A identidade sapatão-trans-não-binárie como modo de vida

2023-08-22

Por Marília Magalhães
Psicanalista em transição, com formação em Psicologia pela UTP (Universidade Tuiuti do Paraná), participante do Coletivo Psicanálise Periférica, faz pós-graduação no IPPERG (Instituto de Pesquisa em Psicanálise em Relações de Gênero) em Psicanálise e relações de gênero: ética, clínica e política, na Rede Para Escutas Marginais (Margens clínicas) e atua no PSILACS (Psicanálise e laço social no contemporâneo-UFMG) com pesquisas. Lattes: https://lattes.cnpq.br/1813965827851934. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6519-1659. E-mail: mariliamagalhaes@hotmail.com. 

 

Sapatão foi nomeado historicamente devido a feministas em meados dos anos 70 usarem sapatos, e isso ser considerado “roupa de homem”, se tornou uma forma pejorativa de insinuar que seriam pessoas lésbicas (PIMENTA, 2003). Com isso, ser lésbica é romper com o padrão de feminilidade comum, e com isso há uma retirada do lugar de ser mulher, por mais que seja insistido nos movimentos lésbicos de que ser lésbica é ser mulher que ama outras mulheres. Sapatão é uma identidade, um tanto antiga, diga-se de passagem, no qual temos várias palavras para considerar como sinônimos: machorra, vidalgo, butch, bofe, caminhoneira, fufa, sáfica, entre outros.

“Nossa primeira tarefa, ao que parece, é desassociar completamente “mulheres”  (a classe dentro da qual lutamos) de “mulher”, o mito. Pois “mulher” não existe para nós, é apenas uma formação  imaginária, enquanto “mulheres” são o produto de uma relação social” (WITTIG, Monique,1980, p. 75).

Conceber mulher enquanto uma formação imaginária, ou uma representação, isso se atrela a socialização feminina ou enquanto mulher é inserida no estereótipo feminino. Não se nasce mulher, mas quando se nasce com vagina é considerada do sexo-gênero feminino, se usa roupa rosa, os cuidados são mais delicados, o cuidado inclusive é considerado de ordem do feminino. Séculos se passaram, e o feminismo é considerado como algo feminino e não uma luta pela equidade de gênero. Os trabalhos domésticos sempre sobram para quem foi socializado enquanto um ser feminino, por mais que não carregue mais o gênero feminino consigo.  Ainda estamos falando apenas acerca do gênero em si, atrelado um tanto à sexualidade, mas o buraco é muito mais embaixo.

Precisamos considerar a interseccionalidade entre gênero, sexualidade e raça, como as lésbicas negras, tendo em vista que são tiradas do lugar feminino também, pelo fato de serem negras e lésbicas, por exemplo. Com isso, acho pertinente convidar Audre Lorde para esse diálogo. Ela é escritora caribenha-estadunidense, poeta, ativista, negra, lésbica, feminista, mãe: “Deixe-me dizer a vocês primeiro como foi ser uma mulher negra e poeta nos anos 60 para adiante. Significa ser invisível, ser realmente invisível. Significa ser duplamente invisível como mulher feminista negra e significa ser triplamente invisível como lésbica negra e feminista” (LORDE, Audre, 2018, s/p.). A invisibilidade consiste na tentativa de apagamento e inexistência, como de mulheres cis lésbicas e negras.

Certa vez, um motorista de Uber me questiona ao entrar no carro como é meu nome, ao responder, ele continua perguntando se é esse nome mesmo, eu afirmo mais uma vez impacientemente. Com isso, penso em como é que eu poderia provar que eu sou eu, já que meu nome não é mais sinal de confirmar quem sou. Não me surpreende tal acontecimento pois isso não é nada novo. Me confundir, duvidar de quem sou acontece desde muito cedo. Às vezes me questionam se sou menino ou menina, assim como fazem com as pessoas gestantes se referindo ao gênero do bebê, ou quando perguntam o nome para saber como me referir.

Parece que me tornei uma invenção, em que tento escolher um nome, como se estivesse prestes a nascer, tendo em vista que o meu nome parece não ser mais suficiente, porque carrega uma binaridade que eu já não transpareço mais, o que por um tempo não era duvidoso. Portanto, insisto em me criar, quem sabe inventar um nome que me caiba, que não seja entre isso ou aquilo, ou melhor, ele ou ela. Por enquanto sigo com o nome que me deram mesmo, até gosto dele, mas ele não está servindo mais, até parece que cresci.

Falo hoje enquanto sapatão-trans-não-binárie, considerando que sapatão vai além de uma orientação sexual, diz de uma identidade, que contempla tanto sexualidade quanto gênero, isto posto, não querer ser mulher não quer dizer querer ser um homem, de acordo com Monique Wittig (1980). Ser sapatão é considerado “menos mulher” diante da sociedade, pois se recusa o lugar de uma feminilidade comum, de corresponder a uma submissão ao homem, porém não quer dizer que seja uma imitação de uma masculinidade, visto que a masculinidade não é universal e muito menos única, por mais que homens se sintam assim, incluídos na sua bolha.

A binaridade também permeia as transidentidades, no qual é mais comum a compreensão da existência de mulheres trans, travestis e homens trans, mas pessoas não-binárias, andróginas, agênero, gênero fluído, entre outros gêneros, são o quê? Isso que não falei sobre as mulheres trans e travestis lésbicas ou bissexuais.

Paul Preciado (2020) afirma: "Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês." (s/p.). O filósofo há um tempo vem rompendo com a norma que compõe a epistemologia da diferença sexual, sendo causador de um divisor de águas no campo psicanalítico e nos estudos de gênero.

Há cerca de dez anos atrás eu encontrei outro nome para isso, eu era uma pessoa andrógina, que hoje se situa dentro das classificações da não binaridade. O interessante disso é que a androginia não é nova, existe inclusive o mito do andrógino no banquete de Platão que fala sobre isso. Ocorre que isso retorna — o discurso — porque é uma questão, de um discurso que parece não ser do nosso tempo, ou seria o retorno do recalcado?

O ser andrógino carrega características ambíguas, de ser masculino e feminino ao mesmo tempo, de na mitologia contemplar um corpo eclipsado de homem e mulher em um só, e que era só esse ser que existia até então. Acredito que, masculinidade e feminilidade têm sido debatidas nos últimos tempos e já não são vistos da mesma maneira, com exclusividade e universalidade, em alguns lugares mais do que em outros.

Quando me posiciono e me identifico enquanto uma pessoa andrógina, não-binária, trans, sapatão, queer, dissidente, o que carrego é um não-lugar, fora da norma, como se tivesse que escolher um lado, assim como as pessoas bissexuais. Em meio a essa confusão causada, não quero que compreendam rápido demais, isso pode ser mal-entendido e causado um mal-estar, um constrangimento, assim como esse motorista de Uber que comentei antes. Gostaria de ilustrar aqui a figura do mito do andrógino (fig1).

Vejam, não parece um monstro? Essa monstruosidade é como a sociedade cisgênera situa as pessoas trans, como uma coisa, que não se sabe como tratar, como lidar, como ler, um ser desconhecido, jamais visto até então. Alguns até tentam estudá-los, compreender sua psique, despatologizar, colocando ainda num lugar de objeto, de coisa desumana. Paul Preciado (2022) fala do monstro que o habita, de como é navegar por esse mundo sendo um monstro que fala, que deseja, que existe. Hoje falo desse lugar também, de um monstro, quem sabe assim tenhamos voz e por fim existimos.

Quando me referi mais acima sobre o discurso, de parecer ser algo novo ser não binário hoje, e na verdade ser mais algo de novo, de outro tempo, remete ao que Lacan (1953) fala, de que o discurso tem validade e precisamos considerar a subjetividade de nossa época, e inclusive reconhece como o complexo de édipo em Freud é normativo, e que relendo Freud tentou até desler, pensando não ser mais do seu tempo esse discurso, talvez seja isso que tentamos fazer na contemporaneidade, mudar as formações discursivas como um movimento que se deve fazer na psicanálise. “Podemos discernir as formações discursivas do nosso tempo, quando ainda participamos delas?” (AYOUCH, 2021, p. 22). Nisso, implica fazer uma arqueologia do próprio discurso psicanalítico, não coincidindo consigo mesmo, ou seja, uma saída do seu próprio discurso. É preciso sair da ilha para ver a ilha, como dizia José Saramago.

As transidentidades podem ser compreendidas como um significante de transformação, para pensarmos não só o gênero, mas também a psicanálise, de um discurso que retorna, como o retorno do recalcado. Com isso, acredito ser interessante falar disso tudo, não sem antes situar o discurso da cisgeneridade, que se encontra como universal e intocável, e que mal sabem quem são esses, os cisgêneros. Talvez seja um bom começo.

 

Figura 1 - Leonardo da Vinci: arte desconhecida de um corpo andrógino de duas cabeças.

 

Referências

AYOUCH, Thamy. Psicanálise e Hibridez: Gênero, colonialidade, subjetivações. 1. ed. Curitiba: Calligraphie, 2021.

LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem. In Escritos (pp. 238–324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1953.

LORDE, Audre. Textos escolhidos de Audre Lorde. Difusão Herética: edições lesbofeministas independentes. Disponível em: Acesso em novembro de 2018.

PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2: mais curiosidades nas origens das palavras, frases e marcas.  Editora Elsevier: Rio de Janeiro-RJ. 2003.

PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. 1ª edição. Editora Zahar: Rio de Janeiro-RJ, 2020.

_____________. Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas. Tradução de Carla Rodrigues. 1ª edição. Editora Zahar: Rio de Janeiro-RJ, 2022.

WITTIG, Monique. Não se nasce mulher.  Tradução de Léa Süssekind Viveiros de Castro. Nouvelles Question Féministes 8, Paris, 1980, p. 75-84.

 

Como citar este artigo: 

MAGALHÃES, Marília. A identidade sapatão-trans-não-binárie como modo de vida. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, agosto de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Curadora:

Thayz Conceição Cunha de Athayde   

Editores/as Seção Notícias:

Felipe Carvalho - Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá (PPGE/UNESA); e bolsista de pós-doutorado CNPq pela Universidade Federal de Tocantins (UFT).

Edméa Santos - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Rural (PPGEDUC/UFRRJ)

Marcos Vinícius Dias de Menezes - Graduando em Letras - Português, Inglês e Literatura em modo de licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Bolsista de Iniciação Científica na FAPERJ

Mariano Pimentel - Professor do Programa de Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGI/UNIRIO)