Notícias de viagem: a universidade historicamente negra que eu vi de perto

2023-12-15

Autoria: Alexandra Lima da Silva

Fazia tempo que eu nutria o desejo de conhecer mais de perto o chamado “Deep South”[1], o sul profundo que eu via em filmes e obras literárias, lugar de profundas e persistentes marcas da escravidão e da segregação racial nos Estados Unidos. O chamado “Deep South” abarca os estados do Alabama, Mississippi, Louisiana, Arkansas, Georgia, e, em algumas definições, também Carolina do Sul e Tennessee. Esses estados compartilham características culturais semelhantes, incluindo uma ênfase na tradição, na culinária, na música (como o blues e o jazz) e, historicamente, uma economia baseada na agricultura, especialmente no cultivo de algodão. É a região com marcas e sequelas significativas da escravidão e da segregação racial.

Meu problema de pesquisa era compreender os significados de pertencer a universidades historicamente negras nos Estados Unidos, as  HBCUS ou “Black colleges”. Meu interesse em estudar as HBCUS surgiu no ano de 2017, quando assisti ao documentário interessante Tell Then We Are Rising[2] (Avisem que estamos chegando) no festival de cinema do Rio. O documentário dirigido por Stanley Nelson[3] ampliou meu horizonte a respeito da existência de faculdades e universidades historicamente negras, principalmente como expressão de luta por educação por parte das próprias comunidades afro-americanas, desde o período após a Guerra Civil até a atualidade.

Outro aspecto que reforçou meu desejo por conhecer mais de perto o Deep South foram minhas leituras a respeito da trajetória intelectual de Booker T. Washington, um dos fundadores da Tuskegee University. Booker Taliaferro Washington nasceu em cativeiro na Virgínia, Estados Unidos, no ano de 1856, e tornou-se um importante professor, sendo o fundador do Tuskegee Institute, uma Escola Normal Negra, em 1881. Booker T. Washington escreveu três autobiografias ao longo de sua vida: Up From Slavery: An Autobiography, An Autobiography: The Story of My Life and Work e My Larger Education: Being Chapters from My Experience. Booker Washington também se tornou um intelectual de renome internacional.

E para completar, foi também no ano de 2017, em uma conferência da LASA,  a ocasião em que conheci  Rhonda Collier, professora na Tuskegee University. Após muitas conversas e trocas, fui acolhida pela professora Rhonda Collier para realizar as pesquisas da minha licença sabática, na Tuskegee University, na cidade de Tuskegee, Alabama.

Historiadora de formação e ofício, eu precisava produzir registros e memórias sobre essa experiência recente, no mundo pós-pandemia de COVID-19. Ora, na minha tese de doutorado, analisei o diário impresso da viagem de Rocha Pombo, um historiador branco, pelo norte do Brasil. Então, por que os meus relatos de viajante não seriam válidos?

A partir das minhas conversas com Edmea Santos[4], fui incentivada a reconhecer que meus posts no Instagram também podem ser vistos como diário de pesquisa e como relato de viagem legítimo[5]. Por que não?

Os posts diários no Instagram ajudaram na visibilidade da minha própria existência enquanto pesquisadora negra em viagem em um país de maioria negra como o Brasil, e na produção de imagens que possam inspirar e incentivar outras jovens pesquisadoras negras a também se apropriarem deste espaço que nos é historicamente negado. Produzir outras imagens é também uma dimensão social possível por meio das redes sociais.

Me coloco em movimento e digo: quem me define sou eu. E eu escolho existir em movimento, em parceria e em conexão com outras mulheres negras e acadêmicas.

E nesta jornada, sigo as pegadas de tantas outras, que me antecederam e que coexistem comigo. E é bell hooks que eu fundamento as ideias que defendo aqui: a experiência de viajar para o sul dos Estados Unidos foi uma viagem de procura por pertencimento, porque eu também “preciso saber para onde estou indo”, porque também eu, “por toda a minha vida, procurei um lugar de pertencimento, um lugar para ser meu lar”(hooks, 2022).

Eu transformei meu perfil pessoal no Instagram em diário de viagem, em que procurei organizar minha própria rotina e imersão cultura, política, social e afetiva.

No primeiro dia, postei o acolhimento que eu recebi por parte da professora Rhonda Collier, com muitos presentes e brindes da Tuskegee University

Imagem 1: Post Welcome Alex e Violeta

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Dia 1: Violeta e eu fomos recebidas com muito carinho e cuidado pela querida Dr. Rhonda Collier, na Tuskegee University

Imagem 2: Leituras sobre a História da Tuskegee University nos anuários da universidadeKia9IPP.png

A chegada no campus da Tuskegee University foi bastante intensa e impactante para mim. Foi quando vi pela primeira vez, o patrono da universidade em um imponente monumento, erguido em homenagem a Booker T. Washington. O monumento é repleto de significado: nele há 2 homens negros, sendo um, abaixado,  tendo a cabeça descoberta por um outro, erguido, de pé. O significado da estátua é: "Lifting the Veil of Ignorance" (Elevando o Véu da Ignorância) e representa a busca pelo conhecimento e pela educação. A estátua foi esculpida por Charles Keck, no ano de 1922. Ela simboliza a filosofia educacional de Washington, que enfatizava a importância da educação e do conhecimento como caminho para a libertação e progresso da comunidade afro-americana.

Imagem 3: Post sobre o primeiro dia no campusfhfZUC9.png

“Dia 2: Hoje o dia foi intenso. Conheci o monumento símbolo da Tuskegee University,  dei aula sobre  educação como prática de liberdade na disciplina da professora Rhonda Collier e tive a oportunidade de assistir aos debates sobre o filme They cloned Tyrone, com a presença do diretor e da atriz @yo_megs”

A presença de Booker T. Washignton foi eternizada também no cemitério existente dentro das dependências da universidade. Cemitério reservado exclusivamente para docentes notáveis  e honorários membros da instituição:

Imagem 4: O cemitérioQw4ijCr.png

Achei interessante o fato de ter um cemitério dentro da universidade.  Nunca tinha visto um assim”.

Tenho dito que nunca aprendi tanto em 30 dias de viagem. E eu não viajei sozinha. Violeta, a boneca que protagoniza meus livros infantis me acompanhou nesta jornada incrível. Compreendemos a importância de Parlay, o tigre dourado que para além de um mascote, é o coração da comunidade estudantil: ele simboliza a coragem, a bravura, e está presente em todas as partes.

Imagem 5: Dia 4: Teve Violeta,  Golden Tiger, Soul food,  tudo maravilhoso

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Imagem 6: Aula Education as desire of freedom

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Preparativos para mais uma atividade por aqui: aquele em que Violeta encontra o Tigre Dourado

Além de participação em aulas, palestras e oficinas para professores, a visita a Tuskegee University teve momentos bastante inusitados. Cito aqui a visita de Lionel Richie, egresso da universidade e ilustre membro da comunidade.

Imagem 7: Welcome Lione Richie

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Mas estou pesquisando ou dizendo Hello para Lionel Richie? As duas  coisas

Além da visita ilustre de Lionel Richie, gostei bastante da oportunidade de viver o “Homecoming”, um momento muito aguardado no calendário da universidade. É quando os ex-alunos voltam para casa. E celebram a história da instituição. Essa festividade é, a meu ver, a síntese e expressão das ideias de pertencimento e orgulho.

Imagem 8: Encerramento do Homecoming

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Resumindo:

A imersão na Tuskegee University me possibilitou muitas reflexões, que este texto não vai conseguir esgotar, mas que gostaria de sintetizar aqui:

1-Registros e posts sobre a viagem como prática de pesquisa, memória e formação;

2- A produção de outras imagens para a população afrodescente na academia;

3- bell hooks como aporte teórico: lugares de pertencimento;

4- O campus como lugar de memória: em monumentos, cemitérios, prédios;

5- Valorização das tradições;

8- O homecoming como expressão de pertencimento: consagração,  distinção e celebração

 

Nota de rodapé

[1] Ver:  https://www.newworldencyclopedia.org/entry/Deep_South

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FscDlqZg5dk

[3] Diretor de inúmeros documentários sobre a experiência afro-americana, destaco:   Freedom Riders (2010);  The Black Panthers: Vanguard of the Revolution (2015), The Black Press: Soldiers Without Swords (1998).

[4] Edméa Santos é professora titular -livre da UFRRJ e bolsista produtividade CNPq e cientista do nosso estado pela FAPERJ. Site acervo: www.edmeasantos.pro.br.

[5] Neste sentido, o livro de Edmea Santos, Escrevivências ciberfeministas e ciberdocentes: narrativas de uma mulher durante a pandemia Covid-19, foi uma inspiração metodológica para mim. Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/escrevivencias-ciberfeministas-e-ciberdocentes-narrativas-de-uma-mulher-durante-a-pandemia-covid-19/

Referências:

hooks, bell. Pertencimento: uma cultura do lugar. São Paulo: Elefante, 2022.

SANTOS, Edmea. Escrevivências ciberfeministas e ciberdocentes: narrativas de uma mulher durante a pandemia Covid-19. São Carlos: Pedro & João

Editores, 2022.  Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/escrevivencias-ciberfeministas-e-ciberdocentes-narrativas-de-uma-mulher-durante-a-pandemia-covid-19/

WASHINGTON, Booker T. The Awakening of the Negro.
The Atlantic Monthly. September, 1896. 78(466) pp. 322-328.

_____. Memórias de um negro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.

 

Sobre a autora:

Alexandra Lima da Silva é Professora Associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade do Estado do Rio de Janeiro Bolsista Prociência UERJ, Produtividade CNPq 2 e Jovem Cientista da FAPERJ. Site pessoal: https://sementesdebano.com.br/

Como citar este artigo: 

SILVA, Alexandra Lima da. Notícias de viagem: a universidade historicamente negra que eu vi de perto. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, dezembro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA. 

Editores/as Seção Notícias:

Felipe Carvalho - Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá (PPGE/UNESA); e bolsista de pós-doutorado CNPq pela Universidade Federal de Tocantins (UFT).

Edméa Santos - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Rural (PPGEDUC/UFRRJ)

Marcos Vinícius Dias de Menezes - Graduando em Letras - Português, Inglês e Literatura em modo de licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Bolsista de Iniciação Científica na FAPERJ

Mariano Pimentel - Professor do Programa de Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGI/UNIRIO)