Protegem-me, logo não existo
Por Maria Paula Oliveira dos Santos Mendes
Aluna do Instituto Federal da Bahia (IFBA)-Campus Salvador, no Curso Técnico em Química Integrado ao Ensino Médio, 4°Por Giulia Beatriz Barreto Afonso
Aluna do Instituto Federal da Bahia (IFBA)- Campus Salvador, no Curso Técnico em Química Integrado ao Ensino Médio, 4°Por Greisson de Souza dos Santos
Aluno do Instituto Federal da Bahia (IFBA)- Campus Salvador, no Curso Técnico em Química Integrado ao Ensino Médio, 3°Por Lais Viena
Professora de História e História da Bahia. IFBA, Campus Salvador. Licenciada em história pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Mestre em história pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutora em história pela Universidade de Évora
Dos criadores de: mulher deve ser privada da atuação na vida pública do século XX, em detrimento de um bom desempenho doméstico e da preservação de sua honra e a de seu marido, vem aí: Isadora Basile (2002-) demitida pela empresa Microsoft no dia 16 de outubro de 2020, apenas por ser mulher. A transnacional alegou essa decisão para proteger a integridade da agora “indefesa” ex-funcionária, em razão de uma série de ameaças e assédios vinculados a comentários machistas.
Seria um déjà-vu da história da célebre Nair de Teffé (1886-1981), ou melhor, Rian? A primeira caricaturista mulher brasileira nasceu em Petrópolis (RJ) em uma família de elite liberal, que prezava por sua educação. Obteve prestígio em grandes jornais e revistas no início do século XX como Fon-Fon, A Careta, O Binóculo, Gazeta de Notícias e O Malho. Em todos esses veículos de imprensa assinou com o pseudônimo de Rian, palavra que curiosamente parece remeter a rien, (nada, em francês). Essa denominação é um interessante vestígio para se debater as diferentes formas de silenciamento para o feminino. Nas primeiras décadas do século XX, a participação de uma mulher como Nair de Teffé soaria como algo absurdo: afinal, é “escandaloso”, “imoral” e até mesmo “vexatório” sujar seu nome, ao aparecer nos espaços destinados às “brilhantes” mentes masculinas. Contudo, Nair não se intimidou diante das críticas incessantes dessa sociedade patriarcal. Utilizou de sua arte para participar com audácia nas esferas da política brasileira, local até então ocupado apenas por homens. Coincidência ou não, “Rian” não representa uma marca de submissão, sendo possível compreender, como sinal de mudança na estrutura patriarcal – mesmo que essa só aconteça efetivamente no imaginário de muitos, caro (a) leitor (a). Afinal, um século depois, precisaremos ainda nos tornar “nada” para ocuparmos certos espaços?
Isadora, assim como Nair, ao ocupar o cargo de apresentadora no canal do youtube do Xbox, foi inserida audaciosamente em um espaço restrito à “soberania” masculina no século XXI: o meio dos videogames. Como assim uma mulher ousa falar a respeito de um assunto que suas capacidades cognitivas não alcançam? Os telespectadores do canal até tentaram avisar da ausência de dignidade para exercer o cargo e questionaram seu domínio sobre os jogos abordados: rostinho muito bonito para entender de um conteúdo nerd, mas o que é que a teimosia não faz, não é? Insistiu e teve o que pediu: ameaças de morte e estupro. Sim, estamos falando do século XXI.
A equipe da Microsoft, diante dos ataques feitos à Isadora, se reuniu para resolver a questão, mas qual a melhor opção? Campanhas de combate ao machismo em suas redes sociais? Identificar a origem dos ataques para cooperar com o trabalho policial? Nada disso foi feito, será que estavam dispostos a perder o lucro vindo do público fiel? Tudo bem, esse comete um erro aqui e outro acolá, mas, poxa, são tão apaixonados pelos produtos… A solução foi posta então à mesa: demitir Isadora. A política de inclusão da empresa seria: sem mulheres, sem machismo?
A situação vivenciada por Isadora evidencia a misoginia escancarada, por mais que muitos jurem de pé junto que estamos teleologicamente no auge da sociedade evoluída no que se refere às inúmeras conquistas femininas, sobretudo no mercado de trabalho. Não me leve a mal, caro (a) leitor (a), sei que não podemos negar que saímos de uma participação tímida nas escolas públicas mistas- folgando o nó entre os padrões sexistas e as mulheres- seguida de uma presença, hoje, em diferentes níveis de escolaridade, apresentando um maior grau de instrução para as mulheres, correspondendo a cerca de 54,2% no nível superior (mas esse segredo fica entre a gente, combinado? Afinal, ele é perigosíssimo). Apesar das conquistas supracitadas, a inserção das mulheres nesse cenário não significou completamente o êxito, uma vez que é baseada na política de colocá-las como reservas no setor industrial, enquanto os titulares, homens, iam lutar bravamente nas frentes de batalha durante a segunda guerra mundial.
Na lógica da industrialização brasileira no século XX, necessitou-se uma participação feminina nas fábricas- mas, calma, não se empolgue! A utilização da nossa força de trabalho não veio para amenizar as desigualdades de gênero, a história é mais complexa... Com o aumento da demanda exigia-se uma maior mão de obra, fazendo com que as mulheres se inserissem no contexto trabalhista muito mais pela necessidade do mercado do que por uma reparação justa. Dessa forma, as taxas de fecundidade diminuíram no final do século XX, e a urbanização contribuiu para que mais mulheres tornassem-se chefes de família. Ainda assim, no século XXI, mulheres ocupam majoritariamente cargos relacionados a serviços menos prestigiados, e concentram sua participação nos “guetos femininos", isto é, áreas da educação básica, administrativas e em serviços de turismo, serventia, higiene, beleza e auxílio à saúde.
Eu sei, querido leitor (a), que precisaríamos debater com seriedade que a inserção da mulher no espaço público é desde muito cravado por sua cor. Afinal, quando as mulheres brancas, das elites, começam a ter a “novidade” do mercado de trabalho, as mulheres afro-descentes deste país estavam desde muitos séculos compulsoriamente laborando com seus braços, mãos e mentes. Precisaríamos vincular o debate de gênero ao de raça e ao de classe, afinal excluí-los seria admitir que estamos todas no mesmo barco, e não estamos! Por ora, vamos deixar esses traços apenas demarcados para não serem também nesse texto silenciados.
A sociedade nos mostra: é enraizado que certas áreas ainda são consideradas redutos masculinos e não um “lugar de mulher”, sobretudo se envolverem questões da vida pública e da produção de conhecimento. Será que a mente feminina não é capaz de acompanhar o progresso? Sim, ilustre leitor (a), Isadoras, Nairs e tantas outras atraem olhares de uma sociedade que prefere silenciá-las do que combater para a construção de uma estrutura mais igualitária. Mulheres em destaque causam desconforto para aqueles que enxergam o mundo sob uma ótica patriarcal; afinal, estão sendo forçados a dividir esses espaços de poder. Somos uma ameaça, que o patriarcado insiste em querer domar. Oprimem nossos corpos, nossas vozes, nossas roupas, mas nunca nossa luta.
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Como citar este artigo:
MENDES, Maria Paula Oliveira dos Santos; AFONSO, Giulia Beatriz Barreto; SANTOS, Greisson de Souza dos; e VIENA, Lais . Protegem-me, logo não existo. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, dezembro de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias: Felipe Carvalho, Mariano Pimentel e Edméa Oliveira dos Santos