(IN)VISIBILIDADES E EMERGÊNCIAS COTIDIANAS

2023-12-12

O dia mal começou... e quanta coisa já fiz! São 13h. Chamo o Uber, que me levará à 

Uerj. A aula começa às 13h30min. A previsão é de que o carro chegue em 8 min. Aguardo.  Nada! Faltam 2 min.  Ops! Agora recebo uma mensagem de que vai demorar mais 7 min. Tudo ‘engarrafado’! “Rio, 40 graus. Cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos!”[1].

Pressinto que não conseguirei responder ao desafio de fotografar algo que me chame a atenção, no percurso casa-Universidade, como solicitado pelas professoras da disciplina obrigatória do Mestrado/2023, “Currículos e Cotidianos". Mas, como fazê-lo, se o carro saculeja mais do que “velho sassaricano, na porta da Colombo”[2], e esse o calor escaldante não me deixa raciocinar. 

E pensar que grande parcela de nosso povo vivencia, diariamente, essas dificuldades !!!!

Como afirma Certeau (2012, p. 31), 

O cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. (...). É um mundo que amamos, profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres. (...).

Não há dúvidas de que o que interessa ao pesquisador cotidianista é o invisível - às vezes, não tão invisível; aquilo que está latente, pois só é, ou ganha visibilidade, à medida que é processado, gestado e construído na relação com outro.

Assim pensando, resolvo mudar meu trajeto. Troco o Portão 4 da Uerj, pelo Portão 1, na esperança de que algo diferente desperte minha atenção. Eis que me deparo com uma feirinha, no pátio da Universidade. Trata-se da "Feira Moda Mundi", mostra que teve início no dia 04 de novembro e se estenderá até o dia 14 de novembro de 2023.

Fim de corrida. Tenho de andar alguns metros até a entrada do prédio principal. Ao longo do caminho, barraquinhas enfileiradas expõem seus produtos: são vestidos estampados, blusas, saias, calças compridas e acessórios, em geral. Vendedores, distraídos, conversam, ou   consultam seus celulares, enquanto estudantes e funcionários, entre outros, seguem distraídos (Figuras 1 e 2). 

Figura 1- Visão geral do espaço

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Fonte: acervo da autora

Figura 2 - Tomada de uma barraquinha

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Fonte: acervo da autora

Apesar de se repetir algumas vezes ao ano, a feirinha da Uerj é sempre um acontecimento que dá mais vida à Universidade.  Nessa perspectiva, as noções de espaço e lugar assumem papel de grande relevância para compreendermos a cultura contemporânea, dado que essa ambiência, como um ‘lugar’ consiste em uma configuração de posição, enquanto como um ‘espaço’ constitui um lugar em movimento, ‘um lugar praticado’, no qual se dão as ações dos sujeitos históricos e “se organizam os jogos de relações mutáveis que uns mantêm com os outros” (Certeau, 2012, p. 185). E à medida que lhes atribuímos ‘sentidossignificados’, possibilitamos a transformação de lugares em espaços e de espaços em lugares.

Em relação à feirinha, ainda que seu funcionamento tenha início ao final da tarde, já pela manhã podemos observar a movimentação dos montadores das barracas e, em seguida, a chegada dos expositores para organizar seus produtos na banca, sempre sorridentes e falantes, enquanto estudantes passam apressados em direção às salas de aula.

Se esse cenário nos é tão familiar, por que retratá-lo? Alves (2008), então me diz:

Para apreender a ‘realidade’ da vida cotidiana, em qualquer ‘espaçotempo’, é preciso estar atenta a tudo o que nela passa, se acredita, se repete, se cria, se inova, ou não. Tudo isso exige o ‘sentimento do mundo, para ir muito além do olhar que vê, e com o qual aprendemos a trabalhar; além de estabelecer múltiplas redes de relações”.  

Larrosa (2004) aproveita a ‘deixa’, e sussurra ao meu ouvido: “Olhe pelas lentes da experiência!

Como assim? O que é experiência?"retruco. Larrosa complementa: “Experiência é aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que passa, não o que acontece, ou o que toca”.

Ponho-me, então, a pensar que, com tantas coisas passando a um só tempo, quase nada nos acontece. Abordar um espaço como uma experiência multidimensional, incorporando aspectos físicos, subjetivos, cognitivos e culturais é cada vez mais raro em nossos cotidianos atribulados. Tudo o que passa, passa cada vez mais depressa, dificultando-nos conectar diferentes eventos, e nos impedindo de rememorá-los. Como afirma Bauman (2000), vivemos a modernidade líquida, marcada pela fragilidade de laço entre pessoas, e de pessoas com instituições. No entanto, esses ‘espaçotempos’, nos quais a vida flui, de forma dinâmica, permite uma compreensão mais rica e holística da maneira como interagimos com o outro e compreendemos nosso entorno.

Dado que o tempo não pára, vou “tocando em frente”[3], com “a certeza de que muito pouco sei, ou nada sei, e é preciso conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das e das maçãs”. Como um caminhante que tem uma missão a cumprir, e não como um transeunte que se desloca, sem um objetivo ou propósito específico, proponho-me, então, a olhar, tocar, sentir as diferentes expressões resultantes de inúmeras ações, que somente na aparência, são iguais ou repetitivas. Aproximo-me, então, de duas feirantes, muito simpáticas – Zezé e Paula (nomes fictícios), e entabulo, com elas, uma conversa (que é o que nós, professores mais gostamos de fazer).

Machado da Silva (2010) assevera que pesquisar é antes de tudo estranhar; isso é, desver um pouco, para ver melhor, adiante. É preciso, também, entranhar-se; mergulhar no desconhecido e, colocar-se no lugar do outro, com um olhar e uma escuta ‘sensíveis’. Mas essa é uma atitude provisória. Há que se desentranhar, pois “o pesquisador não é porta-voz de si mesmo nem desse outro que vai descobrir.

Em cerca de 45 min de papo - regado a cafezinho e biscoitos, fico sabendo que as duas são mãe e filha, têm cerca de 60 e 40 anos, respectivamente, e moram no subúrbio da Leopoldina. Contam-me que trabalharam em uma fábrica de roupas, com carteira assinada, mas que perderam seus empregos, na pandemia. Ressaltam as condições de precariedade e exclusão de direitos sociais, próprios da informalidade, já que não têm qualquer vínculo trabalhista formalizado, pois essas relações são pautadas em laços de familiaridade e redes de amizade.

Apesar do cansaço diário, apontam vivências positivas em suas atividades, destacando que trabalhar na UERJ é uma alegria, pois os jovens são muito legais e elas se sentem protegidas. Além disso, as relações entre os feirantes são baseadas na amizade, na confiança e na reciprocidade, ainda que a competição, também esteja presente na feirinha. Afirmam que as adversidades enfrentadas não são suficientes para desejarem abandonar essa ocupação, pois percebem a precariedade das condições de trabalho no contexto formal.

 Essas narrativas apontam para experiências de trabalhadores que criam modos de vida e de trabalho próprios, encontrando possibilidades de criação e de (re)invenção singular e coletiva, de seu trabalho, ao interagirem com o outro, em meio ao tumulto e ao sabor do clima.

Conhecer essas pessoas e escutar suas histórias, contadas com certo orgulho, oportunizou-me exercitar a prática de pesquisa, tendo o outro como parte desse processo, na tessitura do conhecimento, pois como afirma Freire (2015, p. 54):

Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. [...] Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais (...) tem muito a ver comigo mesmo. [...] O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere[...].

Vale ressaltar que a curiosidade não é só minha. As ‘meninas’ também querem me conhecer um pouco: quem sou eu, o que faço na Uerj, o porquê daquela conversa, entre outros. É claro que me perco em minhas memórias, com destaque dado à chegada de Arthur, meu bisneto que, em fevereiro completa dois anos.

Mas já é tarde. Após ter passado pela experiência do estranhamento e do entranhamento, é preciso desentranhar-me, como nos ensina Machado da Silva, para escrever sobre esse encontro, a partir das narrativas estabelecidas, o que exige responder a algumas questões, fazer e refazer outras, que produzam ‘sentidossignificados’.

Desse modo, agradeço-lhes a acolhida, e me despeço com um forte abraço e um “até logo!”; claro, depois de comprar um conjuntinho de saia e blusa, básico, pois “não sou de ferro”.

Após a aula, já de volta pra casa, reencontro-me com o pensamento de Saint-Exupéry[4], que me lembra que “o essencial é invisível aos olhos”. Feliz, me pego num largo sorriso. Ganhei o dia!!!!

 

Referências:

ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho: os cotidianos das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: Oliveira, Inês. B.; Alves, Nilda (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. Petrópolis: DP et Alii, 2008, p. 15-38.

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida.  Zahar, 2000.

CERTEAU Michel de. A invenção do cotidiano. 2. Morar, cozinhar 11ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

FREIRE, Paulo.  Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 50ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

MACHADO DA SILVA, Juremir. O que pesquisar quer dizer: como pesquisar e escrever textos acadêmicos sem medo da ABNT e da CAPES. Porto Alegre: Sulina, 2010.

Nota de rodapé: 

[1] “Rio 40 graus”, composição de Fausto Fawcett, Fernanda Abreu, Allen Shamblin e Andre Young, na voz de Fernanda Abreu. Disponível em: https://www.letras.mus.br/fernanda-abreu/580/. Acesso em: 11 nov. 2023.

[2] “Sassaricando”, composição de Luiz Antonio, Jota Júnior e Oldemar Magalhães, na voz de Virgínia Lane.  Disponível em: https://www.letras.mus.br/marchinhas-de-carnaval/473888/. Acesso em: 11 nov. 2023.

[3] Uma alusão à canção “Tocando em frente”, de autoria de Almir Sater / Renato Teixeira.

[4] Saint-Exupéry, autor da obra “O Pequeno Príncipe (1943), que li, pela primeira vez, na minha adolescência.

 

Sobre a autora:

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Mirian Maia do Amaral é doutora e mestre em Educação e Cultura Contemporânea com concentração em Tecnologia da Informação e da Comunicação, pela Universidade Estácio de Sá. Pós-doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pesquisadora do GPDOC – Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura da UERJ. Professora dos cursos de pós-graduação da FGV/IDE/FGVManagement, e consultora em Educação, em organizações públicas e privadas. Autora de capítulos de livro e artigos diversos em sua área de especialização e afins. 

Como citar este artigo: 

AMARAL, Mirian Maia. (IN)VISIBILIDADES E EMERGÊNCIAS COTIDIANAS . Notícias, Revista Docência e Cibercultura, dezembro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA. 

 

Editores/as Seção Notícias:

Felipe Carvalho - Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá (PPGE/UNESA); e bolsista de pós-doutorado CNPq pela Universidade Federal de Tocantins (UFT).

Edméa Santos - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Rural (PPGEDUC/UFRRJ)

Marcos Vinícius Dias de Menezes - Graduando em Letras - Português, Inglês e Literatura em modo de licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Bolsista de Iniciação Científica na FAPERJ

Mariano Pimentel - Professor do Programa de Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGI/UNIRIO)