“Pole dance”: entre preconceitos, invenções ciberfeministas e educação online
FotoPor Edméa Santos
Professora titular-livre da UFRRJ.
Entre outras práticas, o ciberfeminismo se caracteriza pelo protagonismo de mulheres na cibercultura. Neste texto especificamente, tratamos do tema da pole dance como dispositivo de práticas feministas que lançam mão da arte e das expressões corporais combinadas com narrativas digitais para o exercício de suas práticas ativistas. Em tempos de pandemia da covid-19, os ativismos feministas são muitas vezes criticados e ignorados pela grande parte da sociedade, inclusive por órgãos e instituições do Estado que deveriam apoiar o cidadão e a cidadã no exercício dos seus direitos, inclusive no âmbito dos direitos civis.
Partimos da abordagem multirreferencial de pesquisa, que busca dialogar com uma pluralidade heterogênea de saberes e referenciais. Para tanto, dialogamos com narrativas, imagens e sons de mulheres no ciberespaço, mais especificamente nas plataformas Instagram e Facebook. Este campo empírico conta também com o diálogo de narrativas fílmicas, que, no conjunto, nos ajudam a dialogar com estudos da cibercultura e do campo de estudos de gênero e sexualidades.
Em plena quarenta da pandemia da covid-19, nos deparamos com a triste narrativa de Thaís Beto – nome social utilizado por Thaís Santos –, doutora em Educação e feminista ativista no campo dos direitos de pessoas intersexo, em sua página no Facebook. Como dissemos anteriormente, Thaís Beto é doutora em Educação. Este texto, com redação trucada e confusa, por si só já revela um pedido de socorro. Essa mulher encontra-se em perigo e em sofrimento. É um pedido de socorro. Nos solidarizamos, admiramos sua coragem. Lamentamos os limites da justiça brasileira. Com esta narrativa, podemos disparar aqui várias discussões sobre as condições de vida das mulheres, vítimas do patriarcado. O ativismo de Thais Santos é marcado pela sua história pessoal e luta cotidiana. Vejamos a narrativa a seguir:
Thais Beto viveu uma relação tóxica em seu primeiro relacionamento. Com muita luta e estudo, conseguiu romper com essa relação, produzindo narrativas autobiográficas feministas. Em seu livro, Santos (2020) realiza um diálogo formativo bricolando sua autobiografia com estudos de gênero, sexualidade e educação. Foi mãe de uma criança intersexo e cardiopata. Com essa experiência, ela educa e ajuda muitas famílias e educadores a lidarem com a educação e os direitos humanos de pessoas intersexo. É uma referência para todas nós. Mesmo assim, continua na luta pela sua vida, segurança e liberdade de expressão. O que nos faz abrir este texto sobre pole dance com a narrativa de Thaís Beto? Destacamos o trecho: “[...] O pai biológico de meus dois filhos mais velhos nunca parou de me perseguir. Eu já desisti da justiça pq se fossem seguir a lei Maria da Penha ele teria que estar preso por anos...mas.. o q adianta uma bela lei se os juízes acham pole dance mais perigoso para a sociedade q um feminicídio?”. (grifos nossos)
Segundo a própria Thais Santos, em conversa online para a pesquisa em questão, ela foi vítima de tentativa de feminicídio em 2015, ao buscar seus filhos de uma visita o pai biológico tentou mata-la derrubando no chão, arrastando-a e tentando a enforcar. O homicídio só não ocorreu porque um homem passou na rua e começou a gritar e o agressor parou, Thais entrou no carro com as crianças e fugiu. Passou a noite no hospital sendo medicada e encaminhada ao IML e no mesmo dia foi concedida Medida Protetiva. Um ano depois, na audiência criminal, seu agressor foi absolvido ao meio de uma audiência constituída apenas por homens, onde o promotor que deveria defender Thais, então vítima, perguntava e questionava várias vezes junto com o advogado de defesa do agressor que Thais praticava uma “modalidade Excêntrica – pole dance” (palavras do promotor). Tal atividade na justificativa da defesa é o que teria deixado marcas no corpo de Thais e não as agressões, mesmo tendo arranhões e marcas de enforcamento, além de medicamentos relatados pelos médicos. O advogado de defesa chega ao ponto de mostrar fotos de Thais praticando pole dance para todos os homens presentes na audiência. Após esse devaneio da coletividade machista ali presente, o juiz resolve por dispensar o testemunho das crianças que viram a mãe ser agredida e enforcada e absolve o agressor por falta de provas, desconsiderando o corpo delito, e as testemunhas. O pole dance era mais “excetrico” que uma mãe quase ser morta na frente de seus filhos.
No contexto de nossos estudos e pesquisas (trans)feministas, destacamos o ciberfeminismo como um fenômeno da cibercultura. Práticas e eventos de multiletramentos críticos de mulheres e aliados na internet vêm sendo materializadas cotidianamente. Segundo a Wikipédia, a enciclopédia livre:
Pole dance (em português: dança do cano ou, ainda, dança do poste – literalmente –, também conhecida como barra americana) é uma forma de dança e ginástica. Originária da Inglaterra dos anos 1980,[1][2] foi introduzida em Portugal em 2005 pela escola Círculo de Dança de Lisboa.[3] Trata-se de uma dança [4], utilizando, como elemento, um poste ou barra vertical sobre o qual o(a) bailarino(a) realiza sua atuação. Este termo é comumente associado ao âmbito dos strip clubs, porém, recentemente, também vem se utilizando o termo pole dance artístico nos cabarés e nos circos em espetáculos acrobáticos que não apelam ao erotismo como ferramenta visual. Existem diferentes vertentes de pole dance. Antigamente associado às casas noturnas e ao strip-tease, o pole dance assume, hoje, outras vertentes, como, por exemplo, o pole dance fitness, para a finalidade de trabalhar determinados grupos musculares, ficar com o corpo em forma e praticar algum desporto. Há o pole dance artístico, que visa mais ao lado acrobático e que é incorporado principalmente em espetáculos de performance, no circo etc. E também o pole dance sensual ou erótico, que é o que se vê nos strip clubs e que visa mais ao ladpornoresistência. Nos strip clubs, o pole dance se realiza de forma não tão ginástica, mas também acompanhado de um strip-tease. (Wikipédia).
Sabemos que a Wikipédia é aberta e pode ser editada a qualquer momento. Sendo assim, sugerimos a incorporação de mais alguns elementos. A pole dance para muitas mulheres, em especial as feministas, é expressão de poder. Dispositivo de autoconhecimento, liberdade de expressão, controle de seus corpos, desejos, capital sexual. Mais que criticar as narrativas e práticas machistas que concebem os corpos das mulheres como objetos de consumo, as (trans)feministas, lançam mão de seus corpos para demarcar seus territórios de poder e autocontrole. O corpo e suas expressões são capitais. “Meu corpo, minhas regras!” Expressão que para nós, feministas, é palavra de ordem, narrativa de luta.
Fonte: @thais.beto, perfil do Instagram
Thaís Beto pratica em sua casa a pole dance com toda a família. Com seu atual marido e seus três filhos, ela se exercita, testa seus limites, integra sua família, pratica atividade física e higiene mental. Além de educar e ensinar outras mulheres a conquistarem sua autonomia, vida e educação sexual. Thaís grava vídeos, ministra aulas, faz oficinas online com e sobre a pole dance. Essas práticas, segundo ela, não são compreendidas pela justiça. Mas de onde vem tanto preconceito, de quem deveria, pelo menos, valorizar práticas culturais em contexto? O que faz a prática da pole dance ser tão criticada e refutada, inclusive por autoridades que deveriam praticar o princípio do respeito e tolerância às diferentes linguagens para a liberdade de expressão, garantido pela Constituição brasileira?
Muitas vezes a pole dance nos é apresentada como prática artística de menor valor, pelo fato de muitas vezes se relacionar com ambientes de prostituição e degradação da imagem da mulher, segundo valores instituídos pela sociedade mais conservadora. Em algumas narrativas cinematográficas, constatamos essa situação. Podemos aqui citar dois filmes, criados em diferentes épocas, hoje em circulação por plataformas de streaming. Plataformas essas que estão garantindo diferentes experiências estéticas na quarentena, uma vez que não podemos, neste momento, frequentar salas de cinemas. Vejamos:
Fonte: Flashdance.
A pole dance, aparece no filme Flashdance (1983) sendo praticado em boates periféricas. As dançarinas aparecem nessas boates com seus corpos expostos, dançando e performando. O clássico filme narra a história de uma dançarina que sonhava em ser bailarina profissional e estudar dança profissionalmente. Sonho que se concretiza com muita luta e trabalho. A personagem é uma trabalhadora da construção civil e da dança em bares masculinos.
Fonte: As golpistas. Confira na plataforma Prime Video.
As golpistas (2019) é baseado em uma história real, de um grupo de mulheres que se organizavam para roubar homens que frequentavam boates na região financeira do Wall Street, em Nova York. Elas drogavam os homens e furtavam seus cartões de credito. Apesar de serem seguras com seus corpos e suas finanças, eram criminosas. A pole dance aparece nesse contexto como um espaço de performance, onde corpos são expostos para consumo em Wall Street. A cena da performance solo da protagonista é lindíssima. Artística.
Por mais que queiramos valorizar o papel da mulher no mundo do trabalho, para além da exposição de seus corpos, não podemos negar que essa exposição é legítima e que não deve ser julgada e muito menos ignorada. A liberdade de expressão e o livre-arbítrio são direitos garantidos por lei. Por outro lado, temos de forjar políticas de formação e trabalho que permitam mais acesso a postos de trabalho que valorizem competências diversas e que não dependam exclusivamente da exposição e ou venda dos corpos femininos.
Por outro lado, não podemos negar que historicamente nossos corpos foram controlados, vigiados e utilizados contra nós mesmas, também para justiçar formas de violência física e simbólica praticadas pelo patriarcado, ao logo da história da humanidade. Sendo assim, o movimento feminista de quarta onda, ou explosão feminista, vem lançando mão do corpo feminino como dispositivo de luta e poder. Só para citar um exemplo, vejamos o movimento da Marcha das Vadias, em que as mulheres ocupam as ruas expondo seus corpos nus ou seminus como um direito, para lembrar que corpos de mulheres não podem ser violados e muito menos acessados sem o consentimento delas.
Neste sentido, vemos que a pole dance tem sido também uma prática que agrega valor a essa luta das mulheres pelo controle dos próprios corpos. Expressão esportista e artística, praticada em diferentes redes educativas, a exemplo de academias femininas, lares e também transmitidas pelo ciberespaço através de redes sociais, como, por exemplo, o Instagram. Ao contrário das narrativas fílmicas expostas acima, as mulheres que atualmente têm praticado e trazido ao pole dance para a cena (trans)feminista são profissionais das mais diversas áreas do conhecimento: escritoras, educadoras, ativistas.
Entre as mais diversas manifestações, destacamos algumas feministas que se expressam em suas páginas do Instagram expondo suas práticas e atitudes com a pole dance. Vejamos abaixo alguns perfis de feministas que compartilham suas práticas de pole dance em seus perfis no Instagram, através de microvídeos e ou fotografias. Essas narrativas imagéticas são disparadoras de conversas e debates densos em torno dos direitos de expressão das mulheres na contemporaneidade. Vale a pena cartografar e aprender com essas e outras ciberfeministas.
Narrativas cinematográficas mais recentes apresentam a práticas de danças sensuais, não mais como uma alternativa profissional para mulheres em situação de vulnerabilidade, mas também como prática artística e de autoconhecimento de mulheres de diferentes classes sociais, áreas de conhecimento e em processos de formação e subjetivações plurais. Vejamos a seguir um exemplo mais recente:
Fonte: Easy. Ver segunda temporada, episódio 7. Plataforma Netflix.
No episódio 7 da segunda temporada da série Easy, apresentada na plataforma Netflix, temos a expressão da protagonista protagonizada pela prática da dança burlesca. Com essa narrativa, podemos discutir diversas práticas feministas de forma interseccional, pondo em xeque o limite do feminismo branco. Mesmo que esse feminismo seja LGBTQI+. Questões de classe e étnico-raciais muitas vezes são ignoradas. Para pensarmos juntas...
Bricolar expressões da cibercultura, narrativas fílmicas, literaturas, textos científicos, amplia sobremaneira nossos repertórios. Pesquisar na cibercultura é atentar para a emergência de seus fenômenos. Mais que descrevê-los densamente, devemos adentrá-los. Dialogar com as narrativas, imagens e sons dos praticantes culturais, escutar e dialogar com seus dilemas e etnométodos, lançar mão dos potenciais das linguagens hipermídias e forjar a comunicação dialógica e interativa em multiplataformas. Que a narrativa de Thaís Beto seja escutada e que sensibilize a justiça brasileira, mas que também possa inspirar, ainda mais, a nossa luta por mais educação, ciência e tecnologia, e muita arte. Vamos nos movimentar! Nossos corpos são armas de guerra! Por mais liberdade de expressão e menos controle dos corpos e mentes alheias...
Atenção para esta notícia!
- Para quem desejar praticar Pole Dance em dezembro/2020, teremos uma semana de workshop com o campeão do Arnold de Pole Dance, Ivan Yoshi, na escola livre de Thais Beto o “Inst. Jacob Cristopher” Educação, Diversidade e Inclusão Social, em São Paulo. Teremos também um mini curso de : Pole Casal; combos básicos, intermediários e avançados; flexibilidade; Pole Dance Coreográfico e Sensual; Handstand iniciante e intermediário; Chair Dance. (interessados – 11 93751-8611). Ivan, bailarino e campeão sul americano de Pole Dance, foi aluno de Thais na faculdade, era bailarino e dançarino de break, ao ver um vídeo de Thais e Beto dançando pole, se inspira e resolve praticar também.
Práticas ciberfeministas muitas vezes são atreladas a práticas de educação online em tempos pandêmicos. Aproveitamos este canal para partilhar a memória de nossas #lives realizadas nos meses de julho e agosto. Elas são disparadoras de mais educações, uma vez que podem ser reutilizados, como artefatos curriculares, em diferentes ambiências formativas no ciberespaço. A educação Online é um fenômeno da cibercultura. É muito mais que educação a distância! Outras presencialidades, para menos distâncias e mais conhecimento.
#livesdejulhoeagosto
LIVES DE JULHO
8- Encontro com o coletivo da FACED/UFU - “Currículos e didáticas online: experiências e proposições em defesa da universidade pública” – Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Encontro fechado
LIVES DE AGOSTO
8- Aula inaugural - Educação online interdisciplinar - Colégio Pedro II (CPII) – 20/08/2020 - Encontro fechado
Referências
SANTOS, Thaís Emília de Campos. Jacob(y), “entre os sexos” e cardiopatias: o que fez anjo? SP: Scortecci, 2020.
Links interessantes
Página do Instituto JAcob Critopher
SANTOS, Edméa. Site/acervo
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Como citar este artigo:
SANTOS, Edméa. “Pole dance”: entre preconceitos, invenções ciberfeministas e educação online. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, setembro de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias: Felipe Carvalho e Mariano Pimentel