TRANS(IN)VISIBILIDADES MASCULINAS: DESAFIOS E AVANÇOS A PARTIR DO GRUPO DE PESQUISA SEXUALIDADE E ESCOLA - GESE

2023-01-29

Por Luís Mahins Domingues

Graduado em História Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande – Furg, Coordenador Estadual do Ibrat - Instituto Brasileiro de Transmasculinidades no Rio Grande do Sul.

Ano de 2014. Chego à Universidade Federal do Rio Grande - Furg, como quem chega à outro planeta. Sou e me sinto um forasteiro. Pior ainda, também sou visto como tal. Já nos primeiros dias percebo que não seria tarefa fácil permanecer durante 4 anos, superando desafios diários. Em sala de aula, e tenho esta convicção ainda hoje, o maior constrangimento foi e assim continuaria sendo até 2016 (ano em que decido e torno definitivo o projeto de retificação de nome e gênero), a incongruência entre o nome que, teoria nossa, sigo afirmando se tratar de ‘’Nome Social’’ e a expressão de busca, de não identificação de professores quando eu muito angustiado, constrangido respondia:- ‘’Presente’’! ou extremamente amuado: - ‘’Aqui’’!

Retomo a teoria que venho defendendo em todos os lugares em que sou convidado a falar (ainda poucos considerando o volume de demandas e a devida urgência em ocupar estes lugares) de que ‘’Nome Social’’ é aquele escolhido pela família onde nascem ou são acolhidos os sujeitos, onde suas identidades de gênero são determinadas biologicamente.             

É a partir deste nome que o Estado, informado de nossa existência, procede o devido registro da mesma via documentos oficiais. Esta teoria seria apresentada durante uma das muitas reuniões do “Transformando Vidas”, grupo que surge a partir da parceria que fizemos com a Profª.  Drª Paula Regina Costa Ribeiro então coordenadora do Gese (Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola) com a qual já tínhamos contato anterior visto termos cursado a disciplina de Gênero e Sexualidade. É neste espaço e contexto, dentro da disciplina de Gênero e Sexualidade  que definitivamente inicio minha transição. Me reconheci ‘’oficialmente’’Transhomem através de João W. Nery quando durante uma entrevista concedida à Marília Gabriela, me causou o mesmo impacto que causa à alguém enxergar a própria imagem no espelho.   

O  grupo  Transformando  Vidas,  formado  em  2016,  é  constituído  por  alunos/as trans  da  Furg  e  da  Educação  Básica,  pessoas  trans  da  comunidade,  pesquisadores/as, médicos/as,  enfermeiros/as  entre  outros/as  sujeitos/as.  O  grupo  se  constitui  a  partir  deuma  rede  de apoio  a  pessoas transsexuais,  comvistas  a  estabelecer  relações  entre diferentes  profissionais  que  podem  contribuir  com  aspectos  relacionados  à:  saúde, educação,  direitos,  acesso  à  cidadania  e  a  demais  questões  que  permeiam  a  vida  de sujeitos  que  possuem  algumas  demandas  especificais  em  razão de sua identidade de gênero. (Paula Regina Costa RIBEIRO et al., 2022, p. 215).

 Como relatei no início, eu não me reconhecia pelo ‘’Nome Morto’’(aquele com o qual nos identificam ao nascer. O mesmo ocorreu com Professora Paula Regina. Durante as longas conversas que travamos, sempre retomávamos o estranhamento que o ‘’Nome Morto’’ causava em nós. Ela por não reconhecer o portador; eu, por ser o portador e desejar ardentemente não sê-lo. Durante uma entre centenas de conversas, posto ter me tornado frequentador da sala do Gese onde acabei sendo convidado para também ser bolsista de CNPq, percebemos que embora a Universidade Federal do Rio Grande-Furg contasse efetivamente com ações que partiam do Coletivo Camaleão (LGBTQIA+) no enfrentamento à Homolesbotransfobia, ainda assim existia um grupo de graduandas/os/es que permanecia na invisibilidade. 

Somos corpos marcados pela necropolítica (Achille MBEMBE, 2019). “Corpos matáveis, sem representatividade e sem passado.”  Muitas vezes, são nossos títulos, nossas carreiras, e a forma com que negociamos este acúmulo de elementos a que a maioria das travestis não terá acesso, que nos autorizam a circular por determinados espaços, sem a garantia de sucesso ou segurança. Esses mesmos títulos não nos protegem da travestifobia. Um suposto respeito é direcionado à nossa não ameaça ao cistema, somado aos nossos títulos e às profissões alcançadas, e não à pessoa da travesti. Logo, somos toleradas e os espaços passam, não a respeitar, mas a ter que lidar com nossa existência travesti. O que seria um “facilitador” em alguns aspectos. Viver ou vivenciar este entreposto, entre o “ser uma mulher não homem”, tem sido o quiasma dessa equação que não pede exatidão, mas inclui corpos outros e suas não aceitações às práticas binárias. ( Sara Wagner YORK; Megg Rayra Gomes OLIVEIRA, Bruna BENEVIDES, 2020, p. 7).

Não apenas as Travestis como também nós, Transhomens temos nossos corpos marcados pela necropolítica. Nossa chegada à Universidade é uma busca não somente do conhecimento mas e principalmente um ato político que, subvertendo a lógica pré-estabelecida e vigente nesta estrutura patriarcal, falocêntrica que nos imobiliza à ponto de retardar nossa ascensão na pirâmide social, visa emancipar-se intelectualmente com o devido reconhecimento outorgado pelas titulações obtidas através desta instituição. Ora, enquanto pessoas vivendo com vagina, útero, mamas e ovários, menstruando e considerando que raramente vivenciamos a menopausa (considerando que a expectativa de vida desta população não ultrapassa 35 anos; também pelos altos índices de suicídio), somos nós alvos constantes de transfobia, direta ou indiretamente. No mesmo sentido, também não temos garantias de sucesso ou segurança mesmo quando acessamos algum ambiente que nos privilegie entre muitas aspas. A crosta social generificada vive e permanece em constante atividade sempre empurrando para as margens aquilo que não se encaixa às suas exigências. A Academia não é imune à este fenômeno sócio-antropológico. 

Um corpo dissidente como o meu, que procura romper com a condição de alguém que não aceita mais se calar, procurando deixar o lugar subalterno para me constituir como pessoa pensante e crítica das minhas ações, faz-se ato político. […] meu lugar de enunciação foi sempre dominado por outros que nos classificaram como anormais, nos assujeitaram como alguém inferior, nos humilharam, nos transformaram em apenas um corpo a ser estudado ou simplesmente nos mataram. Os oprimidos podem e devem falar por si mesmos (buscando instrumentalizar-se para serem ouvidos). Eu, como mulher travesti, não permito que meu discurso seja invalidado ou menor. Sou uma pesquisadora do asfalto, da luta de viver a cada dia com a possibilidade de uma morte eminente (diante da letal ação do estado sobre alguns corpos). (GONÇALVES JR, 2018, p. 16).

Corpos dissidentes sempre provocarão tremores nesta crosta social, historicamente mantida à custos altíssimos, pagos principalmente pelas Mulheres. Não há como negar que o corpo de um Transhomem em movimento, em Luta não apenas contra o Cistema mas também no enfrentamento direto à sua incongruência de gênero, à disforia (mantida sob severa autovigilância em tempo real e integral), provocaria e segue provocando desconforto nas pessoas cis. A opressão, contínua e recorrente provoca assujeitamento involuntário, concorrendo para a perda temporária de sentido ou consciência de nossa condição de total ou parcial desumanidade. É dentro da academia que o processo de desconstrução do gênero ao qual me é atribuído ao nascer mas e principalmente a busca pela autonomia, por minha Emancipação, de Direito e de Fato, entrarão em choque quando reivindico também, o lugar de fala.

É de dentro do Gese que este lugar se estabelece e se espraia. Logo iríamos aos poucos ,nos constituindo num grupo que iniciaria com Noah, Sílvio, Lukas, Johnny ( que à princípio chega como graduando de Psicologia e começando sua transição no Transformando Vidas). Somam-se também ao grupo, profissionais da área da Saúde e do Direito. Nossa primeira parceira seria a Drª Tânia Fonseca, ginecologista e chefe do setor de Obstetrícia no HU- Furg que possibilitou atendimento e acompanhamento ginecológico aos Transhomens, um procedimento permeado principalmente por sua visão humanitária. Naturalmente esta aproximação se daria a partir da mediação da Professora Paula Regina. Em nossa primeira conversa foi possível dar os primeiros passos para a criação de uma rede de atenção à saúde integral destes sujeitos. Contamos ainda com o acolhimento do Dr. Hsu Yan que se mostrou bastante comprometido com nossas demandas. Não poderia deixar de mencionar ainda a acolhida de Cleiton Neles, médico lotado na Unidade Básica de Saúde da Família do bairro Santa Tereza e que participava do Programa Mais Médicos e da Enfermeira Chefe, Denise Grafulha que atuava na atenção à saúde das Trabalhadoras do Sexo e que se sentiu movida ao conhecer a existência do Transformando Vidas.

Somou-se ao grupo também, o CRDH -Furg ( Centro de Referência em Direitos Humanos de nossa Universidade) que passa pela articulação de Felipe Hatje, então mestrando e advogado. Ele é o responsável direto pelas ações que, encaminhadas à Justiça, buscavam garantir nossos direitos no que tange a retificação de nome e gênero em nossos documentos. Os Transhomens que iniciaram a trajetória do Transformando Vidas ainda foram submetidos à avaliação psiquiátrica que comprovaria estarmos todos gozando de plena saúde mental. Com os  laudos devidamente encaminhados ao Fórum ainda contamos com a sensibilidade da Juíza Denise Dias Freire que desde sua chegada à Comarca e sensibilizada pela pauta que diz respeito à dignidade humana antes de quaisquer outras questões, deu a devida atenção e celeridade às análises destes processos que, anteriormente, eram  morosos.

É também, a partir das demandas surgidas no Transformando Vidas que a Professora Paula Regina Ribeiro pensaria e criaria estratégias para a realização do I Simpósio Saúde, Educação e Direitos Humanos: Desafios do processo Transexualizador. Foi realizado entre os dias 6 e 8 de Junho de 2019. Abaixo, compartilharemos na íntegra a divulgação do simpósio que é um marco histórico na vida do Gese, da Universidade Federal do Rio Grande- Furg, e de cada pessoas Trans que esteve neste evento realizado no anfiteatro da área acadêmica Newton Azevedo do Campus Saúde:

Simpósio Saúde, Educação e Direitos Humanos: desafios no processo transexualizador, será realizado no período de 06 a 08 de junho de 2019, na Universidade Federal do Rio Grande - FURG (Rio Grande/RS).  O evento se configura a partir de uma parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande e o Hospital Universidade Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. (HU-FURG/Ebserh). O evento é fruto de um trabalho conjunto que vem sendo desenvolvido desde 2016 entre o Grupo de Pesquisa Sexualidade Escola - GESE, Faculdade de Medicina e o Hospital Universitário. Durante esse período foram realizados alguns movimentos para atender aos sujeitos trans o que culminou com o processo de credenciamento do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. (HU-FURG/Ebserh) junto ao Ministério da Saúde para assistência no processo transexualizador tanto a nível ambulatorial quanto hospitalar. 

Este evento, com certeza, é também um divisor de águas na vida de cada pessoa Trans que se fez presente ou que dele recebeu orientações sobre o processo transexualizador, indiretamente. Não obstante e embora não fossem medidos o comprometimento e esforços para que avançássemos para além do credenciamento do hospital junto ao Ministério da Saúde. Devido à alguns ajustes que não ocorreram e dos quais não fomos informados, ficamos sem possibilidade de acessar a mamoplastia masculinizadora, um projeto de vida para muitos. Entre estes, me incluo. Hoje, não frequento a praia por conta de permanecer vivendo com seios e barba. Mesmo com estas restrições, tenho convicção de que avançamos, significativamente. É deste simpósio que novos projetos não apenas acadêmicos mas e principalmente de vida são criados. Enfrentamos pandemia, corte de verbas, crescimento de um pseudo-conservadorismo que, ao contrário daquilo que apregoavam suas forças vivas, catapultou estatisticamente os casos de violência contra mulheres, crianças e LGBTs.

Na contramão deste processo, o Gese permanece irredutível naquilo que lhe é caro: a Educação para a sexualidade nos espaços escolares. O Transformando Vidas também segue ativo e parceiro do Gese que expande seus projeto de erradicação da Homolesbotransfobia em dois outros grupos. Famílias e Diferenças que tem por objetivo acolher, prestar apoio, concorrendo para que gradativamente as famílias contornem, diluam suas diferenças concorrendo para que o abandono, os números de LGBTs em situação de rua, sem emprego e estudo passem a ser página virada em suas vidas. Não podemos esquecer a criação também do TransJuventudes que visa promover a socialização, divulgando conhecimento sobre gênero e sexualidade com responsabilidade social. Mais efetivamente de 2016 para cá, com a criação do Transformando Vidas, o Gese ganha significativo reforço posto agregar o conhecimento tecnológico de Transgraduandos. Também participamos do processo da criação de Cotas[1] para pessoas Trans e Travestis onde a colaboração de Johnny Nakanishi que elaborou a pesquisa que mapearia o interesse destas pessoas pelos cursos que a Furg oferece foi fundamental. A partir da inclusão da população trans no programa, a FURG passa a oferecer, anualmente, processo seletivo específico com oferta de 10 vagas em cursos diversos, indicados pela comunidade trans.

Outro movimento empreendido com o propósito de suscitar o debate e o conhecimentos acerca da vivência da transexualidade por parte dos/as sujeitos/as, em articulação entre a saúde e a educação, foi a oferta aos/as estudantes de medicina da disciplina “Gêneros e Sexualidades nos Espaços Educativos”. 

A disciplina “Gêneros e sexualidades nos espaços educativos” foi pensada com a “proposta de suscitar novos acontecimentos” (Ribeiro, Rizza, Ávila, 2014, p. 132), mobilizar, movimentar os/as estudantes do Ensino Superior a “pensar em outras experiências para além do que é ins- tituído nos currículos oficiais dos cursos de graduação” (Ribeiro, Rizza, Ávila, 2014, p. 132). A partir dela, a pretensão era de compartilhar conceitos e teorias em torno das temáticas corpos, gêneros e sexualidades e, através das discussões propostas, possibilitar a desconstrução e a desnaturalização de tabus, de preconceitos, de representações construídas social e culturalmente. (Evélin Pellegrinotti RODRIGUÊS; Paula Regina Costa RIBEIRO; Juliana Lapa RIZZA, 2021, p. 566)

Por último e não menos importante citamos a Mostra Cultural sobre Diversidade Sexual e de Gênero, um dos maiores eventos realizados pela Furg na perspectiva da Educação que, em 2022 celebrou sua 8ª edição. Esta mostra é uma potente ferramenta de enfrentamento e conscientização sobre violência de gênero que recebe à cada edição, um número crescente de participantes. Finalizamos reforçando a importância destes projetos que, germinados na universidade reverberam e fazem a diferença na vida pessoal e coletiva dos sujeitos.

 

Referências

I Simpósio Saúde, Educação e Direitos Humanos: desafios no processo transexualizador. Acesso em 15 de janeiro de 2023.

GONÇALVES JR, Sara Wagner Pimenta. As (Trans)Alianças e a Neomaquinaria. Carta Capital, 2019. Acesso em 25/01/2023.

RIBEIRO Paula Regina Costa et al., 2022, p. 215. Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola – Gese: experiências, trajetórias, acontecimento. Revista Diversidade e Educação, v. 10, n. 1, p. 206-221, 2022.

YORK  Sara Wagner; OLIVEIRA Megg Rayara Gomes; BENEVIDES Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista Estudos Feministas, v.  28, n. 3, 2020.  


[1] Programa de Ações Afirmativas, a qual foi aprovada pelo Conselho Universitário (CONSUN) em outubro de 2022 (Resolução n. 20/2013). Posteriormente, com a ampliação consolidada, o Conselho de Ensino, Pesquisa, Extensão e Administração (COEPEA), no mesmo mês, aprovou o Edital do processo de seleção de 2023 (Resolução COEPEA n. 88/2022).

 

Como citar este artigo:

DOMINGUES, Luís Mahins. TRANS(IN)VISIBILIDADES MASCULINAS: DESAFIOS E AVANÇOS A PARTIR DO GRUPO DE PESQUISA SEXUALIDADE E ESCOLA - GESE. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel