz-Benitez (2015) nos explica que através da humilhação ocorrem fissuras, essas que fogem dos limites morais a procura do prazer. Seja esse um prazer na hierarquia, pela ostentação de poder, domínio ou posse, ou na espetacularização da violência, um exercício de poder que visa o abuso, fracasso ou punição do outro, o que pode ser percebido dentro das interações entre a audiência e o canal. Exemplificando perfeitamente a reflexão dessa autora, um dos comentários afirma: “Tá porra esse vídeo é quase um prazer sexual kkkkk”. Ou seja, o prazer de quem assiste está nas relações de poder estabelecidas entre a imagem do PM e o “vagabundo”, em uma dicotomia fabricada de modo a justificar esses abusos (Oliveira, 2010). Novamente se expõe que “o foco da repressão policial não é o ato infracional, mas o indivíduo que o pratica” (Feltran, 2011, p. 139).
Os dados apontam que 6,4 mil pessoas foram mortas em 2022 nas mãos do policiamento no Brasil. Assim como o homem abordado no vídeo, 83% eram negros (Carvalho; Costa, 2023). Isso faz o seu medo de morrer plausível na situação em que se encontra nas imagens do canal. O sujeito do crime é um sujeito subalternizado (Pereira, 2015), atravessado por relações sociais, de classe, gênero, raça, sexualidade, entre outros (Efrem, 2017b). Em termos mais amplos, essa cena indica o quanto o estado, por meio de parte dos PMs atuam no campo de certa necropolítica, isto é, a partir do poder de controle sobre a mortalidade, o descarte dos corpos (Mbembe, 2018).
Considerações finais
O estado de MS, em suas potencialidades, se apresenta como um estado recheado de narrativas de subalternização (Becker; Oliveira, 2016). Para além do vídeo analisado, o medo da morte se comunica com a violência de gênero pela ineficácia estatal de reconhecer o corpo dissidente como um “cidadão de bem” que merece ser protegido. Por exemplo, de acordo com o Laboratório de Estudos de Feminicídio (LESFEM), em MS, no ano de 2023 foram registrados 7,3 casos a cada 100 mil mulheres, o modo como o descaso com a violência de gênero se torna uma violência por parte do próprio estado é visível.
Nesse processo, corpos generificados, sendo hierarquizados, têm sobre eles impressos certas ficções políticas (York, et al., 2020) que atuam de forma a justificar abusos contra eles, sejam homens negros ou mulheres, por exemplo. O vídeo apresenta um conteúdo que a audiência julga como sendo o bem contra o mal, criminalizando e já sentenciando um “suspeito” negro antes mesmo de qualquer julgamento que lhe é de direito em uma sociedade democrática. Isso ocorre sob a atuação do estado na performance de masculinidade veloz do PM, sob o olhar atento de uma audiência que se identifica com a violência em contextos sul-mato-grossenses.
Referências
BECKER, S.; OLIVEIRA, E. A. de; CAMPOS, M. da S. Guarani-Kaiowá: “Onde fala a bala, cala a fala”. Brasil Debate, 22 jun. 2016.
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CARVALHO, A; COSTA, F. UN Experts Call on Brazil to End 'Brutal' Police Violence. Human Rights Watch. 15 de dezembro de 2023.
DIAS, D. M. V.; MARIANO, S.; OLIVEIRA, A. B. M. de. Monitor de feminicídios no Brasil. LESFEM, 2023.
DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, p. 65-90, 2015.
DUQUE, T. “Eu sou bugre”: gênero, sexualidade e diferenças nas fronteiras da/na universidade. Diversidade e Educação, v. 10, n. 1, p. 83-108, 2022.
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FELTRAN, G. de S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. 2008. Tese (Doutorado) - Curso de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2008.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.
MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.
OLIVEIRA, J. H. de. Masculinidade na Polícia Militar: com a palavra dos homens. In; Fazendo Gênero, 9. 2010, Santa Catarina. Anais … Santa Catarina, 2010, p. 1-13.
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Sobre autoria:
Alister Dante Burema é Bacharelande em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Humanas (FACH) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Diretore do Coletivo LGBTQIAP+ Transpor; bolsista de iniciação científica no Impróprias - Grupo de Pesquisa em Gênero Sexualidade e Diferenças; integrante do Observatório de Política do Mato Grosso do Sul e do Laboratório de Antropologia Visual Alma do Brasil (Lavalma) – todos da UFMS.
Como citar este artigo:
BUREMA, Alister Dante. “Cavaleiros de aço” no YouTube: polícia militar, masculinidade e violência em contexto sul-mato-grossense. . Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias:
Sara Wagner York, Felipe Carvalho, Edméa Santos, Marcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel