O AMOR na "QUARENTENA": das cartas ao ciberespaço
Por Vagna Brito de Lima
Doutora em Educação (2017) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), realizou Estágio Científico Avançado de Doutoramento pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE-CAPES) de 1 de setembro de 2015 a 31 de agosto de 2016 na Universidade do Minho em Portugal. Mestra em Educação (2012) pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Possui Especialização em Gestão Escolar (2006) pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e em Metodologia do Ensino Fundamental e Médio (2003) pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Graduada em Licenciatura Plena em História (1995). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Curriculares- GEPPC/UFPB/CNPq do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba. Professora da educação básica na rede pública estadual do Ceará com experiência no ensino superior. Atualmente, coordenadora da formação docente e educação a distância da Seduc-CE..
“Apartados pela pandemia, recuperamos um fio de esperança ao nos debruçar em nossos parapeitos. Mas essa visão emoldurada também limita: lá fora, o mundo se desfaz. Reconstruí-lo exigirá, talvez, fechar as cortinas — e assim vislumbrar a cidade que desejamos ao abrir as portas. (Rôney Rodrigues, 2020)”No presente texto de gênero autobiográfico, sou movida a refletir sobre como as relações afetivas se constituíram em meio a um caleidoscópio de sentimentos e incertezas provocados pela Covid 19, sobretudo para os amantes “apartados pela pandemia”. Portanto, parto das minhas vivências, imagens, sons e leituras na quarentena iniciada há exatos seis meses. Nessa direção, recorro ao uso dos sistemas dos hipertextos para compartilhar as multirreferências emergentes no atual cotidiano. Posto que "a interatividade e o compartilhamento de informações sob a forma de textos, sons e imagens, proporcionados pelos hipertextos, promovem o desenvolvimento de novas relações com as fontes" (DIAS, 1999, p. 275).
O ano de 2020, marcará a história da humanidade pela necessidade do isolamento social, o confinamento[1] residencial, como ato de solidariedade e cuidado com a vida das pessoas, imposto pela pandemia da Covid-19. Nesse sentido, "a tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros e nem sequer nos tocarmos" (SANTOS, p. 47, 2020). Contudo, cabem algumas reflexões sobre a concepção de isolamento social, uma vez que "a democracia é o desfazer do isolamento social" (Bernard-Henri Lévy, 2020), e, no atual momento, presenciam-se fortes ataques aos mecanismos de efetivação da democracia.
Nesse contexto pandêmico, as tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) foram intensamente usadas como estratégias para a manutenção dos vínculos, das relações profissionais, das relações afetivas e da manutenção dos dispositivos democráticos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, a internet era utilizada em 79,1% dos domicílios brasileiros, o que revela a exclusão digital de uma parcela significativa da sociedade brasileira, sobretudo no atual cenário, em que as atividades educacionais no Brasil e no mundo estão a decorrer por meio do ensino remoto, implementado emergencialmente a partir de meados de março de 2020.
Embora as pesquisas revelem a exclusão digital no nosso país, presenciou-se aqui, e no mundo, as pessoas ocuparem as janelas, sacadas e varandas das suas casas para saudarem os profissionais da saúde, realizarem concertos para os vizinhos, manifestarem-se politicamente (no Brasil, denominada de panelaço), rezarem conforme a orientação do Papa Francisco para a humanidade se unir em oração.
E, enquanto isso, no ciberespaço, inúmeras lives com cantores famosos e artistas menos conhecidos, webinar com especialistas e estudantes de diferentes campos de atuação. A sociedade da informação, isolada fisicamente, viabilizou os encontros "na rede" e asseverou a produção de conteúdos e interações interpessoais constituindo imensuráveis comunidades sociais no ciberespaço. Posto que, "o ciberespaço é a internet habitada por seres humanos, que produzem, se autorizam e constituem comunidades e redes sociais por e com as mediações das tecnologias digitais em rede" (SANTOS, 2019, p. 30).
Enquanto isso, as notícias das "frentes" de enfrentamento à Covid-19 ainda não são alvissareiras! E, nos momentos mais críticos, muitas despedidas foram realizadas por meio da tela de dispositivos móveis usando "a rede". A humanidade enfrenta uma crise sanitária sem precedentes, com desdobramentos em todas as dimensões da vida dos seres humanos.
Mas, e o amor?! Ah! O amor!
Em nome do amor, as crianças ficaram sem os abraços dos avós, os filhos procuraram manter-se isolados dos seus pais idosos, os almoços de domingo em família foram suspensos, casamentos adiados, encontros românticos cancelados… enfim, fomos "apartados pela pandemia"! Porém, "amor tem feito coisas que até mesmo Deus duvida!" (IVAN LINS).
Por amor ao ofício de educar, os professores conceberam outras formas de ensinar e aprender; por amor à missão de salvar vidas, os profissionais da saúde arriscaram as suas; por amor às ciências, os pesquisadores passaram a dormir nos laboratórios; por amor, inventou-se indumentárias de plástico para permitir os abraços… por amor, se intensificou o sexo virtual, o sexting!
"Enquanto educadora e professora da rede pública estadual de ensino no Ceará, dedico-me neste momento a falar das experiências vivenciadas na trajetória que moveu a minha caminhada [...] A minha vida foi marcada por acontecimentos ligados à ação educativa" (LIMA, 2012, p. 16). Referencio-me com um excerto da minha dissertação do mestrado, para falar do amor ao ofício de educar. "Acredito que isso se deve aos ensinamentos que os meus pais, trabalhadores rurais, preconizaram desde minha infância: 'Só através da educação que nós pobres poderemos vencer na vida'. 'Vencer'? Não sei!" (LIMA, 2012, p. 16). Na minha trajetória, "foram conquistados valores que vão além de riquezas econômicas, pois edificam a necessidade da permanente busca do conhecimento como forma de evolução." (LIMA, 2012, p. 16).
Para além dos saberes acadêmicos, ficou a amizade do grupo de amigas e amigo do mestrado. Como as relações afetivas ocuparam o ciberespaço na quarentena, se capturou imagens como essa - webconfência com o grupo de amigas do mestrado (nesse dia, o menino do grupo faltou):
Imagem 1 - Diálogos, afetos e reflexões científicas
Fonte: Arquivo pessoal - quarenta, 2020.
Momento de expressão de amor, alegria, risos e um "contentamento descontente", pela certeza da ausência do abraço apertado. As itinerâncias da vida, como mencionado anteriormente, são marcadas pelos acontecimentos ligados à educação. O doutorado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com Estágio Científico Avançado de Doutoramento pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE-Capes), na Universidade do Minho, em Portugal, acrescentou novos saberes e novos amores a minha vida. E, em tempos da Covid-19, as imagens são capturadas das telas e compartilhadas na rede, assim, revelam o entrelaçar da narrativa pessoal, profissional e política.
Imagem 2 - Live entre os amigos luso-brasileiros
Fonte: Gigi Lima (2020)
Na mesma trilha do amor ao ofício de educar, o trabalho invadiu o lar, o home office, teletrabalho, ensino remoto e até certificação on line.
Imagem 3 - Entrega de certificados on line
Fonte: CREDE 8/SEDUC-CE, 2020.
A atuação política também é um ato de amor que se confunde com a vida a partir das causas escolhidas para se defender. Sobretudo, quando a defesa é a garantia da própria vida.
Imagem 4 - Retorno às aulas presenciais em tempos da Covid 19
Fonte: Idilvan, 2020.
As imagens do teletrabalho são muitas…
Imagem 5 - Teletrabalho
Fonte: Seduc-CE, 2020.
Tudo isso sem romantizar sobre as atuais condições para o teletrabalho, sobretudo sem esquecer a preocupação com a intensificação do trabalho docente, a precarização das condições de trabalho, a exclusão digital, a falta de segurança digital, a uberização, a invasão da privacidade não só pelas grandes empresas tecnológicas (GAFA[2]), tal como do Estado, e, atualmente dos nossos pares. Todas essas reflexões são necessárias! Inclusive, reconhecer os retrocessos provocados pela pandemia do novo coronavírus. No entanto, neste momento, a pauta remete à dimensão socioemocional no contexto da quarentena.
Amar é admirar, por essa razão se comemorou aniversário de um companheiro de trabalho em clima de festa junina com o "São João na Caixa":
Imagem 6 – Aniversário
Fonte: Arquivo pessoal - quarenta, 2020.
Sobre as cartas de amor, a inspiração vem de longe (1827), a carta conhecida por "meine Unsterbliche Geliebte" (Minha Amada Imortal)[3], referência usada por Beethoven para designar a destinatária secreta.
O teu amor me faz ao mesmo tempo o mais feliz e infeliz dos homens. Na minha idade eu preciso de estabilidade, de uma vida tranquila. Pode ser assim na nossa relação? Meu anjo, acabo de ser informado que o carteiro sai todos os dias. Por isso devo terminar logo para que você possa receber a carta logo. Fique tranquila, somente através da consideração tranquila de nossa existência podemos atingir o objetivo de vivermos juntos. Fique tranquila, me ame, hoje, ontem, desejos sofridos por você, você, você, minha vida, meu tudo, adeus. Oh, continue a me amar, jamais duvide do coração fiel de seu amado. [...]Amar é querer o bem do outro, seja junto fisicamente ou longe. Ele, Meu Amor, está lá e eu cá, estamos em lados extremos do Oceano Atlântico.
Imagem 7 - Ponto de encontro
Fonte: Arquivo pessoal, 2019.
"Apartados pela pandemia", o Sal que nos une no meio do Oceano Atlântico deixou de ser o ponto de encontro. As interconexões e o gosto pela troca de cartas e cartões postais também foram prejudicados pela pandemia, desse modo, a opção foi a cocriação em espaços virtuais colaborativos (Google drive), além das chamadas de vídeos. A partir desse exercício nasceu a ideia deste texto.
Imagem 8 - Cartas de amor
Fonte: Arquivo pessoal, 2018, 2019.
Sem cartas, sem encontros, o amor segue a quarentena "apartado pela pandemia", no entanto, virtualmente me apoiando, me convencendo que tudo vai ficar bem. "É só uma questão de tempo!" "Tem vacinas promissoras em andamento!" Assim, seguimos mais próximos, mesmo distantes. Mais juntos, mesmo separados.
Considerando a minha situação, recentemente fui provocada por um ensaio do Slavoj Zizek (2020) no qual ele pergunta: "será, portanto, que a epidemia em curso irá limitar a sexualidade e promulgar o amor enquanto uma admiração distante do ser amado que permanece longe do alcance do toque?". Muitos são os amantes "apartados pela pandemia", e, a progressiva digitalização das interações sociais, como mencionado, foi extremamente intensificada durante a quarentena. Nessa direção, "as estatísticas mostram que os adolescentes de hoje gastam muito menos tempo explorando a sua sexualidade do que navegando pela internet" (ZIZEK, 2020). Portanto, pode-se concluir que "a pandemia definitivamente vai alavancar os jogos sexuais sem contato corporal. Com sorte, no entanto, emergirá disso tudo também uma nova apreciação da intimidade sexual, [...] ao passo que o contato corporal constitui um caminho para a espiritualidade" (ZIZEK, 2020).
Embora instigada por tais reflexões, permaneço acreditando que a distância, o Oceano Atlântico, a pandemia, o tempo, tudo isso e muito mais, são menores que a subjetividade que nos une. O amor!
À guisa de conclusão, parto do entendimento da Edméa Santos (2019, p. 30) que, "o ciberespaço é um conjunto plural de espaços mediados por interfaces digitais, que simulam contextos do mundo físico das cidades, suas instituições, práticas individuais e coletivas já vivenciadas pelos seres humanos ao longo de sua história". Nesse sentido, os multirreferenciais apresentados revelam espaços de interações afetivas concebidas em comunidades institucionais e ou privadas, mediadas por interfaces digitais no ciberespaço, no atual contexto de quarentena.
O mesmo espaço onde se estabelecem novas formas de intimidade sexual, "No sé cuándo estará libre la pista/Por ahora toca abrir las ventanas/Y llegar hasta donde nos lleve la vista/¿Cuándo saldremos de nuevo? eso nadie lo sabe [...]/Y los pies se me llenan de arena desde la cuarentena/Ni la pandemía más fuerte que anda matando personas/Me separa de ti" (RESIDENTE, 2020). Enquanto o ser amado permanece longe do toque e do contato corporal, "por ahora toca abrir las ventanas"!
Referências
Brasil. IBGE. Uso de internet, televisão e celular no Brasil. Acesso em 10 de set de 2020.
DIAS. Cláudia Augusto. Hipertexto: evolução histórica e efeitos sociais. Acesso em 10 de set de 2020.
LÉVY, Bernard-Henri. A democracia é o desfazer do isolamento social. Acesso em 10 de set de 2020.
SANTOS, Boaventura Sousa. Vírus: tudo o que é sólido desmancha no ar (p. 45-49). In: Anjuli Tostes, Hugo Melo Filho (Org.) – Quarentena: reflexões sobre a pandemia. Bauru: Projeto Editorial Praxis, 2020. ISBN: 978-65-86030-14-3. Acesso em 10 de set de 2020.
SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na cibercultura. – Teresina: EDUFPI, 2019. E-book. ISBN: 978-85-509-0541-9. Acesso em 10 de set de 2020.
ZIZEK, Slavoj. Sexo em tempos de coronavírus. Acesso em 19 de set de 2020.
[1] "Para os italianos, 'confinamento' é uma palavra fascista. Os antifascistas eram 'confinados' em ilhas ou outros sítios. E no confinamento há a ideia de auto-suficiente, com poucas janelas para o exterior. O exterior pode estoirar que isso não tem importância". (Bernard-Henri Lévy, 2020)
[2] Acrônico para Google, Amazon, Facebook e Apple.
[3] Trecho do filme "Minha Amada Imortal". Acesso em 19 de ago de 2020.
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Como citar este artigo:
LIMA, Vagna Brito. O AMOR na "QUARENTENA": das cartas ao ciberespaço. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, setembro de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias: Felipe Carvalho, Mariano Pimentel e Edméa Oliveira dos Santos