Tomando posse, trazendo impacto: transvestilidades e a fotografia da política brasileiro

2023-01-31

Por Ariela Nascimento

Professora, estudante de ciências sociais - UFF, diretora trans do DCE - UFF, articuladora política da Comissão de Direitos Humanos da Criança e Adolescente - Niterói.

As casas legislativas de diversos territórios brasileiro vem passando por um processo de reforma. A parede que é ocupada pelas fotografias de homens brancos que historicamente se envolveram nos grandes eventos da sociedade deve no futuro ganhar outra dimensão estética e política pela insurgência de pessoas trans nestes espaços.

Ainda que somente no século XXI  tenha ganhado força e corpo social o objetivo do Movimento de Travestis e Transexuais estar na política institucional ocupando  assessorias e sobretudo cargos no legislativo, com a chamada “Mulheres Trans na Política”, cronologicamente vale apontar que no final dos anos 90 houve um fenômeno social que movimentou minimamente a cara e a estrutura da política brasileira com a posse de uma travesti negra no município de Colônia do Piauí assumindo o cargo de vereadora, Kátia Tapety.

Assim, conjecturar a ocupação de mulheres trans e travestis nos espaços institucionais de poder se baseia na construção de um diálogo direto do movimento com o Estado. Deste modo, o lugar da população transvestigêneras  ganha destaque no campo pela disputa do biopoder. Ou seja, a política de fazer viver ou deixar morrer elucida um percurso que destina a capacidade de travestis, pessoas trans ( homens e mulheres ) e não binárias provocarem confronto direto com  a sociedade capitalista de controle que tem por objetivo subalternizar a vida e os corpos destas pessoas, além de materializar inúmeras violações de Direitos Humanos.  

No Estado do Rio de Janeiro,  tivemos pela primeira vez no ano de 2017 duas mulheres trans ocupando a Câmara Legislativa, sendo elas Lana de Holanda e Bárbara Aires enquanto assessoras dos parlamentares David Miranda e Marielle Franco. Este fato trouxe para a Câmara do Rio uma outra configuração do que viriam ser agora as iniciativas de leis e o balanço da estrutura burocrática pois ambas incidiram diretamente nas relações administrativas, pautando a regularidade de seus nomes nos documentos oficiais da casa, além de lutarem também pela utilização de sanitários de acordo com suas identidades.

Ainda que ambas as ativistas tenham dentro da casa legislativa personificado positivamente essas questões sobre as suas figuras, de todo modo o movimento politicamente organizado por pessoas trans já vinha fomentando esse debate na esfera da sociedade. No ano de 2017, a primeira assessora trans da Câmara Municipal de Niterói, Benny Briolly já pautava conjuntamente à parlamentar Taliria Petrone a necessidade de criar um Projeto de Lei que permitisse pessoas trans a utilizarem banheiros públicos de acordo com sua identidade autodeclarada.

Isto reflete o papel fundamental que nós enquanto assessoras trans na política já  temos e resulta na possibilidade  de garantir que as vozes da comunidade sejam atentamente escutadas. Logo, a nossa participação denota a ponte que abrimos nas relações entre instituições e movimentos sociais. O bordão “não se pode mais fazer política sem nós", mesmo que traga a expressão da posição dos segmentos marginalizados ocupando o poder legislativo enquanto parlamentares, deve também imprimir também a extrema necessidade da nossa atuação enquanto assessorias.

No ano de 2018 nosso país presenciou mais uma vez mulheres trans e travestis insurgindo na política com a vitória eleitoral de Erica Malunguinho e Erika Hilton em São Paulo, e também de  Robeyoncé em Pernambuco. Segundo a ANTRA, nas eleições de 2020 se testemunhou 294 candidaturas trans e dessas mais de trinta foram eleitas. Contudo, em 2022 tivemos um cenário político histórico com a vitória de Duda Salabert e Hilton para o Congresso Nacional e com a primeira Deputada Estadual no Rio de Janeiro, Dani Balbi.

É fato que a posse dessas mulheres trans e travestis trouxe impactos para as casas legislativas e o congresso nacional que antes de suas presenças construíram maneiras e formas de fazer a manutenção de um política de vida apenas aos sujeitos reconhecidos como legítimos de se viver em sociedade. “Manifestações textuais ( insubmissas ) travesti” discorre sobre a presença destes corpos em todos os estratos sociais, sabendo que ao contrário do imaginário do senso comum, ser uma travesti é o reconhecimento de um outro corpo possível, legítimo, além daquele normalizado.(YORK;RAYARA;BENEVIDES,2020).Deste modo, os corpos da população travestigeneras no campo político institucional e/ou partidário operam um dinamismo diferente dos códigos sociais que estabelecem as identidades de gênero, rompendo assim o que a crença sociocultural impõem como homem e mulher.  

O fenômeno de Mulheres Trans na Política com as eleições de 2020 garantiu que Niterói desse uma resposta às violências LGBTQIA+fobicas com o sucesso eleitoral da travesti Benny Brilly. Em 2021 pela primeira vez na história do Estado do Rio de Janeiro podemos contar com a participação efetiva de uma mulher trans ocupando a casa legislativa enquanto parlamentar.

O impacto que isso gera é um balanço nas estruturas que viabilizam e discutiam dentro do plenário da casa legislativa somente as leis e iniciativas que favoreciam seus status quo, ou que beneficiam a aliança com seu confiável eleitorado. Os fundamentalistas religiosos precisam agora lidar com a corporeidade dessas mulheres trans e travestis que possuem outra linguagem de fazer e falar política que não fosse como as de costume daquele espaço. 

Exemplo disso, é o caso ocorrido com a vereadora Benny Briolly ao levantar a bandeira do seu movimento de Axé ao destinar Maria Mulambo como protetora da sua cidade e projetos como a do Transfeminicidio que foi aprovado por muita pressão do movimento de travestis e transexuais politicamente organizado na cidade e no estado. Isto só comprova a extrema necessidade de elaborar e desenvolver uma política que reflita no que os movimentos sociais denunciam e que a representatividade importa se pressupor compromisso social, senso de coletividade, compromisso com a transformação e ruptura das estruturas transfóbicas e de exclusão(YORK;RAYARA;BENEVIDES,2020).

Em “Pedagogias das travestilidades” Maria Clara Araújo (2022. p. 115) faz uma análise sobre a práxis política-pedagógico do Movimento de Travestis e Transsexuais e assim cabe compreender que a nossa conjuntura sociopolítica passa por grandes mudanças, mas isso implica definitivamente nos saberes em que as mais velhas vem deixando ( como o legado de Kátia Tapety ) para a juventude trans e, como a importância de espaços para a conscientização política da população deve ser considerado.

Em aliança com as parlamentes travestis negras, que seguem O trabalho iniciado pela vereadora Kátia Tapety em Colônia (1993-2004, PI), caberá ao Movimento dar continuidade aos Encontros Nacionais de Travestis e Transexuais enquanto espaços públicos em que a construção democrática é exercida e em que processos formativos e de conscientização política e social se tornam possíveis.

Em agosto de 2022 para celebrar os 30 anos da ANTRA e potencializar a construção coletiva de nossas vivências, ocorreu o encontro nacional do movimento trans. Este espaço foi extremamente necessário para debater os próximos passos do movimento e construir uma agenda reivindicando nossos direitos e avançando em um diálogo amplo e aberto com a sociedade. O resultado disso é justamente dar validade ao que é proposto por Maria Clara Araújo, não só conscientizar os nossos, mas todos aqueles que ainda encontram dificuldades em compreender e dar visibilidade a existência de pessoas transvestis.

Todo esse processo se entrelaça entre ativistas, assessorias e parlamentares trans que tem por finalidade articular uma política que reduza as constantes violações de direitos humanos sobre a população transvestigêneres. De acordo com a ANTRA , mais de 90% de nós está nas esquinas se prostituindo, sem nem mesmo ter terminado o ensino médio ou, em muitos casos, o ensino fundamental. Uma pesquisa do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa da UERJ mostra que as pessoas trans e travestis são somente 0,3% dos estudantes das universidades federais.

A despeito disso, os mandatos legislativos de pessoas trans ou compostas por essas identidades devem assumir o compromisso ético e político na consolidação de uma tarefa que perpassa por iniciativas que  afetam radicalmente a estrutura da sociedade cisheterornormativa, estabelecendo com o movimento transvestis uma escuta ativa e afetiva, se responsabilizando com a  realidade destas pessoas que apesar de se somarem em coletivo, ocupam lugares sociais distintos e que possuem recortes sociais que permeiam raça, classe, gênero e deficiência.

É claro que a posse dessas pessoas trans e travestis enquanto assessora e parlamentares nas Câmaras e Assembleias legislativas descreve nitidamente o projeto de nação que se espera do país que mais mata pessoas transexuais. Um projeto que tenha como reflexão que identidades transvesti são ferramentas políticas para a construção da organização de um Brasil melhor para toda população brasileira.

Por tanto,  em tempos em que vivemos o horror do fascismo no Brasil não podemos jamais esquecer que a existência e a representatividade da nossa comunidade na esfera política institucional, seja enquanto assessoria ou parlamentar, se baseia unicamente no dever de denunciar a política de morte sobre as nossas vidas e criar a manutenção de vidas trans. O saldo que fica na conta da sociedade brasileira sobre a vida das pessoas transvestis descreve os próximos rumos da comunidade, isto é, não se pode pensar projeto político de sociedade sem pensar travesti,  homens e mulheres transexuais e pessoas não binária, significa que é impossível pensar futuros processos eleitorais sem uma vasta candidatura desta população, que é inevitável qualquer cenário onde pessoas trans continue sendo secundarizada e que o retrato da parede das casas legislativa deixam de majoritariamente ser retratado por homens e passam a ser assumido por mulheres cis/trans/travestis, valorizando toda sua luta e trajetoria para fazer parte de uma piramede social onde sejam ouvidas e lembradas.  


Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 284-315.

PASSOS, Maria Clara Araujo dos. A Pedagogias das travestilidades ed 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2022.

YORK, Sara; RAYARA, Megg; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti.  Revista estudos feministas,v 28, n. 3, 2020.

ANTRA. CANDIDATURAS TRANS FORAM ELEITAS EM 2020: 30 Candidaturas Trans Eleitas em 2020. CANDIDATURAS TRANS FORAM ELEITAS EM 2020, [S. l.], p. 1-4, 16 nov. 2020.

ANTRA. CANDITATURAS TRANS EM 2022: CANDITATURAS TRANS EM 2022. CANDITATURAS TRANS EM 2022, [S. l.], p. 1-9, 5 ago. 2022. 


Como citar este artigo:

NASCIMENTO, Ariela. Tomando posse, trazendo impacto: transvestilidades e a fotografia da política brasileiro. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel