Privilégio branco nas ciências em tempos de pandemia e em todos os tempos por eles narrados. Senta que eu te explico!

2020-07-17

Autoria: Bárbara Carine Soares Pinheiro

Antes de falar acerca da especificidade das ciências, você já ouviu falar de privilégio branco? Privilégio branco é essa coisa de pessoas brancas se verem representadas positivamente em todos os espaços da nossa sociedade, sim, elas se vêem na TV desde cedo, são as apresentadoras dos programas, são as atrizes e atores em ampla maioria nos filmes, novelas e minisséries, são as âncoras em maior número nos telejornais. São as pessoas brancas que dominam os postos na política (afinal de contas elas não só têm os meios de financiamento de campanha, como a estética delas inspira confiança – vide Fernando Collor de Melo), elas são detentoras dos meios de produção de mercadorias, são donas das empresas, das indústrias, são as pessoas que dominam os cursos universitários socialmente mais valorizados dentro dessa cultura bacharelesca, como: medicina, direito e engenharia. Elas se vêem nos outdoors, nas campanhas publicitárias virtuais, são as Miss Universo, a maioria esmagadora daquelas que receberam os prêmios Nobel, 70,6% das pessoas mais ricas do Brasil são brancas, os maiores salários do nosso país vão para as mãos de pessoas brancas. Elas têm uma maior média de vida, morrem menos de covid (mas afirmam que o vírus é democrático), acessam os melhores serviços de saúde, educação, moradia e mobilidade urbana, se vêem positivamente historicizadas nos livros didáticos, são os príncipes e as princesas das literaturas infantis, quase não são abordadas pela polícia (“você é macho na periferia, aqui é Alphaville”), quando criminosas têm suas identidades preservadas pela mídia, quando traficantes são chamadas de jovens que comercializavam drogas, quando ladras ou são amigas do Queiroz ou são cleptomaníacas. É privilégio branco poder sugerir iniciar os testes de vacinas de COVID-19 em pessoas africanas, bem como ser a maioria avassaladora dos acadêmicos e cientistas destacados na história das ciências, ser os nomes mais lidos nas universidades, etc. Eu poderia passar tanto tempo aqui exemplificando privilégios brancos que rapidamente este breve texto se tornaria um livro.

Tudo que trouxe anteriormente fala muito pouco acerca da capacidade genética branca em ser protagonista da história, fala menos ainda sobre o seu imenso esforço meritocrático. Privilégio, segundo o dicionário Aurélio, é uma vantagem, prerrogativa válida apenas para um indivíduo ou um grupo em detrimento da maioria, apanágio[1], regalia. Em popular, o trecho “em detrimento da maioria” significa que para alguns poucos terem mais acessos a bens a maioria tem que ter menos, trata-se de uma questão de matemática básica: se existe um grupo social oprimido é porque coexiste um grupo social opressor, que goza dos frutos da opressão. Os brancos antirracistas gozam dos privilégios do racismo, por isso eles são racistas apesar de serem antirracistas... Doido isso, não é? Além de serem racistas em virtude das suas construções subjetivas invariavelmente os colocarem em vantagens psíquicas acerca de suas potencialidades no mundo, eles o são também por meio do gozo dos privilégios, também de ordem material e objetiva, a exemplo dos seus patrimônios e de todos os outros inicialmente aqui elencados.

Como é também um privilégio branco ter credibilidade, vou trazer uma intelectual branca aqui para legitimar o que estou falando. Segundo Lia Schucman (2012) a branquitude é entendida como uma construção sócio-histórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca, e que resulta, nas sociedades estruturadas pelo racismo, em uma posição em que os sujeitos identificados como brancos adquirem privilégios simbólicos e materiais em relação aos não brancos. Corroborando com esses entendimentos a filósofa negra brasileira Sueli Carneiro (2005) nos aponta que a branquitude, enquanto sistema de poder fundado no contrato racial, da qual todos os brancos são beneficiários, embora nem todos sejam signatários, pode ser descrita no Brasil por formulações complexas ou pelas evidências empíricas como no fato de que há absoluta prevalência de brancura em todas as instâncias de poder da sociedade: nos meios de comunicação, nas direções, gerências, e chefias das empresas e das instituições públicas, nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, no corpo docente das universidades públicas ou privadas etc. Não há como superar o racismo sem desmascarar estes esquemas de privilégios e, não só denunciá-los, como extingui-los democratizando racialmente o poder.

Feito isso, tendo escurecido o entendimento acerca de privilégio branco e branquitude, nos cabe pensar essas categorias a partir dos cenários inicialmente anunciados: a ciência e a pandemia de COVID-19!

Mas o que é ciência, afinal?

A resposta a essa questão depende de qual matriz cosmogônica e epistemológica você está falando, se partirmos de um entendimento eurocentrado, brancocêntrico ocidental a ciência é uma racionalidade moderna caracterizada por advir de um processo de bases fundamentalmente empíricas, matematizadas que derivaram em teorias gerais de explicação dos fenômenos. Esta definição cirscunscreve enquanto ciência o conhecimento europeu produzido a partir de dicotomias hierárquicas, como: separação entre mito e logos, mundo sensível versus mundo inteligível, separação entre razão e emoção, dentre outras. Trata-se de um conhecimento objetivo pautado na construção racional de leis universalizantes. Na realidade, a intelectualidade branca européia se auto rotula enquanto intelectual e cientifica, contudo, não para por aí, ontologicamente esse padrão se constrói a partir da negação do outro enquanto intelectualmente potente e da negação de si enquanto outro de alguém. Schucman (2012) nos apresenta que uma das características mais marcantes da branquitude é que o sujeito branco tem uma ideia de que ele é normal. Trocando em miúdos, ele é a norma e o outro, diferente. Logo, o branco já tem, de partida, um privilégio muito grande: ele não carrega sua raça. Se ele roubar, vão falar ‘aquele homem, fulano de tal, roubou a loja’. Nunca será ‘os brancos’ roubaram a loja. Enquanto que em outros segmentos racializados – pessoas negras, indígenas e outras etnicidades –, o indivíduo sempre carrega um grupo. O caso do meteórico ministro da educação Decotelli nos aponta para esta realidade. Todas as pessoas negras deveriam, segundo o entendimento da branquitude, explicar e se constranger com as fraudes no currículo do acadêmico negro, fato não observado das fraudes existentes no currículo do anterior ministro branco da referida pasta deste governo abominável, Abraham Weintraub.

Privilégio branco é saber que a humanidade surge no continente africano, mas chamar a Europa de velho mundo; é saber que KMT (conhecido como Egito antigo) é 2 mil anos mais antigo que a Grécia e que possuía grandes produções científico-tecnológicas, mas escolher a civilização grega como berço intelectual da humanidade; é utilizar mulheres negras como cobaias em experimentos científicos, inclusive, sem anestésicos, como fez Marion Sims no século XIX, é ainda virar o “pai da ginecologia” moderna e ganhar estátua no Central Park nos EUA; é usar as células de uma mulher negra que morre na sarjeta chamada Henrietta Lacks e enriquecer milhares de indústrias farmacêuticas e biomédicas sem dar nem um centavo a família ou sequer pedir a permissão para o uso indiscriminado do corpo desta mulher; é ter o médico legista Nina Rodrigues como um dos maiores representantes de teorias científicas racistas no nosso país e termos um Instituto Médico Legal (IML) Nina Rodrigues na Bahia, bem como premiações da área médica com o nome do referido cientista; é saber que das 892 pessoas e organizações que ganharam Nobel em 119 anos de história desta premiação, 878 são não negras. Poderíamos ainda falar da composição racial das pessoas que são bolsistas produtividade do CNPQ, das pessoas que ocupam cargos docentes na graduação e pós-graduação, que ocupam reitorias, pró-reitorias direções nas universidades e nos demais centros de pesquisa científica, dentre outros marcadores explícitos dos privilégios objetivos e simbólicos da população branca na nossa sociedade. 

Hoje atravessamos uma crise humanitária (pandemia de COVID-19 hoje 14/07/2020 com 573.288 mortes no mundo), na qual mesmo em países de maioria branca, como os EUA, a população negra segue sendo a mais alcançada por essas mortes como reflexo da necropolítica (MBEMBE, 2018). Fato que nos revela que até o direito a vida e a humanização de suas existências continuam sendo privilégio branco, assim como o acesso irrestrito a água potável, as possibilidades legítimas de higiene, o acesso ao trabalho formal assalariado que possibilita o isolamento social e a vivência da quarentena com suprimentos básicos, o direito de pedir o ifood e não ser ou se ver no fenótipo do entregador, ou até mesmo o privilégio de adoecer e se curar enquanto sua empregada doméstica morre ou o privilégio de no isolamento social ter acesso a serviço de manicure e “babá de cachorro” e assassinar uma criança negra de 5 anos abandonando-a sozinha em um elevador e dar entrevista em rede nacional dias depois dizendo que fez tudo o que pode.

Caminhando para concluir, quero destacar o movimento antirracista que atualmente tomou uma dimensão mundial a partir do assassinato brutal de George Floyde, mas que não se inicia neste crime nem se encerra nele, pois seguimos sendo os alvos fundamentais do genocídio no mundo. Avalio que em um contexto no qual a branquitude se encontra em quarentena, imersa em redes virtuais por trabalho, lazer, saúde, etc, pessoas brancas se deparam pela internet com aquilo que a população negra vivencia cotidianamente desde a diáspora escravagista ocorrida na modernidade européia. A luta negra antirracista se dá no Brasil desde o movimento quilombola, do movimento negro abolicionista, do movimento frentenegrino, da guarda negra, da imprensa negra brasileira, do Teatro Experimental do Negro (TEN), do Movimento Negro Unificado (MNU), da Marcha Zumbi dos Palmares, da Marcha de Mulheres Negras para Brasília, dentre outros, entretanto, foi necessário a branquitude empática acessar essa tragédia social em pleno século XXI para colocar a temática na pauta do dia da imprensa mundial (que também é branca) para que o termo antirracismo viralize e se torne até “tendência”, moda nas hashtags das redes sociais com digitais influencers  cedendo suas redes para que pessoas negras abordem suas pautas. O problema é que a prerrogativa da escuta também é privilégio branco e isso faz com que a filósofa negra brasileira Djamila Ribeiro faça lives no instagram de Paulo Gustavo e essas não tenham nem 10% da audiência dos seguidores do ator/comediante. Isto porque o antirracismo branco não será efetivo enquanto este não destruir a estrutura do sistema que os privilegia. Antirracismo branco efetivo é aquele de “auto-sabotagem”, aquele que te retira do topo. Não há como extinguir as opressões raciais sem atacar frontalmente os privilégios da branquitude... Você está disposto a isso branco amigo? Fora isso, trata-se de estratégias de autopromoção (marketing pessoal) que pontuam e patologizam individualmente o racismo, sendo um grande “eles que lutem” para a população negra.

 

Referências

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. 2005. 339f.  Tese (Doutorado em Educação) – Faculdadde de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2018.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.


[1] Para quem, assim como eu, não sabia o que era apanágio trata-se de pensão concedida aos filhos e às viúvas de nobres pela família do falecido...em síntese, coisa de branco também.

 

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Como citar este artigo:

PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Privilégio branco nas ciências em tempos de pandemia e em todos os tempos por eles narrados. Senta que eu te explico! Notícias, Revista Docência e Cibercultura, julho de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Felipe da Silva Ponte de CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Oliveira dos Santos