A TRAVESTILIDADE COMO POTÊNCIA EPISTEMOLÓGICA: ROMPENDO OS GRILHÕES DO TRANS-EPISTEMICÍDIO

2024-01-06

Autoria: Clarisse Mack da Silva Campos e Sara Wagner York

1 Introdução

Michel Foucault (1996) ao analisar o discurso enquanto instrumento de poder percebe que em nossa sociedade existem certos processos de interdição discursiva, frutos das relações de poder que permeiam o meio social. Nesse sentido, ao tencionarmos os discursos que reverberam em torno do imaginário social a respeito da travesti e das travestilidades, percebemos sempre um não lugar ou um lugar de subalternização e marginalização. Logo, a travesti sempre estará reduzida discursivamente à figura de uma pessoa marginalizada, das ruas e na prostituição compulsória, pois é este o lugar que o cistema nos coloca.

Ademais, a partir da lógica da intelectualidade hegemônica silenciadora, os saberes subalternizados, segundo o pensamento de Spivak (2014), sofrem com um processo de silenciamento, o que resulta no apagamento e na inviabilização epistemológica dos saberes subalternos. Desse modo, grupos historicamente subalternizados são silenciados em seus saberes e vivências, reduzidos a seres não pensantes, atravessados por estruturas que os silenciam em distintos sentidos. Assim, a travesti, enquanto parte de um grupo subalterno, sofre um processo de silenciamento epistemológico, onde seus saberes e intelectualidade são reduzidos ao vácuo.

Em suma, podemos compreender que as travestilidades sofrem um processo do que Sara Wagner York (2020) denomina de trans-epistemicídio, ou seja, a redução à morte dos saberes e conhecimentos a partir da dominação político-ideológica. Desse modo, quando atrelamos este significado ao gênero, compreendemos que para as pessoas trans o que ocorre pode ser compreendido, de fato, como um trans-epistemicídios, que é justamente o processo de morte aos saberes, vivências, histórias e experiências destas pessoas.

Contudo, como também aprendemos em Foucault, em todo processo de imposição de poder temos um contra-processo de resistência (CASTELO BRANCO, 2001). É sob esse viés que o transfeminismo enquanto lugar epistemológico de resistência das pessoas dissidentes de gênero se configura como uma contra-epistemologia de subversão, pela insurgência de saberes cultural e historicamente silenciados.

Nesse sentido, compreendemos travesti nos dizeres de York (2020):

A  respeito  da  palavra  travesti,  há  uma  potente  significação,  por  vezes  torpe  do  verbo, travestir. Seja “travestir” na tentativa posta que em dado momento vincula à sujeira, à doença, à marginal, à maleficência disfarçada, falseada, não genuína. Para nós, por sua vez, a palavra se vincula à luta, à resistência, à dignidade e a uma potencialidade política e contestatória (grifo nosso)

2 O transfeminismo como lugar contra-epistemológico de insurgência travesti

Entendemos em termos transfeministas que existe em nossa sociedade dita “pós-colonial” frutos diretos dessa colonização, incluindo a hegemonia de saberes, que determina a forma como culturalmente elaboramos nossas vivências. Dentre os frutos da colonização temos o que a autora decolonial transfeminista Viviane Vergueiro (2016) vai denominar de cisnormatividade, a qual se manifesta como uma estrutura colonial de assujeitamento das corporalidades inconformes, ou seja, àquelas pessoas que não estejam dentro da normatização cisgênera é dada a única opção da zona do não ser.

Sob essa ótica, apenas as pessoas que estejam dentro da cisgeneridade são pessoas, enquanto as demais são seres não humanos, indignos de vida e de direitos. E, portanto, o que seria ser cisgênero? A partir de um processo cultural, simbólico e discursivo, atribuímos aos nossos corpos estruturas de poder, as quais resultam de uma lógica biologizante e genitalista das corporalidades, naturalizando certas estruturas e coisificando outras. É sob essa lógica que pessoas com pênis, certas construções cromossômicas, certas estruturas ditas físico-biológicas são de determinada categoria (masculina), e as com vulva de outra (feminina).

Desconsideramos o fato de que estamos elaborando uma lógica discursivo-cultural para os corpos e criando funções fictícias para genitálias e demais condições morfológicas, e denominamos isso de “conhecimento biológico”. Outrossim, esquecemos que as ciências ditas exatas são fruto de seu tempo, de seu contexto, e a dita objetividade não passa de uma falácia epistemológica que ignora os aspectos sociais e culturais inerentes à prática de pesquisa.

Ora, segundo os estudos da antropóloga Emily Martin (1996), o processo de fecundação foi elaborado como conhecimento científico a partir da fábula romântica advinda do imaginário sócio-cultural do que se pensa ser lugar de homem ou de mulher. Ocorre que por séculos e até os dias de hoje somos ensinados que o óvulo é passivo, à espera do grandioso campeão da batalha dos espermatozóides, o qual conquistará ativamente o seu lugar na fecundação. Contudo, os estudos mais atuais demonstram uma atuação muito mais ativa do óvulo e que esta visão fantasiosa pode ser fruto apenas do contexto cultural e social que produziu os lugares do homem e da mulher na sociedade.

Além disso, ignoramos que é perfeitamente científico a evolução dos saberes de uma ciência, saberes estes envoltos no que Foucault denomina de saber-poder, uma vez que para a nossa sociedade científica, nos parece que por vezes a ciência ocupa o lugar da religião em outras épocas. Nesse sentido, temos a necessidade de rompermos estas normatividades epistemológicas e compreendermos os atravessamentos científicos, produzindo ciência sem esquecer que somos humanos.

Com isso, queremos afirmar que esta lógica social, discursiva, cultural e pseudocientífica de que apenas existem dois gêneros e duas possibilidades de ser no mundo é fruto desta epistemologia colonial que reitera a existência do ideal da metrópole, a saber, o homem cisgênero e branco. É ele quem deve ser considerado o norte, apenas ele é científico, os demais modos de ser nem sequer deveriam existir. O artigo escrito por, Gomes, e Sara Wagner York, intitulado Sistema ou cis-tema de justiça: quando a ideia de unicidade dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos fundamentais, problematiza como o direito de retificação do nome e do gênero de  transexuais  e  travestis  em  documentos  oficiais produz  um  estatuto  de binaridade  e  de  oposição  perfeita  entre  masculino  e  feminino,  sendo  atravessado  por tecnologias de gênero que impulsionam as pessoas trans a performarem a passabilidade cisgênera. Tal passabilidade chega a ser tão estrutural nas convenções da cis-normatividade que York (2020) advoga o termo prolepCIS, ao elocubrar sobre uma saída proposital de si e de sua identidade a ponto do corpo trans em questão se fazer aderido à lógica perversa que o contradiz.

Entretanto, nós existimos e resistimos e existimos porque resistimos. É sob essa lógica que a travestilidade é necessariamente potência e resistência. É impossível ser travesti no Brasil, país que mais mata esta população no mundo por quinze anos consecutivos, sem resistir. Não há escolha, não há opção. Estar viva sendo travesti é em si uma resistência epistemológica. Trans-epistemológica.

E é nesta elaboração teórico-epistemológica subversiva que o transfeminismo nos ressuscita como seres e não como coisas, como possibilidade de ser e não de não ser, como potência e não como fraqueza.

Consideramos que ser transfeminista é romper com o silenciamento intelectual (Spivak, 2014) que se ampara nos cis-tema cartesiano cujo a síntese nunca nos contempla, mas é imposto pela cisgeneridade como normatividade (Vergueiro, 2016), o que ocorre desde os primeiros momentos da história travesti deste país.

Apesar de, como a cantora paraibana Bixarte afirma “Elas foram caçadas, no passado, presente, mataram e apagaram a história da gente”[1], é possível a elaboração contra-epistemológica de uma historiografia travesti. É necessário o vociferar destas vozes intelectuais que gritam pelos quatro cantos desta nação.

Desse modo, quando Jaqueline Gomes de Jesus (2019), mulher travesti afrofeminista recupera a memória de Xica Manicongo, condenada pela Estado Colonial e Inquisitorial e obrigada a despir-se de si mesma em prol da cisnormatividade, temos então o vociferar da potência travesti-epistemológica.

Ademais, quando Maria Clara de Araújo Passos (2022) nos ensina que corpos travestilizados são necessariamente pedagógicos porque a história desse país é também a história das travestis e de sua resistência, novamente temos a travesti como potência.

Quando, ao relembrarmos toda a luta de tantas mulheres travestis que vieram antes, construímos o conceito de trans-travesti-ancestralidade, para rememorar que não estamos aqui sozinhas, mas estamos porque muitas estiveram e estão, temos a travestilidade como potência mais uma vez. Reconhecemos, portanto, a trajetória das matriarcas, como, Cátia Tapety, Fernanda Benvenutty e outras que dedicaram as suas vidas por uma história que também seja uma história travesti.

Tantas outras que hoje ocupam espaços de liderança, de poder epistemológico, de transformação social, e que reafirmam: a travestilidade é potência. E algumas outras que são expulsas de casa aos doze ou treze anos, obrigadas a estar na prostituição, ou mortas, estas também são potências, porque não há lugar para a despontencialidade na travestilidade.

Considerações finais

Em nossa pesquisa-manifesto observou-se que a cisnormatividade colonial resulta, dentre outras consequências,  em um trans-epistemicídio, o qual se materializa no apagamento e silenciamento dos saberes, vivências e histórias de travestis dentro da realidade de nosso país.

Por outro lado, em uma contra-epistemologia subversiva, o transfeminismo, compreendido não apenas como campo do saber, mas também como movimento social, evidencia corpos dissidentes de gênero em sua subversão e insurgência contra o cis-tema (GOMES, 2022).

Percebe-se com isso que, em um país estruturalmente transfóbico, a resistência e a potência não só fazem parte do cotidiano das travestilidades, mas se confundem com elas, desaguando em uma sinonímia entre travesti e resistência, entre travesti e potência. Uma conversa intergeracional que aproxime as muitas faces e lados de todas nós.

Por fim e de forma congruente apontamos que os processos de resistência não excluem a necessidade de ações que possam desconstruir o cenário de trans-epistemicídio, uma vez que políticas públicas e garantia de direitos potencializa ainda mais as travestilidades e decorre diretamente na melhoria das condições de vida e de existência de/nossas pessoas.

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[1] Trecho retirado da música “Ketu” do albúm “Traviarcado”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GEDJGhMBO7Y>. Acesso em: 03 jan 2024.

Referências

CASTELO BRANCO, G. As resistências ao poder em Michel Foucault. Trans/Form/Ação, v. 24, n. 1, p. 237–248, 2001.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3ª Ed. Trad. Laura F. A. Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª Ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.

GOMES, Mário Soares Caymmi; YORK, Sara Wagner; COLLING, Leandro. Sistema ou CIS-tema de justiça: Quando a ideia de unicidade dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos fundamentais. Revista Direito e Práxis, v. 13, p. 1097-1135, 2022.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a palavra. Revista Docência e Cibercultura 3.1 (2019). p. 250-260.

MARTIN, Emily. The Egg and the Sperm: How Science hás construed a romance based on stereotypical male-famele roles. New York: Oxford University Press, 1996.

PASSOS, Maria Clara Araújo dos. Pedagogia das Travestilidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.

SPIVAK, C. G. Pode o Subalterno Falar?. Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e Sociedade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências. Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, 2016.

YORK, Sara Wagner; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. 2020. V. 28 N. 3. Artigo Científico (Dossiê Inflexões feministas e agenda de lutas no Brasil contemporâneo). Revista Estudos Feministas, 2020.   

YORK, Sara Wagner. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans na/da educação: des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de pós-graduação. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós Graduação em educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. UERJ, 2020.

 

Sobre autoria:

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Clarisse Mack da Silva Campos é Transfeminista, primeira Mulher Travesti graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Historiadora, integrante do NCDH/UFPB (Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos), membra de grupos de extensão na seara dos Direitos Humanos, atuou na área de diversidade humana pelo Estado da Paraíba, atualmente atua no Núcleo de Diversidade e Direito Homoafetivo da Defensoria Pública do Estado da Paraíba e Diretora da Coletiva de Estudos Transfeministas e Queer da Paraíba - CERTRANSPB. Possui interesse nas seguintes áreas: Gênero; Direitos Humanos; Travestilidades e Transfeminismo. Teoria Feminista e Crítica Feminista; Feminismo Decolonial e Interseccional; Análise feminista e transfeminista do direito; Historiografia subalterna; Historiografia decolonial; Trabalho e Relações de Gênero; Educação e Pegagogia das Sexualidades e Gênero.

 

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Sara York é doutoranda em Educação e ativista trans/intersexo. Para saber mais: sarawagneryork.com

 

Como citar este artigo: 

CAMPOS, Clarisse Mack da Silva; YORK, Sara. A TRAVESTILIDADE COMO POTÊNCIA EPISTEMOLÓGICA: ROMPENDO OS GRILHÕES DO TRANS-EPISTEMICÍDIO. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel