CONFRONTOS TRAVADOS: BREVES REFLEXÕES SOBRE ESPAÇO PÚBLICO E CORPOS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

2024-01-04

Autoria: Erika Matheus Silva dos Santos

Introdução

O presente trabalho discute o modo como as práticas jurídicos-sociais atravessam, de forma interseccional, corpos negros e travestis. Para tanto, o trabalho apresenta uma breve referência histórica sobre a legislação brasileira e, em um segundo momento, passa a refletir sobre os conflitos e confrontos que os corpos trans, especialmente aqueles com o recorte da racialidade negra, enfrentam no espaço público. Buscamos descrever e compreender os processos discursivos de criminalização dos corpos dessas sujeitas[1] em legislações específicas – o que chamaremos de CIS-tema, seguindo as reflexões de Mário Gomes, Sara Wagner York e Leandro Colling (2022) –  e as imbricações sociais que estabelecem o cenário de experiência social dessas identidades, além de demonstrar, de maneira breve, mas incisiva, as resistências que aí são construídas. Não pretendemos perder de vista que adotaremos aqui uma maneira crítica de pensar as dinâmicas corpóreas “em torno das diversidades corporais e de gênero a partir desta perspectiva epistemológica sobre questões étnico-raciais” (Vergueiro, 2015, p. 60).

Fundamentação teórica

Para pensar as noções de corpo e de espaço, este trabalho vai reconhecer a experiência social (I) a partir de aspectos enunciativos que são instituídos nas relações sociais entre sujeitos, revelando assim posições ideológicas em que se estabelece “a narrativa intolerante [...] como uma narrativa de ruptura de contratos entre destinador e destinatário” (Barros, 2007, p. 147), e (II) a partir de contratos sociossemióticos, estabelecidos entre sujeitos mas regulados por outras práticas semióticas (Cf. Greimas; Courtès 2008, p. 144) que delimitam o que são espaços  socialmente comuns (e o sentido de comunidade) e os espaços disputa (estrutural e historicamente construídos como sentidos de enfrentamento e intolerância). Nesse sentido, a cisgeneridade e a branquitude serão entendidas como atores sociais (responsáveis pela destinação) que vão promover por meio do CIS-tema (Gomes, York, Colling, 2020) da lei, a invisibilização e o fomento de “não-humanidades” em razão da ruptura contratual da norma e do script sóciocomum que têm origem nos valores que promovem. Os corpos insurgentes, no caso em tela, travestis negras, serão entendidos como destinatários que vão recusar os valores cisnormativos brancos – e que por isso receberão sanções negativas pelo status quo.

Um histórico inquisitorial

É no aparato diacrônico que buscamos determinadas práticas discriminatórias formuladas na forma no CIS-tema da lei e que tinham por intencionalidade atingir determinadas existências e ratificar papéis sociais pavimentados em uma lógica de marginalização e estigma. Há assim a constituição de um regime CIS-têmico de produção de violências - conotações socioculturais estabilizadas na cultura brasileira - que irão perpassar as subjetividades das identidades trans e negras a um espaço de subalternização. Quanto à população negra, pensemos no período pós-abolição em que existem formas de sanção por meio de leis – de natureza inquisitorial - como o delito de vadiagem, por exemplo, crime previsto no Código Criminal de 1830 e no Código Penal de 1890. A chance de enterrar definitivamente a vadiagem como delito, porém, foi perdida, sendo resgatada e incluída, no ano seguinte, na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688). No caso específico do código de 1890, cujos valores ideológicos e formas discursivas prevaleceram até hoje, vamos perceber que todos os comportamentos sociais marcados pela liberdade (de corpo, de movimento, de pensamento) e, associados aos valores de normalidade e universalidade, são também componentes da branquitude. Só é livre o normal.

É esse também o aspecto ressaltado por Gomes, York e Colling (2022, p. 1105) que vão mostrar que o CIS-tema jurídico vai fazer a manutenção de valores como “natureza”, ao definir os papeis dos atores sociais e estabelecendo hierarquias entre “os membros da sociedade”, especialmente no que conserve ao gênero. A ação policial CIS-temática e violenta contra pessoas negras e trans/travestis, banalizada e aceita até hoje,  impedindo sua circulação e o gozo dos espaços públicos é portanto uma evidencia da manifestação da branquitude e da cisgeneridade (Schwartzmann, 2021, p. 14), uma vez que a ação da polícia é modalizada segundo relações de alteridade que se constroem em situações semióticas bem determinadas: impedir que pessoas negras e trans/travestis realizem, nos espaços públicos, todas as formas de existência ao ar livre, da rua e da vida livre de modo geral.

No período ditatorial militar (1964 - 1985) e, mesmo depois, na gradual redemocratização do país, a relação com as mulheres trans e travestis, por meio do CIS-tema da Lei passou a ser ainda mais evidente. Os valores de ojeriza e perseguição, naturalizados no século XIX, contra pessoas negras, se mantêm revitalizados no Código Penal Brasileiro, promulgado em 1940, que também exerce funcionalidade discriminatória, especialmente por meio do Artigo 130 que cita “Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que se sabe ou deve saber que está contaminado[2]” (Decreto-Lei N° 2.848, 1940, grifo nosso). Desse modo, as sujeitas eram enquadradas e incriminadas por tal tipificação  por meio de seu trabalho enquanto profissionais do sexo e, muitas vezes, apenas por andarem pelas ruas. Jovanna Baby, matriarca do movimento trans, que vivenciou tal período, aponta enquadramentos sofridos embasados nessa mesma legislação que remonta à lei de vadiagem.

Operações policiais CIS-temáticas foram assim importante ferramenta no Estado de São Paulo para prender utilizando como argumento o exposto acima, serviu para “combater” a AIDS prendendo as travestis, conforme noticiado em manchetes da época. Mesmo com sua pouca duração, prendeu mais de 300 mulheres trans e travestis. Dessa forma, podemos ver uma práxis da diferenciação do “Outro” e, para além disso, uma lógica de um ataque pelo direito penal do autor direcionado para tais sujeitas, assim como foi utilizado para a população negra. Assim, fica evidente que a punição decorre, exatamente, pela subjetividade de quem se é e não da ação propriamente dita. Do ponto de vista discursivo, são os operadores (destinadores) do discurso que detém o poder e o dever-ser (a branquitude e a cisgeneridade) que vão, por meio de aparelhos de estado, sancionar negativamente o conjunto das identidades desviantes. Mas não era só discurso: era vida e morte nas ruas das cidades brasileiras. O esquema discursivo da intolerância (Barros, 2016), ao evidenciar os corpos trans e trans negros como interditos sociais, permite que essa sociedade branca e cisgênera se silencie diante das violências a que esses corpos e identidades são expostos, uma vez que do ponto de vista do direito penal não são sujeitos de direito – isto é, não têm garantias fundamentais asseguradas por lei - mas sujeitos a deveres. A lei acaba por naturalizar a violência nos processos de socialização, onde existe um “ocultamento das formas de violência mais visíveis” disfarçadas por situações de falsa “cordialidade e respeito, um mundo de parecer”, que submete as pessoas trans à violência normativa, por meio de mecanismos de violência invisíveis, camuflados e naturalizados” (SCHWARTZMANN, 2022, p. 275, 276). Graças à lei, há um fortalecimento de valores hegemônicos que vão sustentar as ações persecutórias: os corpos interditos não encontrarão espaço possível de trans-ito.

Embates entre o público e o privado

Louis Althusser, em Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (1970), salienta que instituições distintas e especializadas formam a essência da operacionalidade da lógica ideológica do Estado, produzindo dinâmicas internas e particulares do funcionamento entre público e privado. É o Aparelho Repressivo do Estado – mais uma vez, o CIS-tema – que atua na repressão, tendo como alicerce a ideologia, minando as práticas de sociabilidade de identidades trans e negras. Nesse sentido, ao pensarmos na lógica normativa e compulsória da cisgeneridade e da branquitude, que usufruem de acessos mediante a “normalidade” forjada para seus enredos (ideologia), podemos notar métodos de sansão (repressão) para sujeitos que fogem desta prescrição social. Logo, em relação às travestis e transexuais, sobretudo negras, ao não estarem inseridas numa ideologia branca e cisgênera, não têm acessos, direitos e legitimidade promovidas pela norma: são cristalizados métodos de perseguição, estigmas e violências em relação a esses corpos “naturalmente” disruptivos.

Quanto à tensão entre o público e o privado, o público é reservado aos que seguem a cartilha ideológica hegemônica e o privado aos que escapam da mesma. No refletir da questão, podemos analisar, como exemplo, a própria prostituição como linha tênue, ademais, no funcionamento dessa ramificação da ideologia normativa. Podemos nos perguntar: por que há punição para a trabalhadora sexual no exercício de sua função mediante as práticas correlacionadas (vestimenta, por exemplo) e não há para o agente contratante ou servidor que proporciona explorações e condições desumanas e desgastantes? Por que o espaço da rua é criminoso e o do prostíbulo não? Além disso, por que são observadas mais trabalhadoras trans e travestis negras nas ruas e, para mais, sendo punidas e violentadas? A dicotomia público e privado é mais uma ferramenta de repressão quando as ações são delineadas pela lógica do esconderijo e longe das lentes sociais, pavimentadas fortemente em questões de cunho interseccional[3]. O esconderijo ou cárcere pode ainda ser temporal, no caso das dinâmicas de discriminação das identidades trans e travestis. A noite é reservada para travestis e mulheres trans e o controle biopolítico de suas vivências (privado), sobretudo daquelas que trazem marcas de atravessamentos da negritude, são demonstrados através das práticas incisivas e delimitações de inferiorização.

Nessa seara de luta, o corpo que se oferece à luz do dia acaba sendo o próprio suporte do ativismo, num ambiente historicamente violento como, por exemplo, as Universidades: misto complexo de espaço ao mesmo tempo público e privado, onde a presença de corpos negros e trans e travestis é sempre da ordem do confronto[4]. Nesses espaços, se estabelece um ativismo corporal quando o “corpo travesti ou trans ganha propriedade discursiva a partir do compor ou contrapor exposições anteriormente feitas a respeito delas, sobre elas e, agora, por e com elas” (Cf. York, Rayara e Benevides, 2020, p. 5). Sara York, Megg Rayara e Bruna Benevides (2020, p. 3), mostram ainda que a intolerância e o preconceito contra travestis e transexuais “ganha uma outra forma nos programas de mestrado e doutorado” ambiente que sua isenção enquanto pesquisadoras é questionada. Esse fatos só corroboram o que vimos dizendo aqui: por meio de práticas sociais e discursivas, especialmente por meio da lei, produziu-se no Brasil uma exclusão sem igual, retirando direitos fundamentais de uma parcela da população. Isso só reforça a necessidade da criação de cotas para agregar corpos insurgentes, deixados de lado na formação intelectual e laboral do país.

Conclusão: reflexões e formas de (re)existências

No presente artigo, buscamos, mesmo que brevemente, analisar as correlações entre os sistemas inquisitoriais da branquitude e da cisgeneridade acerca de corpos trans, juntamente com aquilo que nos é evidente pela abjeção social marcada em sujeitos negros, pobres e com identidades de gênero e sexualidades que fogem a normatividade enquanto ideologia de controle. Ademais, buscamos perceber as recorrências figurativas acerca desses corpos insurgentes enquanto “marginais” e “perigosos”, sustentada pela ótica de controle e desumanização promulgada pela própria letra da lei, especialmente se olhamos para o código penal de 1890 e o do 1940. Mais do que propor conclusões, nossa reflexão é um alerta: ao mesmo tempo em que podemos perceber (r)existências e formas de luta diante de todo processo histórico de exclusão e marginalização social a que foram expostos os corpos insurgentes, é notável o silenciamento sobre a violência, ignorada ou atenuada, como se nada fosse. Não há passo que se dê na direção de direitos iguais que não tenha custado muito ou que venha depois de muitas mortes.

Ainda que existam pequenas vitórias legais, como a declaração do STF em 2019, equiparando a transfobia ao crime de racismo, o CIS-tema branco faz a manutenção de opressões, evidenciando a necessidade de olhares interseccionais e de medidas acesso efetivas. O que resta dos embates enfrentados pelas travestis e mulheres trans no âmbito social e jurídico é, exatamente, a urgência de pautar a movimentação de resistência das identidades trans por direitos e não por liberdade. Esse direito, firmado na Constituição, precisa urgentemente ser repactuado para quem nem só de entraves seja feia a vida de travestis e pessoas trans.

Referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Editorial Presença, 1970.

BABY, J.. ‘Quem me perseguia passou a me respeitar’. Alma Preta, 20 jul  2020.

BARROS, D. L. P. de. A identidade intolerante no discurso separatista. Filologia E Linguística Portuguesa, (9), 147-167, 2007.

CAVALCANTI, C.; BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-redemocratização. Psicologia: Ciência e Profissão, 2018, v. 38 (núm.esp.2.), 175 – 191.

GOMES, M. S. C., YORK, S. W., & COLLING, L. (2022). Sistema ou CIS-tema de justiça: Quando a ideia de unicidade dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos fundamentais Revista Direito E Práxis, 13(2), 1097–1135, 2022.

GREIMAS, A. J; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.

JESUS, J. G. de. Transfeminismo: teorias & práticas. RJ: Editora Metanoia, 2014.

SANTOS, M. S. A prisão dos ébrios, capoeiras e vagabundos no início da Era Republicana Santos. TOPOI, v. 5, n. 8, jan.- jun. 2004, pp. 138-169.

SCHWARTZMANN, M. N. Língua, gênero e diversidade: o que tem a semiótica a ver com isso?. Estudos Semióticos, 18(3), 258-278, 2022.

SCHWARTZMANN, M. N. A doméstica como síntese do racismo brasileiro: discurso, formas de vida e cultura. Revista Estudos Semióticos - ESSE, vol. 17 n. 2, 2021.

VERGUREIRO, V. S. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Universidade Federal da Bahia, 2015.

YORK, Sara Wagner/GONÇALVES JUNIOR, Sara Wagner Pimenta; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e75614, 2020.

[1] Adotamos o termo sujeitas em uma perspectiva decolonial e de transgressão da linguagem padrão e prescritiva, tendo por objetivo evidenciar de forma acentuada a identidade travesti/transexual feminina.

[2] Isso se agravou no final da década de 1980, um dos períodos mais difíceis da epidemia de HIV/AIDS, havendo a culpabilização, em especial, as identidades trans e travestis, sobretudo profissionais do sexo (Cavalcanti; Barbosa; Bicalho, 2018).

[3] É importante salientarmos que no Brasil não é crime o trabalho com a prostituição. Entretanto, existe um complexo problema de cunho público vs privado, denotando a existência de crimes associados a tal prática, que são previstos no ordenamento jurídico nacional.

[4] A quinta edição da Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Instituições Federais de Ensino Superior Brasileiras traz a porcentagem de 0,003% de pessoas trans e travestis inseridas em ambientes acadêmicos federais, fruto do processo de exclusão histórico promovido pela ideologia do Estado e colonial, ao qual traz correlações com as balizas racistas na construção da contemporaneidade brasileira.

 

Sobre a autoria:

H7rTMqc.jpg

Erika Matheus é formada em Letras pela UNESP-FCLAr, mestranda em Linguística e Linguística Portuguesa pela UNESP-FCLAr, linguísta-semioticista, coordenadora de Gênero e Sexualidade em Relações Étnico-Raciais da Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate à Violência, membra do FONATRANS, professora, palestrante e ativista política.

 

Como citar este artigo: 

SANTOS, Erika Matheus Silva dos. Confrontos travados: breves reflexões sobre espaço público e corpos travestis e transexuais. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2024, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel