A CORRIDA CONTRA O TEMPO: O QUE SIGNIFICA SER UMA TRAVESTI?
Por Florence Belladonna Travesti
Travesti gorda, rural, migrante do interior do Rio Grande do Norte, historiadora e mestranda em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares na UFRRJ. Membra do Comitê Científico da Associação Nacional de Travestis e Trasexuais (ANTRA), uma das investigadoras do Acervo Bajubá, de salvaguarda da memória nacional LGBT, localizado no Grupo de Incentivo à Vida da cidade de São Paulo, e integrante do #VoteLGBT, organização não governamental que busca pelo fortalecimento da visibilidade LGBTI+ na política institucional do Brasil.
Por Jô Alves / Jonas Alves da Silva Júnior
Pessoa trans, preta, da periferia de São Paulo. Doutora e Pós-Doutora em Educação pela USP. Atualmente docente do curso de Pedagogia e da Pós-Graduação em Educação da UFRRJ.
O que significa ser uma travesti no Brasil? No dia 13 de dezembro de 2022, mais uma vez fomos relembradas na nossa condição de não humanidade. Naquele momento, uma aluna trans da UnB foi acusada de: “Cara, mas você é um cara!”, ao reagir à agressão de não poder usar o banheiro feminino da universidade.
No momento deste texto, voltar à cena de transfobia na Universidade de Brasília constitui um problema longe de ter fim, quando considerado que o episódio de violência aconteceu a poucos dias de Lula tomar a posse presidencial, e um pouco menos de um mês para os atentados antidemocráticos, acontecidos no dia 8 de janeiro, quando terroristas bolsonaristas destruíram os prédios do Palácio do Planalto, STF e Congresso.
Mas o que o atentado terrorista à democracia tem a ver com as travestis brasileiras?
Em primeiro lugar, nos últimos 11 anos, pelo menos, instalou-se em território nacional uma caça declarada às dissidências de gênero e sexualidade de modo institucionalizado, formando um ambiente que consolidou a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Em 2016, a misoginia brasileira conseguiu dar um Golpe de Estado, disfarçado de Impeachment da Presidenta Dilma, marcando a boa adoção dos discursos de monstrificação das pautas de gênero, e consequentemente o debate amplo sobre identidade de gênero e orientação sexual.
Outros dois pontos importantes a ser mencionados é que, na eleição de 2018, Jair Messias Bolsonaro foi eleito com discursos totalmente ficcionais sobre a esquerda brasileira aliciar crianças para imoralidade, com mamadeiras e chupetas em formato de pênis, ficando conhecido por “mamadeira de piroca”, e “kit gay” ─ este último, uma suposta cartilha infantil de como praticar sexo nas escolas, reverberando uma caça aos/às profissionais docentes e pesquisadorxs de gênero iniciada com o “Movimento Escola Sem Partido”, fundado pelo advogado e procurador de justiça Miguel Nagib, na cidade de São Paulo, em 2004.
Ao passo que retornamos um pouco no tempo, podemos perceber quase que inteiramente, que as últimas três décadas deste século corrente foram dominadas por uma abominação política profunda sobre as questões de gênero e sexualidade, não possibilitando-nos, de maneira equitativa, avançar na tomada profunda de cidadania para as pessoas trans.
Por que é importante retomar algumas lembranças para compreender os parâmetros do significado de gênero e democracia para as travestis? Para as travestis, a resposta está na ponta da língua: nós nunca vivemos em uma democracia.
A sociedade cisgênera têm visto sua fragilidade sendo construída aos poucos, nas últimas três décadas, mas nós, travestis, ainda estamos presas no tempo ditatorial de 1964, pelo menos, quando éramos amplamente caçadas e mortas, em operações policiais como a “Operação Tarântula”, que durante a Ditadura Civil-Militar do Brasil, prendeu e matou incontáveis travestis, incluindo aquelas que não aparecem nos dados de pesquisa; travestis que, em fuga, pulavam muros e quebravam o pescoço, pernas ou braços, que foram devoradas por cachorros, ou eram assassinadas e jogadas em terrenos baldios ou em rios, córregos ou lixões.
Não por acaso, para fugir da violência, as travestis brasileiras ainda enfrentam o êxodo internacional da prostituição como uma forma de, ao menos, não correr extremo risco de vida, enquanto exerce profissões estigmatizadas socialmente, como a prostituição. A prostituição, que ainda hoje é a única via compulsória de sobrevivência para muitas.
O evento agressivo contra uma aluna trans na Universidade de Brasília em 13 de dezembro de 2022 não é um evento isolado e tampouco raso, quando considerado a história nacional das práticas culturais e políticas contra as relações de gênero e suas dissidências. Não é difícil compreender ao certo o que significa ser uma travesti no Brasil, que desde sempre, nunca vivenciamos a cidadania em completude, tendo nossas experiências perpassadas por práticas culturais de caça e predação sexual, em uma sociedade que nos vê como a própria personificação do gênero, em fisicalidade.
Personificadas como o próprio gênero, sequer podemos revidar nosso lugar de humanidade, porque somos tachadas de violentas, caso o façamos. Foi assim que se montou a repercussão contra a estudante trans da UnB, ao afirmar que daria uma tapa no rosto da garota que a expulsou do banheiro feminino, caso continuasse chamando-a de “cara”, um adjetivo repetido na frase “Cara, mas você é um cara!” ─ em uma ação de expulsamento do banheiro gravado pela câmera de um smartphone, tornando a situação ameaçadora e vexatória para a aluna trans.
Desde a transição de gênero, travestis são colocadas diante de uma angústia profunda que atravessa os abismos que a sociedade impõe ao nosso corpo, inicialmente pelas práticas, características biológicas e indumentárias tratadas de maneira generificada, e, em concomitância, a ditadura que se instala sobre o nosso corpo, apagando-nos dos espaços de construção da cidadania, como educação, saúde e empregabilidade.
Ao pensar na ditadura normativa que interfere na livre experiência de gênero das travestis, não há como não trazer novamente ao debate a invasão e destruição iniciada na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no último dia 8 de janeiro, em que o principal argumento dxs terroristas bolsonaristas continua sendo “pela família”, como uma identidade coibida que assume seu desejo de oprimir e matar outras pessoas, e por isso aterroriza antidemocraticamente o país.
O sentido identitário da afirmação “pela família” também lembra-nos que na ditadura vivida desde sempre pelas travestis, quase nenhuma tem o acolhimento de suas famílias cisgêneras de origem. Para muitas de nós, nossas famílias são as pessoas que encontramos no decorrer do caminho de fuga das violências; pessoas que, em determinado grau, também foram personificadas com a materialização do gênero e da sexualidade, e nos encontraram em caminhos convergentes.
Pensar o significado de um corpo cuja identidade de gênero desvia de suas expectativas iniciais ao nascimento, é compreender como um sistema de representação captura nossa existência e coloca-nos diante de uma monstruosidade assustadora, inclusive para nós mesmas, que somos desumanizadas diante da cisgeneridade. Isso porque a cisgeneridade nunca esteve preocupada com o tom das acusações maldosas sobre nós, nem como isso poderia reverberar em nossas vidas. Pelo contrário, os tentáculos cisgêneros sempre desejaram veementemente suas tomadas de poder.
Em um contexto brasileiro em que a maioria dos crimes sexuais são causados por homens cisgêneros familiares às suas vítimas, ter a existência travesti perpassada pela constante desconfiança de má índole, como um atentado contra a “família”, produz a recusa, o medo e constrangimento de frequentar um banheiro público com o gênero ao qual nos sentimos confortáveis, porque poderá haver alguém cisgênero que nos observará com espanto, como quem lança pelo olhar uma cortina de fumaça ideológica sobre vítimas do sistema de gênero. Ser travesti significa lidar com a ideia de que para muita gente cis, nós somos as culpadas pelas violências que vivemos.
Nossa luta é pelo uso do banheiro, por ser considerada legítima em nossa expressão de gênero, mas é, também, principalmente, pela retomada, fortalecimento e significação de uma cultura cidadã, que deve buscar exercer e dar sentido fidedigno ao bem-estar social e dignidade das pessoas trans.
A estrutura de significados não fica só sobre o corpo, ela também se adequa à estruturação da linguagem enquanto uma infinidade de palavras que dão sentido aos pensamentos, as vestimentas e à arquitetura de gênero da sociedade, assim como de um banheiro.
Como citar este artigo:
TRAVESTI, Florence Belladonna; ALVES, Jô / Jonas Alves da Silva Junior. A CORRIDA CONTRA O TEMPO: O QUE SIGNIFICA SER UMA TRAVESTI? Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias:
Sara Wagner York, Felipe Carvalho, Edméa Santos, Marcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel.