A POSSE PRESIDENCIAL: SUBINDO A RAMPA E PRODUZINDO SENTIDOS

2023-01-03
Por Sara Wagner York
É travesti da/na educação, doutoranda em Educação e apresentadora do “Programa de Travesti” no canal de esquerda brasileiro TV Brasil 247.

 

Imagem 1 - Subindo a rampa.

Fonte: Imagem - Tânia Rego / Agência Brasil

A cena ocorre na subida da rampa do Congresso e é composta por um menino negro, Francisco Filho, 10 anos, estudante, uma mulher negra, Aline Sousa, 33 anos, catadora, o maior e mais reconhecido líder indígena representante do povo Caiapó, Cacique Raoni, 90 anos (aliás não se sabe a idade exata de Raoni, mas seria entre 90 e 92). Um adendo: Raoni significa sexo das onças na língua txucarramãe, língua de seu povo. Ainda lá, o metalúrgico Weslley Rocha, 36 anos, o professor Murilo Jesus, 28 anos, a cozinheira Jucimara Santos, o artesão Flávio Pereira, 50 anos. Ainda duas figuras bem diferentes das cenas públicas e protocolares de uma posse presidencial, um membro da comunidade LGBTI+ e pessoa com deficiência, o influencer anticapacitista Ivan Baron e a cachorrinha adotada que viveu no acampamento de apoio a Lula montado em Curitiba durante sua prisão, a Resistência. Ivan significou muito por ser PcD, mas por trazer a intencionalidade do corpo queer. Historicamente homens cis heteros ou nem tão heteros já desfilaram suas subversões estéticas sexuais. A contracultura marcou os anos 1960 com roupas e assessórios que remetiam homens a intencionalidade de seu feminino e mulheres ao oposto, numa conversa binária e bem cheia de fantasmas. Chamo de fantasma a dimensão de uma estética 100% masculina ou feminina. O corpo travesti é sempre audacioso por que preenchido de formas permanentes ao longo da história, isto é, silicones, próteses, sobrancelhas, pinças, unhas e outros elementos, a fixação de uma identidade nos retirava de cena. Não bastava rebolar, como Ney Matogrosso, era a intervenção estética de modo permanente que nos alocava aos espaços da exclusão. A frase muitas vezes ouvida por muitas de nós era, “tudo bem ser bixa, mas precisa mostrar?”.

Em 2023 precisamos! Não basta tirar a roupa e os adereços e voltar a vida normal, é preciso que alguém que não possa ter seus “elementos” retirados, participe da vida social em todos os espaços. Os cabelos verdes, azuis, loiros, brancos, crespos tem enfatizados isso. Não basta ser um personagem respeitado, é preciso que o respeito sigo para com aquelas cujo imaginário existe só nas festas, seja visto no cotidiano.

Pensei em ir à maior festa democrática vista na América Latina nos últimos anos, que foi a posse da chapa ampla Lula-Alckmin. Desisti quando vi como nos natais e batizados, pessoas se organizando e mais uma vez, nenhuma travesti sendo chamada. Nos meus grupos sei que as nossas parlamentares foram convidadas e lá estiveram, mas falo do convite àquelas do dia-a-dia, as travestis do nosso cotidiano. Compreendo se você não tiver uma relação afetuosa e saudável com alguma de nós. Repito, historicamente fomos colocadas em lugar de riso ou violência e o imaginário não se muda com meia dúzia de frases, mas talvez com uma de nós subindo a rampa. E foi quase isso que vimos com um representante da sigla LGBTQIAPNB+.

Parecia que Lula desejava levar o Brasil de muitas lutas, cores e vidas consigo naquele momento, e ele levou! Várias foram as vezes em que se emocionou e nos levou junto em emoção rasgada e aberta. Era o fim do tempo em que demonstrar sua dor e suas lágrimas poderia ser confundido com “frescura” e “mi-mi-mi”. Em um desses momentos, eu tremia diante da câmera e ao vivo, enquanto travesti, ex-moradora de rua e dependente química cuja identidade e amor próprio, às vezes em meio à fome, foram escolhas difíceis a serem feitas. Lula lia seu discurso e as lágrimas brotavam: "Há muito tempo não víamos tamanho abandono e desalento nas ruas. Mães garimpando lixo em busca de alimento para seus filhos. Famílias inteiras dormindo ao relento, enfrentando o frio, a chuva e o medo. Crianças vendendo bala ou pedindo esmola, quando deveriam estar na escola vivendo plenamente a infância a que têm direito".

É uma lembrança e uma imagem que atravessam muitos de nós, brasileiros e brasileiras, e que se apresentam como grande desafio do novo governo, o Lula ponto 3. Não sou do mundo da moda, mas produzi para esta indústria por muitos anos, em Londres, enquanto cabelereira de celebridades. O que me oferece uma nova perspectiva e olhar sobre os diálogos entre gerações. Lula com seu corpão de 77 anos e Alckmim, naquela gravata vermelha, no alto de seus 70 anos.

Não é a primeira vez que a estética feminina e suas idades ganhavam cena,   não por sentidos masculinistas mas pela quebra de ritos preenchida de intenções. A senhora lindíssima que acompanhava o vice-presidente não era uma jovem “bela, recatada e do lar”, era uma mulher que representa 2023 - linda, sorridente, livre e efusiva (termo que usei várias vezes durante a transmissão da posse pelo canal Brasil 247 no YouTube). Lu Alckmim e Janja da Silva, duas mulheres de 72 e 56 anos que representam nosso tempo. E não vou falar das ex-primeiras-damas, declaradamente submissas aos maridos, que não passaram ainda dos 40 anos de idade mas marcavam muito bem onde era o lugar da mulher no passado. Em uma das fotos que circulou recentemente uma delas aparece ajoelhada ao lado do marido. Foram tempos difíceis, foi semana passada. Há muito a se comemorar, e outro exemplo é ser a primeira vez que um governo incorpora uma secretária e um departamento de direitos animais a um ministério, no caso o do Meio Ambiente,

Há um elemento simbólico importantíssimo ao vermos a Resistência na posse. Ela não está lá como “pet” de Lula e Janja; ela sobe enquanto sujeito, reivindicando direitos, assim como e ao lado das pessoas que subiam ao lado de Lula. Há muito a avançar - sempre há -, mas foi lindo. Assim como não houve os tiros de canhão e fogos com barulho usuais na posse na Esplanada, por solicitação da Janja com a justificativa de que isso perturbaria pessoas autistas e assustaria animais.

Uma posse permeada de simbolismos e infinitos fios de sentido, que as análises de discurso vão se desdobrar em relatar. Pois discurso não é apenas palavra. E nem se precisa ser estudante de semiótica.

O retorno dos ministérios[1] com entradas para as questões LGBTI+ atende um pedido reiterado dos coletivos LGBTIs. Não se tratava apenas de nos sentirmos representados, mas era hora de ocupar com intencionalidade este lugar que historicamente sempre nos foi negado. Pessoas trans - com média de expectativa de vida de 35 anos -, mulheres trans e travestis – 175 assassinadas em 2019 por crimes de ódio -, a palavra “travesti” temida – quando, por exemplo, se apresenta a travesti Symmy Larrat[2] como mulher trans nos muitos jornais.

 Discurso envolve uma série de ações ditas e não ditas, faladas, interditas ou demonstradas. Se fosse apenas langue e parole, como apresentava Saussure em sua teoria, o patriarcado não seria o que é, já estaria extinto, e os minutos de aplauso ao “primeiro-damo” do Rio Grande do Sul[3]não seriam tão intensos. Mas isso é assunto prá outro respiro...


[1] Brasil, 2023.

[2] Um dos modos recorrentes de apagamento das lutas de travestis se dá pelo processo de higienização da palavra. Constantemente somos apresentadas como mulheres trans já que a palavra “travesti” ocupa um lugar pejorativo no meio social e é justamente por este motivo que, de forma política, muitas de nós reivindicamos o seu uso como forma de subverter essa produção.  

[3] Faço uma brincadeira com as palavras nesse momento, para explicitar o quanto ainda nos prendemos às regras do pátrio poder mantenedoras do patriarcado. O masculino de primeira -dama é primeiro-cavalheiro. 

 

Como citar este artigo:

YORK, Sara Wagner. A POSSE PRESIDENCIAL: SUBINDO A RAMPA E PRODUZINDO SENTIDOS.  Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Felipe CarvalhoMarcos Vinícius Dias de MenezesMariano Pimentel e Edméa Santos