TRANSFEMINISMO: AS VOZES DO TRAVIARCADO
Por Letícia Carolina Nascimento
É mulher travesti, negra, gorda e piauiense. Filha de Mãe’Ude e Mãe’Glai, neta de maranhenses, é irmã e tia. Ekedy no terreiro-escola Ilê Asê Oba Oladeji, Filha de Xangô e Oyá. Feiticeira decolonial de devires e bruxa mestiça da Sociopoética. Pedagoga e Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutoranda em Educação (UFPI). Autora do livro Transfeminismo, na Coleção Feminismos Plurais coordenada por Djamila Ribeiro, traduzido para o francês com o título: "Le transféminisme: genres et transidentités" pela Editions Anacaona. É ativista social atuando junto a coordenação executiva nacional do FONATRANS. Pesquisadora vinculada ao NEPEGECI/UFPI, a RIMAS/UFRPE, e a ABPN.
O livro Transfeminismo foi escrito a convite de Djamila Ribeiro, que é coordenadora da Coleção Feminismo Plurais, um projeto de democratização das epistemologias negras e feministas no país. A obra foi lançada em maio de 2021 virtualmente em plena pandemia e desde então já ultrapassou a marca de 5 mil cópias vendidas, sendo traduzido para o francês com o título: "Le transféminisme: genres et transidentités" pela Editions Anacaona.
Escrevi o livro como uma pitonisa, rachei minha corpa para ser um oráculo que ecoasse as vozes de tantas travestis, minha função nunca foi a de conferir voz a nenhuma delas, todas gritam insistentemente pelo menos desde que a colonização começa nessas terras Tupiniquins, em nossa Pindorama, nessa grande Abya Yala. A questão, já nos explicou a teórica indiana Gayatri Spivak (2010), não é se as pessoas subalternas podem falar, mas, sim se elas podem ser ouvidas.
A artista multidisciplinar trans, Hilda de Paulo (2022), afirma que “Não é esperada a intelectualidade das pessoas trans”, as pessoas não esperam que nos publiquemos livros ou artigos científicos, ou mesmo textos. Acredito, que a categoria epistemicídio tão bem debatida pelo feminismo negro, também sirva para percebemos que pessoas trans* e travestis não são reconhecidas como produtoras de epistemologias, pelo contrário, são meras informantes para a ciência colonial.
Desde o lançamento do livro, alguns pesquisadores cis perceberam a ausências de alguns estudos produzidos por outras pessoas cis, anteriores ao meu trabalho que não constam como referências na obra. A resposta é muito simples, do mesmo modo que nenhum pesquisador cis precisa explicar, por quais motivos não cita o trabalho de pessoas trans, eu também não sinto nem o dever de explicar, tampouco o dever de citar quaisquer pessoas cis. Minha escolha não é arrogância ou desconhecimento, é política.
Na contramão de referendar trabalho de pessoas cis sobre nós eu busquei força junto ao quilombo epistêmico de travestis, vasculhei os mais diversos textos produzidos por minhas irmãs, além de inúmeros diálogos virtuais, longas conversas, troca de mensagens, não é desproporcional afirmar que se sigo viva, em razão das redes de afeto e saberes que tenho estabelecido. Além de minhas irmãs trans*, também mergulhei nos afetos produzidos pelo feminismo negro cisgênero, inúmeros diálogos são possíveis quando temos disposição para fazê-los.
Em meu processo de escrita para o livro busquei apresentar as contribuições do Transfeminismo para o alargamento da caixa de ferramentas políticas e epistemológicas do Feminismo. O Transfeminismo, possibilita a inserção de outras sujeitas dentro do feminismo, refutando qualquer essencialização e fixação da categoria gênero. A grande singularidade desta corrente é pensar o feminismo a partir das experiências de mulheres transexuais e travestis. As inúmeras correntes não existem para dividir o feminismo, mas para agrupar nossas diferentes singularidades, opções epistemológicas, metodológicas, éticas e políticas. Toda transfeminista, é também feminista.
Apesar de na obra ser recorrente o uso das identidades travestis e mulheres trans*, considero importante a categoria Transgeneridade, entendendo-a como um termo guarda-chuva capaz de abarcar inúmeras experiências que vivenciam um desacordo com o modo binário a partir do qual o gênero é constituído, numa percepção dualista de gênero como decorrência natural dos genitais (sexos). Ao nascer as pessoas são definidas a partir de um gênero, masculino ou feminino, as pessoas que se identificam com essa nomeação são cisgêneras. O termo Transgeneridade, acabo sendo insuficiente, mas em alguns momentos úteis para falar de nossas experiências coletivas. Insuficiente, pois pode produzir o apagamento de algumas identidades historicamente desprezadas e marginalizadas, como a identidade travesti.
Ao marcar o termo trans* com um asterisco me junto a outras autoras trans* para chamar atenção ao fato de que esse termo está sendo usado de modo generalista, englobando uma série de identidades transgêneras: travestis, transexuais, mulheres e homens transgêneros, pessoas transfemininas e transmasculinas e pessoas não-binárias. Sabemos, que essa opção, pode recair mais uma vez em uma rasa universalização, por isso, utilizo em alguns momentos e sempre que possível nomeio de forma concreta as identidades as quais me refiro. Nesse processo, entendo que o Transfeminismo pode atravessar as experiências de todas as pessoas trans*, todavia, no livro me refiro de modo mais íntimo às possibilidades de diálogo a partir das experiências de mulheres transexuais e travestis.
Pensando criticamente os termos utilizados trago na obra também alguns conceitos que despertaram, desde o início, a curiosidades de muites leitoriês. Numa perspectiva epistemológica subversiva esses outros conceitos emergem e se fundamentam a partir de releituras das trajetórias políticas e epistemológicas dos feminismos. Conceitos como mulheridades e outreridades emergem com possibilidades de desestabilizar, pluralizar e incorporar movimento a conceitos por vezes estáticos e limitados, a leitura nesse sentido, possibilita a ampliação dos horizontes feministas.
Sobre o conceito de mulheridade e feminilidades destaquei quando entrevista pela Revista Galileu que
Eu utilizo esses conceitos para apontar o processo de fabricação de nós mesmas, entendendo que não somos mulheres nem femininas naturalmente e que a mulheridade e a feminilidade não são categorias de gênero únicas, nas quais todas conseguimos nos encaixar. Isso porque existem diversas formas de sermos mulheres. A imagem de “mulher” ao qual estamos habituadas é apenas uma dessas formas, que foi construída por uma cultura europeia, burguesa, branca e cristã imposta a nós.Para que esses padrões não nos limitem, o feminismo nos ajuda a subverter ideais de mulheridade, que estão relacionados à aparência do nosso corpo, e de feminilidade, associados aos estereótipos de gênero e ao que são considerados “comportamentos femininos”. Entre pessoas transgêneras, é comum que nem todas reivindiquemos ser mulheres, mas reivindicamos, sim, uma feminilidade, uma vivência feminina, pois dialogamos com esses estereótipos. Todos e todas nós, em certa medida, tecemos um diálogo com esses padrões (NASCIMENTO, 2021, s/p).Nesse sentido, tenho dito constantemente que não somos mulheres, de outro modo produzimos constantemente mulheridades. Nisto, não pretendo acabar com a categoria “mulher”, este termo identitário segue sendo uma importante ferramenta política, contudo, se o trabalho com identidades é fundamental no processo de construção de políticas públicas, epistemologicamente falando é crucial que desestabilizemos toda e qualquer categoria. “Ser mulher” é um processo, não é uma essência. Assim, como feminilidade que não está nem exclusivamente, nem naturalmente associada a categoria “mulher” ou mulheridades. É possível ser mulher e não ser feminina, o oposto é igualmente verdadeiro, é possível ser feminina e não ser mulher. Bem como, podemos ser mulheres e femininas.
Sobre a categoria Outreridades, em entrevista para diversos professoriês que organizaram o dossiê “A era do Traviarcado”, ponderei que
A categoria outreridades é uma releitura transfeminista das análises apontadas por Beauvoir e Kilomba, é atravessada pela interseccionalidade, o foco principal é destacar que não somos a Outra apenas em relação a um, ou dois sistemas de dominação. Então eu sou a Outra para a cisgeneridade, para o machismo, para a branquitude, para a burguesia, para o norte global, para o sul-sudeste nacional, para o padrão estético magro. Deste modo eu não sou a Outra, possuo outreridades que produzem vulnerabilidades diversas dentro de um regime colonial que articula classe, raça e gênero como eixos estruturantes de opressão e hierarquização social. Além disso, a ideia da Outra, da Outra, da Outra, não me parecia atrativa, a possibilidade instaura uma ordem, uma linearidade, eu prefiro pensar em encruzilhada, em movimento, vários conceitos no livro Transfeminismo são pensados de maneira movediça e não fixa (NANTES; NASCIMENTO, 2021, p. 15).Assim, como o conceito de mulheridades, o de Outreridades se estrutura na obra a partir dos encontros que realizo com os diferentes feminismos, são, portanto, releituras transfeministas. Do mesmo modo, a breve genealogia que faço sobre o conceito de gênero, tem por interesse exatamente apresentar o modo como nós, transfeministas, entendemos gênero, de uma maneira não inexoravelmente vinculado a biologia, nesse processo cultura e “natureza” se atravessam.
Historicamente o feminismo a partir da categoria gênero tem buscado desnaturalizar as experiências de opressão vividas pelas mulheridades e feminilidades, nesse contexto, a abertura do feminismo para experiências que subvertem a ordem compulsória entre sexo-gênero e/ou não binárias é uma consequência direta dos esforços de diversas feministas, que compreendem a produção de nossas mulheridades, feminilidades e corporalidades a partir de uma arquitetura cultural e política.
O livro já foi resenhando algumas vezes, a Profa. Dra. Lorena Araújo de Oliveira Borges (FALE/UFAL), afirma que “Transfeminismo é, com toda certeza, uma obra de entrada nas epistemologias trans* [...]. (BORGES, 2021, p. 173). O cientista social, João Victor Rossi (UFGD) diz: “Considero esta obra um manual teórico & político (ROSSI, 2021, p. 118.). Em resenha publicada na renomada Revista Estudos Feministas, a jornalista Ana Paula Veloso Silveira Teodoro Rodarte (Unesp), afirma que na obra “Letícia Nascimento (2021) narra suas vivências emaranhadas às de outras mulheres transexuais e travestis, em um movimento de busca por visibilidade e autodeterminação de todas elas.” (RODARTE, 2021, p. 3). Em recente, resenha publicada pela pesquisadora transfeminista, Brume Dezembro Iazzetti, afirma que
Dito isso, Nascimento nos oferece não apenas um aparato teórico complexo, apresentado de modo didático e instrumentalizado, e um conjunto de pautas sociais urgentes a partir dos feminismos: a autora ainda nos abre caminhos potentes em ambos os sentidos, para pensarmos sobre transfeminismos (e além) em seu âmago, conforme nos propõe Collins, tanto provocando questões para nossas pesquisas e produções, quanto expandindo possibilidades de diálogos e alianças em um sentido de construção e transformação coletiva (IAZZETTI, 2022, p. 10).Escrevo essas breves linhas a convite da querida Sara York, com muita alegria pela circulação não apenas da obra Transfeminismo, mais de tantas ideias produzidas por todas nós. Ainda há muito o que se fazer para sensibilizar as pessoas sobre a importância de ler e referenciar o trabalho epistemológico desenvolvido por pessoas transvestigêneres. O feminismo se fortaleceu com as redes de diálogos autênticos, ainda é necessário insistir nas possibilidades de pensarmos nossas diferenças de modo crítico e aliançado. Que as vozes de travestis sigam ecoando, viva o Traviarcado!
Referências
BORGES, L. A. de O. NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021. 192 p. ISBN 978-65-87113-36-4. Cadernos De Linguagem E Sociedade, 23(1), 2022,169–173.
IAZZETTI, Brume Dezembro. Por uma teoria e prática transfeminista interseccional. Rev. antropol. (São Paulo, Online). v. 65 n. 2. 2022.
NANTES, Flavio Adriano; NASCIMENTO, Letícia Carolina. Diálogos TRANSversais: a Travesti quer um beijo. Rascunhos Culturais, v. 12, n. 24, 2021.
NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021
RODARTE, Ana Paula Veloso Silveira Teodoro. “Transfeminismo: vivências, (r)ex(s)istências e autodeterminação”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, 2022.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. UFMG, 2010.
Como citar este artigo:
NASCIMENTO, Letícia Carolina. TRANSFEMINISMO: AS VOZES DO TRAVIARCADO. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias:
Sara Wagner York, Felipe Carvalho, Edméa Santos, Marcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel.