VAI TER B.O: NARRATIVAS TRANSVESTIGENERES PARA ALÉM DAS CELAS

2024-01-05

Autoria: Dayanna Louise

Exu. Cela. Sala. Fogo. Política. Milícia. Insurgência. Dissidência. Rua. Tormento. Movimento. Criminologia. Arquivo. Morto. Desconforto. Afeto. História. Memória. Rede. Audácia. Eficácia. Protesto. Carne. Jornal. Fatal. Exceção. Movimentação. Dores. Amores. Cisgeneridade. Sistema. Problema. Fronteira. Narrativa. Raça. Pirraça. Cidade. Agressividade. Quase. Fim.

Quantas palavras cabem numa pesquisa? O repertório de termos, expressões, referências bibliográficas e recortes investigativos representa um pouco da tessitura do mundo que habitamos, indicando aquilo que nos parece ser tão caro ao mesmo tempo que expõe nossa capacidade de se (re)posicionar diante da vida. 

Na costura do tempo, procuro a ponta da linha que liga o “corpo de pesquisa” ao “corpo que pesquisa”. Como exercício de “recordança”, espalho lembranças sobre o chão compondo um campo aberto de inquietações e possibilidades onde cada memória contida ali se torna vestígio do tempo que traz consigo significados novos para as coisas. Só o que toca a alma é capaz de indicar o caminho.

A palavra “cadeia” chega primeiro aos meus ouvidos ainda na infância, como sussurro afoito a escapar pelas brechas do muro de um conjunto habitacional multicor. Marinheira de primeira viagem, recordo a frase (mal) dita como quem conta segredo: Tu lembra daquela chave de cadeia que mora em frente a casa de Tia Zefa? (…).  A “figura” mencionada era um corpo jovem, preto, pobre e de baixa escolaridade, tão similar a grande parte da população carcerária do país (BRASIL, 2019) e atendia pelo nome de Val. Será algum diminutivo? Valmir? Valentina? Valter? Valquíria? Valdenice? Valdir? Quantos nomes cabem num corpo só? 

Quando o assunto era forma de tratamento, a coisa se tornava ainda mais complexa. Ei, moço. Vai logo, menina. Bicho imundo. Sua vadia. Que lixo. Não passa de um pilantra. Olha ele ali. Não tire o olho dela. Aquela (...) Aquele (...) Aquilo. A moça de bigode. O rapaz de batom. Pelo. Pela. Pele que enlouquece a gramática. Enquanto os cães ladram e a procissão passa, a linguagem se apresenta como tecnologia de poder (hooks, 2016) e colonialidade (KILOMBA, 2019).

No escuro se pode enxergar (Tente)

E a luz, uma ideia virá (Quente)

É prudente o amor conservar

E ardente o samba cantar

O presente ao futuro virá (Gente)[1]

21 de abril de 1993. Intercalando tranças e pião aberto, Val dançava freneticamente no miolo do risca faca. Nenhuma imposição ou enquadramento social parecia capaz de lhe alcançar. Cada parte do seu corpo suado despertava orações e ereções, estimulando rotas de fuga imaginárias . E ai, Val? República ou Monarquia? Parlamentarismo ou Presidencialismo? Cachaça ou água? Azul ou Rosa? No caldeirão fervente chamado Brasil, não faltava gente disposta a colocar lenha na fogueira. Enquanto no plebiscito a soberania popular definiria forma e sistema de governo, o regime de tutela e vigilância dos corpos pelo Estado estava em franca expansão. Conta pra gente. É Valério ou Valéria?

 Em horário comercial, Val utilizava sua força braçal para abastecer o açougue no mercado público. Patinho, filé, lagarto, coxão mole, picanha, alcatra, costela, acém, chuleta, ponta de agulha. Proteína pra todo tipo de gosto e bolso. No ato de desossar, a musculatura do seu braço totalmente despido contrastava com o traçado fino da sobrancelha e a delicadeza empregada no empacotamento da carne. O cabelo longo preso na touca realçava os traços angelicais de um rosto  barroco, conservando toda contradição que lhe é devida.

Numa noite de sábado, regras sanitárias perdem validade. Esmalte maçã do amor, escova no cabelo, perfume com notas de baunilha, batom vermelho e salto cuja missão é enaltecer o par de pernas lisas e iluminadas. Era preciso muita ousadia para hackear as normas daquele jeito, sem nenhum pudor. Mais que desaforo, um crime! Como explicar o caso para as crianças da vila? Homem ou mulher? Se toda palavra deixa rastro, o que estava acontecendo ali era sinal de destruição dos saberes, uma ameaça às regras gramaticais, ao ciclo reprodutivo e a solidariedade social.

 No intuito de resolver a questão, um curioso grupo recorreu ao ilustre psicólogo do bairro. A ótica cisgênera, tão indisposta a olhar para si e encarar seus monstros, é a mesma que reivindica legitimidade para teorizar e validar o/a outro/a. “Nomear a cisgeneridade é uma estratégia política de identificar esse lugar que define tudo, menos a si mesmo, o lugar que origina o entendimento de mundo ao se colocar como referência” (CANONNE, 2019, p.6).

Após revisar anotações feitas no caderno, consultar resoluções da categoria e revirar compêndio de livros, o “doutor” resolve colocar um ponto final na sentença convocando uma reunião extraordinária na associação de moradores. A notícia se espalhou mais que “pinto no lixo”. Faltando um terço de hora, a sala se encontrava abarrotada de gente: da sábia debulhadora de feijão ao ignorante escrivão do cartório, toda comunidade parecia caber naquele recinto repleto de sotaques, cheiros, caras, cores e crenças.

O fuzuê trazido pelo arrasta-pé dos chinelos só teve fim quando o mentor do alvoroço adentrou vagarosamente na sala, driblando um desalinhado caminho feito por cadeiras plásticas amareladas. Com barba por fazer e livro debaixo do braço, o renomado profissional desferiu a resposta em tom messiânico: Val é um coração batendo no mundo[2].

Se o enigmático veredito causou desconforto e frustração entre a vizinhança, a súbita prisão de Val parecia forrar a barriga de muita gente. Pois é… Val foi parar no xilindró! Deu agora no programa do meio dia. Só não me pergunte o motivo porque detesto falar mal dos outros. Quero ver agora onde isso vai parar: no presídio masculino ou feminino? Eita, confusão! O monólogo protagonizado por uma lavadeira de roupa suja se misturou ao forte som de água corrente transpassando os muros até se entranhar pelos meus ouvidos

 Foram necessários meses a fio para que o assunto perdesse fôlego. A roda de samba não tinha mais o mesmo gingado, nem o corte da carne bovina a mesma retidão. Quando a astúcia infantil ousava desafiar o regime de ostracismo, a sentença era implacável: Cadeia não é assunto e muito menos lugar pra criança. Línguas presas? Mãos atadas? Mentes fechadas?

Em “Quadros de Guerra”, Butler (2015) afirma que a existência de uma vida só é reconhecida quando passível de luto e garantida por uma série de direitos providos por diferentes instituições (poder judiciário, saúde, educação, etc.), ou seja, as que não passam por esse crivo estão apenas vivas no campo do precário. Qual o lugar de Val nestas relações de poder? Onde se encaixa a vivência transvestigenere?

Considerada fora das normas (não apenas da cisheteronormatividade, como também do ideário de classe e raça, por exemplo) e vista pelo imaginário social como “perigo em potencial”, sua existência permanece penalmente vulnerável aos mecanismos estatais de controle e repressão, sendo punida e encarcerada com maior facilidade pelo fato de ser esvaziada de humanidade. Na prisão, seu corpo será mais uma vez examinado, descrito e censurado, ou seja, a dupla carga de valor negativo (dissidência dos padrões de gênero/sexualidades e das normas penais) potencializa a abjeção.

O “ato falho” de não seguir os padrões de gênero e sexualidades torna essa existência precária, submetida a uma série de violências, tais como dormir de cabelo comprido e acordar de cabelo raspado, ser obrigada a agir como mulas para o tráfico, estupro coletivo (OLIVEIRA et. al. 2018, p.3); ter cigarro apagado em seu corpo, sofrer abuso sexual, ser vendida, ser trocada por uma barra de ferro (NASCIMENTO, 2016, p.64) e ser encarcerada em alas específicas de homens que cometeram crimes sexuais (SOUZA; FERREIRA, 2016).

O tratamento desumano e sua naturalização por parte do Estado se ampara na representação de corpos dissidentes enquanto perigo social, logo seu extermínio é essencial para manutenção da ordem. Céu Cavalcanti, em artigo publicado junto a Roberta Barbosa e Pedro Bicalho (CAVALCANTI; BARBOSA; BICALHO, 2018), analisa a chamada “Operação Tarântula”, ação civil e policial de perseguição aberta a travestis durante a ditadura civil-militar na cidade de São Paulo, descrevendo-a enquanto “política da inimizade e da abjeção” dada a colocação pública desta iniciativa enquanto “caça”.

Perseguições similares emergiram no país tanto no período ditatorial quanto no posterior processo de abertura política, de modo que a “redemocratização da sociedade brasileira e a consolidação dos direitos civis que foi presumida como decorrência não se estendeu às travestis” (ARAÚJO, 2020, p.46). Em seu trabalho “TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: desafiando e ocupando os “cistemas de Pós-Graduação”, York (2020) afirma que todas as suas amigas de adolescência sofreram abordagens policiais demarcadas pelo uso da violência. Qual o crime cometeram? Eram travestis.

Considerando que a transfobia é uma problemática brasileira, a violência contra tais corpos seguido de aprisionamento e/ou morte é constitutiva de projeto de cidadania do país negando-lhes direitos básicos, a exemplo da educação, saúde, empregabilidade e memória. Se o cárcere tem desempenhado “bravamente” o papel de salvaguarda da cisnormatividade, ainda assim não consegue conter por completo o movimento dos corpos dissidentes. Através das brechas, vislumbramos ressignificações e enredamentos protagonizadas pelos próprios sujeitos na medida em que “produzem soluções criativas que todos/as somos capazes de encontrar se não estivermos tomados/as demais pelos modelos, pelas formas, pela paralisia” (PARAÍSO, 2018, p.235).

“Mover-se para além da dor” (hooks, 2016) é disputar uma proposta de imaginário representativo e alternativo aos grilhões da cisnormatividade, ofertando subsídios para incidência política na construção de agendas emancipatórias que tem ganhado corpo sobretudo na última década através da criação de alas especiais, do uso do nome social nos processos judiciais, do direito à hormonização e no direito de mulheres transexuais e travestis optarem por cumprir penas em estabelecimento prisional feminino ou masculino. Não se trata de ignorar a existência de estruturas de opressão, pelo contrário, é através da compressão de como as mesmas operam que podemos lançar olhares sobre os movimentos desses corpos por entre e para além das grades.

Enquanto enveredo pelo desfecho desta escrita, penso com meus botões: por onde andará o coração de Val? Quem ouvirá suas batidas? Corre a boca miúda que ouviram som parecido num frigorífico situado a léguas de distância. A pulsação cardíaca se confundia com batidas do amaciador de bife. Bater. Sangrar. Cortar. Sobreviver. Se todos desejam a carne de Val, sua resposta se manifesta na voz de Ventura Profana[3]: “arrebatamos das mãos do senhor as chaves de nossas cadeias. Dancemos engenhosas e aprendamos a voar”.

 

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Maria Clara. A transfobia é uma problemática brasileira. Usina de Valores, 2018. Disponível em: https://usinadevalores.org.br/a-transfobia-e-uma-problematica-brasileira/ Acesso em 14/05/2021.

BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Sistema Prisional em Números: capacidade e ocupação [Internet]. Brasília; 2019. Disponível em: https://bit.ly/3oiDxAH 

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.

CANNONE, Lara Araújo Roseira. Historicizando a Transexualidade em Direção a uma Psicologia Comprometida. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 39, n. spe3, p. e228487, 2019.

CAVALCANTI, Céu; BARBOSA, Roberta & BICALHO, Pedro. Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-redemocratização. Psicologia: ciência e profissão, vol. 38 no.2, 2018.

HOOKS, Bell. Mover-se para além da dor. In: Geledés. 2016. Disponível: https://www.geledes.org.br/mover-se-alem-da-dor-bell-hooks/. Acesso em 04/04/2021.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

NASCIMENTO, Luciana Maria do. As leis que me prendem: travestis/transexuais no
sistema prisional.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço Social) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/166065. Acesso em: 19 mai. 2021

OLIVEIRA, José Wellington De et al. “Sabe a Minha Identidade? Nada a Ver com
Genital”: Vivências Travestis no Cárcere.
Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 38
(núm.esp.2.), p. 159-174, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v38nspe2/1982-
3703-pcp-38- spe2-0159.pdf. Acesso em: 19 mai. 2021

PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo, gênero e heterotopias em tempos de slogan “ideologia de gênero”. In: LOPES, Alice Casimiro; OLIVEIRA, Anna Luiza A. R. Martins de; OLIVEIRA, Gustavo Gilson Sousa de. Os gêneros da escola e o (im)possível silenciamento da diferença no currículo. Recife: Ed. UFPE, 2018. p. 211-242.

SOUZA, Bruna Caldieraro De; FERREIRA, Guilherme Gomes. Execução Penal e
População de Mulheres trans*: o caso do presídio central de Porto Alegre.
Cadernos de
Gênero e Diversidade, Salvador, vol 02, n. 01, Jan-Jul, Salvador, 2016. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/cadgendiv/article/view/17629. Acesso em: 16 mai. 2021.

YORK, Sara Wagner. Tia, você é homem? Trans da/na educação: Des(a)fiando e ocupando os "cistemas" de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Sara Wagner York– Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

[1] Trecho da música “Coisas da Gente” interpretada por Elza Soares no álbum “Voltei” (1988).

[2] Paráfrase baseada na obra “Água Viva”, livro de Clarice Lispector publicado em 1973. 

[3]      Ventura Profana é uma travesti baiana, escritora, compositora, cantora e artista visual. O trecho mencionado é parte integrante da composição musical “eu não vou morrer”.

 

Sobre autoria

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Dayanna Louise é doutoranda em Educação/UFS. Mestra em Educação e Bacharela em Serviço Social/UFPE. Licenciada em História e Especialista em História do Nordeste/UPE. Professora da Rede Estadual de Pernambuco.

Como citar este artigo: 

LOUISE, Dayanna. VAI TER B.O: NARRATIVAS TRANSVESTIGENERES PARA ALÉM DAS CELAS. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel