TRANSVIADESCENDO A MONSTRUOSIDADE

2024-01-11

Autoria: Sara Wagner York, Bruno Pfeil e Cello Pfeil 

Entramos no ano de 2024. Poderíamos encarar esta passagem como mais uma volta em torno do sol, sem demais significações. Dois mil e vinte e quatro poderia ser um ano ligeiramente distinto de seu predecessor, em relação às mudanças políticas, à irrupção de uma guerra, à continuidade de tantas outras. Mas algo os diferencia, e não nos referimos somente à passagem do tempo. O ano de 2024 possui dígitos bastante significativos; no caso, seus dois últimos nos remetem a uma categoria comumente difundida no imaginário social nacional: a categoria do viado. Proveniente da disposição dos números e de seus respectivos significantes animais no jogo do bicho, o número 24 significa, na cultura brasileira, o animal atribuído à homossexualidade [cis]masculina.

O 24, uma aberração em várias frentes, precisa ser colocado em pauta. O “número do viado”, como assim o chamam, torna-se objeto de fuga em diversas frentes; afinal, pertencer a esta numeração significa, em contextos cismasculinos heteronormativos, uma forma de segregação. É este número que colocou tantas crianças e jovens como alvo de estigmatização nas escolas, simplesmente por serem as vigésimas quartas na lista de chamada; é este número que contém tanta evitação nas cadeiras de repartições públicas, em camisas de times de futebol, em numerações quaisquer. Como pode um número conter tamanho significado no campo do gênero e da sexualidade? E como tal significação produz monstruosidade? Questionamos a relação entre significação e abjeção ao compreendermos como signos de masculinidade podem ser utilizados como mecanismos de reprodução de violência, transformando certos corpos em norma, e aproximando outros à monstruosidade.

É a partir disso que iniciamos este texto, pois o 24 não significa apenas o “número do viado”, mas sim o alvo daquilo que nos extermina: um patriarcado cisgênero, branco, heteronormativo, endossexo, corponormativo e herdeiro das violências coloniais que sustentam a modernidade; um patriarcado cismasculino que invalida e extermina existências contra-normativas. E ‘aquilo que nos extermina’ outorga a si um conceito bastante difundido e positivado: o conceito de humanidade. O número 24, embora se volte a corporalidades específicas - no caso, corpos designados homens ao nascer que desafiam a masculinidade hegemônica -, é utilizado aqui como analisador para pensarmos naquilo com o qual a humanidade contrasta. E o que seria este contraste?

Os marcadores sociais de dominação - a branquitude, a cisgeneridade, a heterossexualidade, a ausência de deficiências, a endossexualidade, a origem judaico-cristã etc. - comportam o que Mello & Nuernberg (2012) denominam de corponormatividade, ou seja, o conjunto de significantes da colonialidade/modernidade, e a partir do qual a ideia de humanidade é concebida e afirmada, ou negada. Como significantes da humanidade, tais marcadores contrastam com a transexualidade, com a intersexualidade, a presença de deficiências, sexualidades que desafiam a heteronorma. Contrastam, em outras palavras, com a ideia bastante versátil de monstruosidade.

Em seu discurso Eu sou o monstro que vos fala, Paul B. Preciado delineia essas categorias quando convidado a discorrer sobre mulheres em psicanálise. Na expectativa de se deparar com sujeitos inseridos nas lutas feministas, o autor se confrontou, por outro lado, com um público composto por “homens brancos heterossexuais e burgueses em psicanálise”, homens estes que refletem os marcadores da dominação colonial-moderna. Os marcadores desta dominação operam como imperativo de uma colonialidade cisgênera (PFEIL, 2023), ou, para sermos mais abrangentes, de uma colonialidade cishetero-endossexo (PFEIL; PFEIL; DE MORAES, 2023), refletindo a tríplice aliança entre corpo, desejo e identidade. Percebe-se a construção de um modelo ideal de corpo, por meio do qual determinadas corporeidades são compreendidas como plenamente humanas e outras como menos humanas, ou completamente privadas de humanidade, aberrantes, transformadas em monstro.

A figura do monstro demanda versatilidade. O Outro monstruoso, conforme Preciado (2020, s.p.), “é aquele que vive em transição. Aquele cuja face, corpo e práticas ainda não podem ser considerados verdadeiros em um regime de conhecimento e poder determinados”. As justificativas para a inferiorização deste monstro, para sua eliminação, mudam conforme as demandas ontológicas daqueles que estão no topo da cadeia alimentar. Em transição, e sem discurso legitimado, o monstro permanece maleável conforme as demandas perversas do colonizador. O monstro construído pelo sujeito universal, dotado de marcadores da dominação, foi construído por meio de discursos e práticas clínicas. Como ser discursivo, a monstruosidade diz respeito à construção de todo um imaginário da cultura ocidental moderna em seus potenciais globalizantes e alienantes. Dito de outra forma, diz respeito à constituição de subjetividades.

No vasto campo da subjetivação, Suely Rolnik (YORK, 2019) disserta sobre como o funcionamento de nossas subjetividades se estrutura a partir do contexto em que estamos inseridos, das transferências culturais e insurreições sociais que nos permeiam. Pela subjetividade, materializam-se os regimes sociopolíticos, econômicos e institucionais dos quais fazemos parte. Rolnik busca mostrar como a subjetividade contém teor intimamente político, sendo o assoalho das construções epistemológicas, históricas e culturais. Sem subjetividade, não há imaginários que possam ser implementados nas instituições, nem substrato para a implementação das diretrizes dos sistemas que movem a sociedade.

Referindo-se a um cenário psicanalítico, historicamente ativo nas discussões sobre patologização e sintomatologia, Preciado aborda a arquitetura da modernidade colonial que universaliza o “homem universal” – neste caso, o homem perverso, que projeta seu desejo de extermínio no monstro/Outro – e legitima o extermínio do Outro ao afirmar sua malícia – que pertence, em primeira e única instância, ao sujeito perverso. Ao argumentar que o Outro é verdadeiramente mau, se legitima seu extermínio. As projeções do Eu sobre o Outro mantêm este último em lugar de outremização (Morrison, 2019), de monstrificação, e tais projeções, para se materializarem, necessitam se fixar em símbolos cotidianos - tais como o ojerizado número vinte e quatro.

Esse Outro é justamente o sujeito colonizado cujo desejo, corporalidade e/ou identidade não se alinham à corponormatividade, desobedecem a cisheteronorma, questionam a moralidade. É por uma lógica da exclusividade que a humanidade se constrói; uma lógica calcada em normatividades não-assumidas, tal como ocorre com a cisgeneridade. A recusa do Eu em reconhecer a artificialidade de sua posição é característica desse processo. Assim como a cisgeneridade e a branquitude comumente se ofendem ao serem nomeadas, desvendadas e analisadas, o Eu se ofende ao demonstrarmos que Ele não passa de um ‘outro’.

Então, não compreendemos o humano como ser universal, promotor de igualdade e fraternidade, mas sim como uma categoria política responsável pela outremização, como pontua Toni Morrison (2019), de diversos viventes submetidos a processos de desumanização. O Humano com “h” maiúsculo apenas o é pela desumanidade de Outros, pela nossa monstruosidade.

Tal qual a humanidade, dissertamos sobre a monstruosidade também enquanto categoria política. O monstro, o ser abjeto, denuncia exatamente aquilo que o contrasta: a norma. Ao nos afirmar monstros, ao expor nossa abjeção, colocamos a norma contra a parede; evidenciamos seu caráter anti-natural e histórico, repudiando sua universalização e sua reiteração.

A vida, a produção, é um devir. Mas nós, pessoas LGBTI+, precisamos trabalhar com aquilo que está sendo contingenciado, pois, para nós, o nosso próprio contingenciamento e nosso próprio devir não seguem o mesmo fluxo das ideias que a normatividade produz. Quando o prefixo “trans” entra nas categorias de homem e de mulher, ou até mesmo não se volta a essas categorias, outras estruturas são criadas: categorias desestruturantes, categorias monstruosas. Assim, quando Preciado se refere ao mundo de ordem e felicidade da norma, remete-nos, não ao devir da existência, mas à manutenção da normatividade.

Rolnik escreve que, no cenário político moderno-colonial, não apenas se projeta no Outro monstruoso o mal-estar da modernidade, mas se autoriza a total eliminação da Outridade. Na tradução de sua entrevista ao El País, Rolnik (YORK, 2019, s.p.) escreve: “o que está sendo autorizado agora é a passagem ao ato, como se diz na psicanálise. [...] não só você pode odiar o outro, ou dizer ou contar a ele/ela, mas você pode passar o ato da maneira mais violenta possível”. O Humano com “h” maiúsculo se outorga o direito de eliminar violentamente o Outro, de humilhá-lo, delimitando sua inferioridade a fim de sustentar sua suposta universalidade. É isso o que ocorre quando o número 24 é utilizado como significante daquilo tão temido pela cismasculinidade: o viado, e não paramos por aí.

Compreendendo este significante como reflexo da monstruosidade, e tendo em vista a amplitude do monstro para corporalidades que desafiam a cisheteronorma, pensamos não somente no viado como aquilo contra o qual a colonialidade cishetero-endossexo se institui, mas no transviado. O ano de 2024 não se diferencia de seu predecessor somente pela organização pejorativa de seus números, mas por sua insurgência. Como será possível fugir de seu significante? Tal como as vigésimas quartas cadeiras, camisas e listagens são apagadas, será possível apagar 365 dias da História? Decerto que não.

 

Referências

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MELLO, A. G.; NUERNBERG, A. H. Gênero e deficiência: interseções e perspectivas. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 3, p. 635-655, 2012.

MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

PFEIL, B. L.; PFEIL, C. L.; DE MORAES, W. Colonialidade cishetero-endossexo: uma crítica decolonial à decolonialidade. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 6, n. 19, p. 324-349, 2023.

PFEIL, C. L. Uma crítica à cisnormatividade pelas perspectivas decolonial e anarquista. 123f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.

PRECIADO, P. B. Eu sou o monstro que vos fala. A palavra solta, 2020. Disponível em: <https://www.revistaapalavrasolta.com/post/eu-sou-o-monstro-que-vos-fala>.

YORK, S. W. Suely Rolnik: “Temos de fazer todo um trabalho de descolonização do desejo”. Medium, 2019. Disponível em: <https://sarawagneryork.medium.com/suely-rolnik-temos-de-fazer-todo-um-trabalho-de-descoloniza%C3%A7%C3%A3o-do-desejo-31759ec48c10>.

YORK, Sara Wagner; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista Estudos Feministas, v. 28, 2020.

 

Sobre autoria:

LJ4OAWI.jpgSara York é doutoranda em Educação e ativista trans/intersexo. Para saber mais: sarawagneryork.com

QUo9ABR.jpgBruno Pfeil - Psicólogo (CRP05/71525). Mestrando em Filosofia (PPGF/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Relações de Gênero (FAUSP). Coordenador da Revista Estudos Transviades.

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Cello Pfeil é Professor Substituto do departamento de Ciência Política da UFRJ. Doutorando em Filosofia (PPGF/UFRJ). Coordenador do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT). Cofundador da Revista Estudos Transviades. Membro da editoria geral da Revista Brasileira de Estudos da Homocultura (REBEH).

 

Como citar este artigo: 

YORK, Sara Wagner; PFEIL, Bruno; PFEIL, Cello. Transviadescendo a monstruosidade. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel