O silêncio da endocissexualidade
Transmasculine, 39 anos, Doutorando do PPGBIOS, Coordenador de Politicas Intersexo do Ibrat(Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) e co-fundador da ABRAI (Asssociação Brasileira de Intersexos)
O silência da endocissexualidade[1]
Desde o fim de 2015, a comunidade Intersexo tem feito pelas redes sociais e hoje pela ABRAI (Associação Brasileira de Intersexo), um movimento de chamar atenção da sociedade e da comunidade médica sobre nossas demandas. Nossa luta é por visibilidade em primeiro lugar, além de apontarmos a necessidade se olhar para a Mutilação genital em bebês e a hormonização forçada.
No último dia 12 de janeiro foi realizada uma audiência pública da Defensoria pública da União em favor da ABRAI com o CFM (Conselho Federal de Medicina) que não apareceu ou levou representantes. Mesmo assim advogados, a presidente e ativistas da ABRAI e outras instituições como o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, Ordem dos Advogados do Brasil, Aliança Nacional LGBT estiveram lá dando o seu recado contra o que apontei em cima.
A ausência do CFM que hoje é aliado do governo neofascista que temos em certo sentido já era esperada. A resolução escrita e o protocolo Intersexo criado por eles em 2003, não permite que a individuo Intersexo seja participante das decisões médicas a respeito do seu presente e do seu futuro. Uma pessoa que mesmo quando bebê ou criança é visto pelo Estatuto da Criança e do adolescente (1990) como sujeito de direito, apesar disso esse direito lhe e negado.
Enquanto isso apesar de estarmos gritando a todos os pulmões parece que não somos ouvidos ou a sociedade se faz de ouvidos moucos. Apesar disso, a sociedade sabe da nossa existência, digo isso, porque se perguntarem nas ruas e avenidas se alguém sabe o que significa “hermafrodita”[2] logo alguém surge com uma resposta.
O que acontece para que essa luta não ganhe fôlego? Espalhada ao redor do mundo, esta comunidade pode contar o número dos poucos países em que a MGI é proibida e mais ainda com punições severas se ocorrer. O leitor pode dizer que o culpado é a comunidade médica, mas tenho feito esse questionamento há muito tempo e durante as várias palestras que participei muitos ativistas têm lembrado que é graças a chancela da sociedade que isso acontece e que inclusive por baixo da mão que segura o bisturi está a sociedade e aqui diria endocisexualidade.
Histórias não tão recentes, mas intrigantes
Durante nossa história após a ditadura militar e creio que até mesmo nesse período, a mídia brasileira sempre exerceu certo poder sobre coração e mentes. Primeiro vieram as revistas, o rádio e por último a televisão e esta apesar de ser a última a chegar hoje vê seu poder de entreter e informar, se perder ante a internet e o streaming.
Os anos 90 a televisão reinava soberana, fazendo a famosa frase “o meio é a mensagem” do teórico da comunicação estadunidense Marshal Mcluhan (1911-1980) às vezes se fundirem e se separarem. As novelas sempre tiveram espaço na sala dos lares que ter um aparelho de TV era possível e traziam questões cotidianas e outras não tão presentes no cenário da vida brasileira, como foi o caso da novela “Renascer”.
O núcleo urbano da novela tinha entre seus personagens, Buba. Durante o desenrolar da novela ela conta que é uma pessoa Intersexo, nascida com as duas genitálias, mas foi criada como menino. Havia um desejo de Buba em ser mãe e cumprir aquilo que a heterossexualidade nos apresenta como destino ser mulher = ser mãe apesar disso sua intersexualidade não permitia que isso acontecesse. Naquela época e a novela trouxe a questão da adoção, algo que ainda não parece tranquilo para a sociedade e a feminilidade.
Entre 1989 e 1993, crimes de emasculação aconteceram no estado do Pará. Esses crimes foram julgados na primeira década do ano 2000. Se descobriu que uma seita com pessoas de diferentes profissões foi responsável por esse crime. A mídia seja em forma de revistas ou televisão procurou com certo sensacionalismo, informar sobre os pelo menos 6 crimes, além de criar e apresentar suas próprias teorias, faço aqui uma síntese do brilhante trabalho de Lacerda (2015) que inclusive recomendo a leitura.
Qual o motivo que une esses dois fatos e a intersexualidade? A comoção nacional que ocorreu de forma diferenciada nesses casos. No primeiro como já é cotidiano pra comunidade LGBTI+, a sociedade revela seu desgosto a tudo aquilo que foge da norma. Lembro muito bem a palavra que caiu em desuso para pessoas Intersexo em meu convívio em outros ambientes ser utilizada de forma pejorativa não importava se a pessoa fosse Intersexo, lésbica, gay, bissexual , trans ou travesti a mesma palavra era usada como xingamento “Hermafrodita”. Inclusive me pergunto se aquela novela trouxe a tona e a intersexualidade da personagem foi entendida ou se ela aumentou e mostrou ainda mais a ojeriza da sociedade ao que possui uma identidade de gênero ou atração sexual e afetiva fora da heteronormatividade.
O segundo fato mostra um outro tipo de comoção que em parte como o primeiro foi inflamado pela mídia, mas, ao mesmo tempo, mostra como o patriarcado e suas raízes firmadas no íntimo de nossa sociedade são motivos de preocupação. Estas crianças foram sedadas, tiveram suas genitálias retiradas e também foram assassinadas.
Os motivos e as situações envolvendo o Estado e as famílias destas crianças são importantes de serem analisados e conhecidos do leitor no texto que indiquei anteriormente. O que me salta aos olhos é que enquanto um crime choca e a história de um personagem no cotidiano daquela época demonstrava o agir da sociedade diante do diferente, ficamos em face de algo muito importante o patriarcado. Ele que muitas vezes passa desapercebido em nossa sociedade, coloca o homem como o centro, além de exaltar sua genitália como uma peça importante de seu aparato humano, invisibilizando a mulher que possui uma outra genitália, mas também qualidades muito mais excelentes. Ainda nesse ponto em muitos momentos em rodas de amigos no passado, quando se falava de uma pessoa trans e que um momento de sua transição, seria passar por uma cirurgia de redesignação sexual ouvia muitas vezes com espanto: por que essa pessoa vai “mutilar” seu próprio corpo?
Pensando nisso e na resolução do CFM 1664/2003 que vê a cirurgia Intersexo a qual chamamos de Mutilação Genital Intersexo (MGI)[3], caminhar pela trilha de um cuidado pelo segredo e silêncio que a medicina trata essa questão inclusive com os próprios responsáveis por essa criança, além de tornarem a intersexualidade conhecida da sociedade e do próprio paciente. Tenho me questionado, porque essa emasculação de bebês[4], muitas vezes em sua tenra idade que são percebidas como “urgência biológica e social” não lhes causa nenhuma preocupação com o futuro da vítima muda que está entregue a seus cuidados.
Vejo aqui a medicina com um papel relevante e representativo na sociedade, apesar também de refletirem a sociedade que vivemos e sua ojeriza daquilo que se difere da norma e lhes causa espanto ao mesmo tempo os desafia. Nesse sentido acredito que quando questiono a medicina, não deixo de questionar a sociedade e seu silêncio e ações mudas de diante de corpos diferentes daquilo que a heteronorma aceita como humano e igual.
O chamado da heteronorma foi pela sociedade brasileira é o clamor da heterossexualidade compulsória que deseja que os corpos e corpas que fogem desse imperativo seja através da orientação sexual. O CIS-tema de relação sexo-gênero (York.2020) se manifesta no nascimento de uma criança Intersexo ao detectar que tal corpo escapa deste CIStema Endosexo.
Este país que fica horrorizado e com razão por crimes como os de Altamira é o mesmo que é condescendente com a mutilação de bebês Intersexo em plena luz do dia e sem nenhuma ação contrária a essa questão. Usando as palavras de Beatriz Bagagli(2014a) falando sobre o silêncio da cisgeneridade, acredito que a endocissexualidade sabe muito bem se manifestar e se silenciar sobre esses fatos, seu silêncio é o aval que permite que a MGI continue a ocorrer para que a endocissexualidade continue incólume. Este é o silêncio que segundo suas leituras da análise de discurso em Orlandi que segundo a autora é fundante, para mim funda o que chamo de endocissexualidade[5] e faz dela soberana em nossa indiferente sociedade.
Este texto chama aqueles que lutam pelos direitos humanos e questões LGBTI+ a se tornarem indivíduos cujo o brado se ouve há quilômetros de distância e para mim esse brado precisa tornar o silêncio que vivemos nessa discussão, uma manifestação ruidosa em favor das vidas Intersexo caladas pela cirurgia, o segredo e o silêncio.
[1] Esse termo é cunhado pelo autor e explicado em nota adiante. Antes é preciso explicar que ele é a junção da palavra Endosexo e Cisgeneridade (para esta segunda palavra ver Vergueiro,2014). A palavra Endosexo foi cunhada por Heike Boedeker (2016) em contraponto a palavra diádico que particularmente acho muito ambígua. O que compreendo de Heike é que o outro não Intersexo, seria um indivíduo que internamente (gonadas, hormônios e genitais) e externamente (Genitália) para a medicina não estaria fora do padrão esperado por um homem e uma mulher endosexo. Ainda nas palavras da autora, a intersexualidade seria algo definitiva e não colocada na ideia de normalidade por uma cirurgia, ou entendida como transitado entre os sexos masculinos e femininos.
[2] Palavra em desuso pelo Movimento Intersexo Brasileiro.
[3] Mutilação por que no caso do bebê Intersexo ele não tem como dar consentimento sobre tal operação. Ela ocorre com um consentimento tutelado que leva em conta o assentimento dos pais tendo em vista o futuro imaginado pela família e a medicina dentro da heterossexualidade
[4] Isso ocorre com bebês que não atingem o tamanho ou a forma do pênis esperado para a reprodução heterossexual. Esta situação também pode ser explicada pelo ditado médico que Paula Sandrine (2008) ouviu em seu período de campo do doutorado; “É mais fácil abrir um buraco do que erguer um poste”. A explicação sobre as várias questões relativas a esta frase podem ser melhor compreendidas pela leitura de sua tese.
[5] Aqui faço uma junção da palavra Endosexualidade e termo Cis de Cisgeneridade (SIMAKAWA,2015) por acreditar que o silêncio da cisgeneridade é o mesmo quando se fala da endosexualidade. Como se a mutilação que acontece em corpos Intersexos que também se entendem como trans, ou seja, são individuos contrários ao que endosexualidade lhes assignou através da medicina ao nascer e depois serem operados para encaixar seus corpos dentro do padrão “correto”.´
Referências:
BAGAGLI, Beatriz P. Cisgeneridade e Silêncio. Acessado em: 20/012022.
BÖDEKER, Heike. Intersexualität, Individualität, Selbstbestimmtheit und Psychoanalyse. Ein Besinnungsaufsatz. In: Geschlechtliche, sexuelle und reproduktive Selbstbestimmung. Psychosozial-Verlag, 2016. p. 117-136.
LACERDA, Paula Mendes. O “caso dos meninos emasculados de Altamira”: polícia, justiça e movimento social. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2008.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação: como extensões do homem. Editora Cultrix, 1974.
Resolução CFM No 1.664/2003. Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Acessado em:10/01/2022
SIMAKAWA, Viviane Vergueiro. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Salvador : Universidade Federal da Bahia, 2015.
YORK, Sara Wagner et al. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des (a) fiando e ocupando os" cistemas" de Pós-Graduação. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro,2020.
___________________
Como citar este artigo:
VIERA, Amiel Modesto. O silência da endocissexualidade. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner York; Felipe Carvalho, Mariano Pimentel e Edméa Santos