Parentalidades de pessoas trans e travestis

2022-01-26
Por Sessiz Zarif Rosa Barbosa e Barros de Oliveira
Mulher transgênera não binária que iniciou mestrado em saúde coletiva no ano de 2019 no Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ). Devido às discriminações transfóbicas que enfrentou ao longo de toda a vida, buscou inserção social e profissional em diversas áreas, notadamente nas artes, dentre elas: dança, teatro, canto, desenho e escrita.

Família e parentesco são temas abordados em incontáveis estudos e em diversas áreas de conhecimento, como as ciências sociais, humanas, e da saúde. Essas temáticas são abordadas tanto em um contexto brasileiro quanto em um contexto global; tanto no tempo passado quanto no tempo presente. Porém, são de pouca monta os estudos que tratam de famílias nas quais há pessoas trans e travestis. Ainda mais raros são aqueles em que tais indivíduos exercem a parentalidade. O funil se estreita até quase se fechar quando é admitida a possibilidade de que seja uma pessoa trans/travesti a realizar esse tipo de pesquisa. Exatamente por isso que é simbolicamente inestimável que este texto seja baseado em minha dissertação de mestrado, pois sou uma mulher transgênera, vinculada ao Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), estudando a parentalidade de pessoas trans e travestis e me pautando em uma perspectiva transfeminista.

No contexto da produção acadêmica brasileira e sobre a realidade do mesmo país, já na primeira década do século XXI, começam a despontar as primeiras pesquisas sobre a parentalidade de pessoas trans e travestis. Fernanda Cardozo (2007) faz um estudo que se baseia nas vivências de cinco travestis de camadas populares. Os arranjos em que elas exercem a parentalidade envolvem cuidados com: sobrinhos e sobrinhas; filho “biológico” (consanguíneo); e filhos adotados “à brasileira” (uma modalidade de adoção na qual uma pessoa registra uma criança que não é sua filha consanguínea, como se ela o fosse). O estudo aborda as relações e terminologias do parentesco, revelando a necessidade de as travestis se adequarem a papéis sociais generificados no exercício da parentalidade. Foram múltiplos os relatos nos quais os familiares das travestis se referiam a elas usando o gênero gramatical masculino, ainda que elas expressassem o desejo de serem referenciadas a partir do gênero gramatical feminino, permitindo entender que há, por parte deles, certa incapacidade de compreender e respeitar a identidade de gênero das travestis, fato que refletia em variados aspectos das vivências delas, como no seu exercício da parentalidade. Desse modo, por exemplo, são instadas por membros de suas famílias a assumir funções ditas “masculinas” (como nos casos em que devem intervir em brigas que ocorrem no âmbito familiar a fim de dissipá-las).

Já no desenvolvimento de sua tese, Elizabeth Zambrano (2008) trata de uma situação aparentemente contrastante à situação relatada no estudo anterior: travestis e mulheres transexuais são reconhecidas e tratadas no gênero feminino por pessoas com as quais se relacionam em âmbito familiar. Assim sendo, por exemplo, de acordo com o estudo, caso uma mulher transexual desenvolva cuidados parentais com o filho de seu “companheiro”, a criança se referirá a ela utilizando o termo “mãe”.

A discrepância de modos de tratamento dispensados às pessoas trans e travestis percebida entre um estudo e outro encontra como denominador comum o cenário social em que essas relações se desenvolvem. O Brasil dos séculos XX e XXI, assim como muitas sociedades que participam do processo de intercâmbio cultural globalizado, possui um cenário social fortemente influenciado por um modo de interpretar o mundo, o qual será aqui nomeado de cistema: um sistema pautado na cisgeneridade.

É possível encontrar respaldo em diversos estudos para analisar os componentes do cistema. Em sua dissertação, Viviane Vergueiro (2015) trata da cisgeneridade como uma categoria analítica que se fundamenta num sistema normativo e colonial, o qual utiliza o conceito de sexo-gênero para impor às pessoas uma maneira pré-discursiva, binária e permanente de atribuir sentidos generificados à existência humana. Em primeira instância, os órgãos genitais externos são utilizados para definir o sexo-gênero de um indivíduo: se há um pênis, trata-se de um homem, se há uma vagina, trata-se de uma mulher. No caso de uma pessoa apresentar genitália ambígua, diversas tecnologias médicas podem ser acionadas para impor uma adequação binária dos genitais externos. Uma vez que a um indivíduo seja designado o seu sexo-gênero, exige-se dele uma adequação permanente ao mesmo, marcada pela divisão binária de: identidade de gênero, expressão de gênero, corporeidade, sexualidade e papéis de gênero.

Os sujeitos que são inseridos no cistema serão continuamente instados a se adequar a ele, e o tomarão como forte influência em seu processo de interpretar o mundo a seu redor, bem como não necessariamente serão capazes de perceber que são influenciados pelo cistema (se é que algum dia tais sujeitos cogitarão que isso ocorra). Qualquer pessoa que, em suas vivências, não se adeque a esse tipo de divisão prevista no cistema estará sujeita a ser alvo de incompreensão e discriminação. Exatamente por isso não é de surpreender que, como nos casos do estudo de Fernanda Cardozo (2007) os parentes de uma travesti se refiram a ela no gênero masculino e exijam dela que ela se adeque a papéis sociais ditos masculinos: eles consideram que aquela travesti, por ter nascido com um órgão genital externo masculino, apesar de se expressar a partir de gênero e vestes femininas, deve exercer funções parentais masculinas. Por outro lado, também são possíveis, a partir desse mesmo cistema, as interpretações apresentadas pelos membros das famílias analisadas na tese de Elizabeth Zambrano (2008) em que se verifica a utilização de nomenclaturas em acordo com o gênero feminino para se referir às mulheres transexuais. Nesse caso, os familiares da mulher transexual tratam-na a partir do gênero gramatical feminino e a ela atribuem toda uma nomenclatura que esteja de acordo não apenas com o gênero gramatical feminino, mas também com expectativas sociais que são depositadas no gênero feminino. Desse modo, sendo uma pessoa do gênero feminino, a mulher transexual não é apenas chamada de “mãe”, como também é instada a se comportar como uma mãe.

Diante do que foi exposto, cabe perguntar: existe uma “transparentalidade”? Ou seja: existe necessariamente algum modelo parental marcado por peculiaridades percebidas exclusivamente nos casos de parentalidade exercidos por pessoas trans e travestis? O termo “transparentalidade” se referiria apenas a casos em que pessoas trans e travestis exercem a parentalidade ou se referiria propriamente a um novo modelo parental? Desse modo, devido à natureza deste texto (em especial a necessidade de que seja breve e objetivo em abordar a temática central), opta-se por falar de parentalidade de pessoas trans e travestis e evidenciar a necessidade de discussão crítica acerca do uso do termo “transparentalidade”.

Dissertar a respeito da parentalidade de pessoas trans e travestis revela, portanto, que não estamos necessariamente diante de um novo modelo parental, o qual seria diferente de modelos outros que já existem, afinal, todos esses modelos se concretizam em um mesmo cenário social: o cistema. Por outro lado, denuncia e reitera as discriminações que pessoas trans e travestis sofrem e com as quais precisam lidar quando exercem a parentalidade. Exatamente por tal razão que se opta por pensar a parentalidade de pessoas trans e travestis a partir de uma perspectiva transfeminista, pois, como discursa Letícia Nascimento (2021) as pessoas trans e travestis “rompem com as normas cisgêneras, reinventando modos de ser para além das feminilidades e masculinidades”. Isso implica uma mudança epistemológica que resulta na constatação de que pessoas trans e travestis deixem de ter que se adequar a papéis sociais impostos pelo cistema e se tornem sujeitos de direitos, protagonistas de suas próprias histórias, com capacidade de falar por si e sobre si. Isso implica pensar que pessoas trans e travestis podem exercer a parentalidade, adequando-se ou não a determinadas expectativas sociais de gênero que sejam depositadas nelas, exatamente como já o fazem as pessoas cisgêneras.

Cabe lembrar que foi principalmente a partir da inserção de pessoas trans e travestis no círculo de produção acadêmica que se acelerou a mudança dessa ótica que as categoriza como patologizadas, desviantes e vítimas vulneráveis; para uma perspectiva em que sejam percebidas como sujeitos que adotam uma postura ativa de enfrentamento de discriminações e de conquista e pertencimento a diversos locais sociais. É a partir desse lugar de fala inspirado pelo transfeminismo que encontramos textos como a dissertação de Sara York (2020) que trata da presença de pessoas trans e travestis nos ambientes acadêmicos de pós-graduação e da importância da existência de políticas públicas que objetivam auxiliar a entrada e permanência dessa população nesses mesmos espaços, e a dissertação de Letícia Lanz (2014) que, ao questionar se a transição de gênero transgride ou reitera as normas de gênero, opta por entrevistar mulheres transgêneras de estratos socioeconômicos mais abastados, criticando estudos que, ainda que inadvertidamente, reiteram o vínculo entre transgeneridade e precariedade material.

Considerando, portanto, que estudar a parentalidade de pessoas trans e travestis não é sinônimo de um novo modelo parental, que questões ou aspectos podem ser abordados sobre essa temática? Um caminho para responder a essa pergunta pode ser encontrado num estudo conduzido na França por Myriam Grenier (2006). Ao analisar oito casos de parentalidades consanguíneas de pessoas trans, tanto daqueles em que a transição de gênero se dá antes do nascimento do filho quanto daqueles em que a transição de gênero se dá depois do nascimento do filho, a autora aborda as negociações que se dão em torno das nomenclaturas utilizadas para dar sentido às incongruências de binarismo de gênero. Em um dos casos analisados, uma mulher trans, que inicia a transição de gênero após o nascimento da filha, reivindica o direito de exercer papéis parentais entendidos como masculinos. Diante desse fato, sua filha a nomeia de “mapa”, uma junção dos termos “maman” (mãe em francês) e “papa” (papai em francês).

De volta ao contexto brasileiro, Mariana Trajano (2019) entrevista seis homens e mulheres trans, e constata que as vivências de transexualidade exercem influências nas vivências de parentalidade, e vice-versa. Ao analisar que, com intuito de sobreviver e interagir socialmente, as pessoas trans fazem negociações consigo, com seus familiares e com o cistema, a autora relata casos de pessoas trans em que a parentalidade precede a transição de gênero e casos em que a parentalidade ocorre após a transição de gênero. Deparou-se com diferentes situações, como as de: um homem trans que engravidou e enfrentou discriminação nos ambientes que frequentava; uma mulher trans que tentou rejeitar a própria transexualidade, e que supôs que ter um filho faria ela se sentir um “pai”, porém, a chegada do filho fez com que ela se sentisse “mãe” e desejosa de exercer a “maternidade” ao, por exemplo, dar banho no bebê e trocar suas roupas; e uma mulher trans que só realizou a transição de gênero depois que “recebeu autorização” de seu filho consanguíneo, com quem divide residência e de quem se sente “pai”.

Seguramente é possível afirmar que sobre a temática da parentalidade de pessoas trans e travestis, nada é óbvio. Exatamente por isso se deve buscar estudar, compreender e respeitar a diversidade de composições familiares e de modos de ser e estar no mundo de pessoas trans e travestis que exercem a parentalidade.

 

Referências 

CARDOZO, Fernanda. Performatividades de gênero, performatividades de parentesco: notas de um estudo com travestis e suas famílias na cidade de Florianópolis/SC. In: GROSSI, Miriam Pillar; UZIEL, Anna Paula; MELLO, Luiz. (orgs.) Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, p. 233-252, 2007.

GRENIER, Myriam. “Papa, t’es belle”: Approche anthropologique des paternités transsexuelles. Anthropologie sociale et ethnologie, 2006.

LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Setor de Ciências Humanas, UFPR, 2014.

NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

TRAJANO, Mariana. Entre a cruz e a espada: Experiências de parentalidade de homens e mulheres trans em contextos cisheteronormativos. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e da Mulher (PGSCM), Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Fundação Oswaldo Cruz, 2019.

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado), Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, UFBA, 2015.

YORK, Sara. “Tia, você é homem?” Trans da/na educação: des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de Pós-Graduação. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Educação, UERJ, 2020.

ZAMBRANO, Elizabeth. “Nós também somos família”: Estudo sobre a parentalidade homossexual, travesti e transexual. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS, 2008.

 

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Como citar este artigo:

OLIVEIRA. Sessiz Zarif Rosa Barbosa e Barros de. Parentalidades de pessoas trans e travestisNotícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner YorkFelipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos