A insegurança alimentar de pessoas trans e travestis: adotando uma perspectiva ecotransfeminista para pensar a transfobia ambiental

2023-01-21

Por Ariel Barreto da Silva

Homem transgênero, tatuador e licenciado em Educação do Campo pelo Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior da Universidade Federal Fluminense (INFES/UFF). É pesquisador do Grupo de Pesquisa C.U.I.R. (Cultivando Utopias, Insurgências e Revoluções) da mesma Universidade.


Por Fabio A G Oliveira

Professor de Filosofia do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior da Universidade Federal Fluminense (INFES/UFF). Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) e do Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGEn), ambos da mesma Instituição. Coordenador do Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA) e do Grupo de Pesquisa C.U.I.R. (Cultivando Utopias, Insurgências e Revoluções).

Adotando uma perspectiva ecotransfeminista

O ecofeminismo é o nome dado a todo conjunto de teorias e práticas que discute gênero e questões ambientais de forma imbricada. Sua abordagem conceitual por vezes é apresentada de forma cronológica e linear, sendo a primeira autora a forjar esse termo para sistematizar a preocupação das causas e efeitos ambientais a pensadora francesa Françoise D’Eaubonne, em Le Féminisme ou la Mort (1974). Desde então, algumas ecofeministas, principalmente aquelas situadas no Sul Global, têm utilizado o termo no plural, destacando justamente a diversidade de teorias com as quais o pensamento ecológico e feminista tem estabelecido diálogos (Rosendo e Kuhnen, 2019). Reconhecendo a importância dos ecofeminismos, neste breve artigo propomos e apontamos para a necessidade da adoção de um ecotransfeminismo. A importância, bem como a justificativa para a proposição de uma perspectiva ecotransfeminista será apresentada a seguir, a partir de um tema central para o debate socioambiental atual: a insegurança alimentar que acomete desproporcionalmente pessoas trans e travestis.

Antes disso, entretanto, é importante mencionar o trabalho de Anja Koletnik, uma intelectual e ativista transfeminista queer eslovena que, há alguns anos, tem chamado a atenção para a necessidade de aproximação entre as discussões e propostas transfeministas e o ecofeminismo. Para Koletnik (2017), posicionar a perspectiva transfeminista no debate do ecofeminismo faz com que, necessariamente, tenhamos que reconhecer o caráter político que atravessa as questões socioambientais como um todo, no qual a alimentação é peça-chave. Embora Koletnik reconheça que esse trabalho vem sendo desenvolvido com bastante vigor pelas diferentes correntes ecofeministas, para a autora há uma forte tendência de algumas leituras ecofeministas em trabalharem com concepções cisheteronormativas e binárias das categorias gênero e sexualidade (YORK, 2020). Para tal, a autora acompanha as críticas de Greta Gaard (2011) que sugerem a necessidade de queerificar o ecofeminismo.

Pensar esse debate no contexto de um país localizado na região em que o custo para uma alimentação saudável é o mais alto do mundo e que voltou para o mapa da fome é fundamental para que os números alarmantes de pessoas vivendo sob insegurança alimentar possam ser compreendidos[1]. Afinal, quem são essas pessoas? Para isso, apresentamos a seguir tanto uma discussão teórica quanto dados atualizados sobre a insegurança alimentar e, em seguida, parte de uma pesquisa qualitativa realizada em 2022 no interior do estado do Rio de Janeiro, mais especificamente no Noroeste Fluminense, onde identificamos ocorrências específicas da insegurança alimentar (de grau e tipo) que assola, em especial, pessoas trans e travestis residentes em regiões empobrecidas. A esse resultado daremos o nome de transfobia ambiental

Destacamos, contudo, que o ineditismo desta pesquisa a torna, evidentemente, preliminar. Reconhecemos, por isso, a necessidade de ampliarmos e aprofundarmos os estudos para, de fato, consolidar a perspectiva ecotransfeminista aqui proposta, bem como aprofundarmos a denúncia da transfobia ambiental. 

Contextualizando a questão da insegurança alimentar

Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan, 2022), a insegurança alimentar é uma realidade vivida por 125,2 milhões de pessoas no Brasil, sendo mais de 33 milhões em situação de fome (insegurança alimentar grave). Tais dados precisam ser pensados desde um prisma multifatorial que evidencie as diferentes razões que, combinadas, resultam em uma realidade que coloca em risco o direito humano à alimentação adequada (DHAA) e, consequentemente, a segurança e integridade alimentar. Por integridade e segurança alimentar compreendemos

na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.  (BRASIL, 2006, Art. 3º, da lei 11.346).

É diante dessa compreensão como parte constitutiva da justiça social que observamos no Guia Alimentar para a População Brasileira[2], publicado pelo Ministério da Saúde em 2014, o compromisso de reconhecer e superar os obstáculos para uma alimentação saudável. Tais obstáculos incluem os preconceitos e discriminações que atuam de modo a constranger ou impedir que alguns grupos sociais acessem as orientações para a chamada “comensalidade”. Por “comensalidade” entende-se todo o aspecto social, cultural, econômico, político e ético em torno da mesa. Trata-se, nesse sentido, do mapeamento não somente do acesso, mas do convívio em torno da comida. Ou seja, é importante compreender não somente o que se come, mas as condições para se comer, incluindo a possibilidade de se comer em companhia e em ambientes saudáveis e seguros.

É considerando tais aspectos que em 2021, durante a pandemia do COVID-19, o Conselho Regional de Nutricionistas 1ª Região elaborou o Guia de Cuidado e Atenção Nutricional à População LGBTQIA+[3]. A necessidade de um Guia dedicado exclusivamente à população LGBTQIA+ torna-se premente em razão de diferentes motivos, tais como aqueles encontrados e mapeados pela pesquisa “diagnósticos LGBTI+ na pandemia 2021: desafios da comunidade LGBTI+ no contexto de continuidade do isolamento social em enfrentamento à pandemia de Coronavírus”[4], realizada pelo Coletivo #VoteLGBT e pelo Box1824. Neste estudo, foram apresentados dados nacionais de como a comunidade LGBTI+ no Brasil foi afetada na pandemia.

A referida pesquisa revelou três principais fontes de agravamento: vulnerabilidade financeira; piora da saúde mental e afastamento da rede de apoio, sendo a população trans e travesti a mais afetada[5]. A pesquisa ainda apresentou que 6 em cada 10 pessoas LGBTI+ tiveram a renda diminuída ou ficaram sem renda desde o início da pandemia, dentre as quais pessoas negras, mulheres cisgêneras e pessoas trans e travestis apresentaram ainda mais vulnerabilidade econômica. Pessoas trans e travestis informaram, inclusive, que a falta de acesso ao trabalho foi uma dificuldade que aprofundou ainda mais suas condições de vulnerabilidade social, resultando na dificuldade de pagar as contas, bem como de se alimentar. A pesquisa expõe também que 41,53% da população LGBTI+ vive sob condições de insegurança alimentar, sendo o percentual ainda maior quando analisado exclusivamente o grupo de pessoas trans e travestis: 56,82%.

Diante desse primeiro mapeamento nacional, apresentamos a seguir a pesquisa realizada com pessoas trans e travestis do interior do estado do Rio de Janeiro.          

Insegurança alimentar de pessoas trans e travestis no noroeste fluminense (RJ)

Para a realização desta pesquisa, em que buscamos identificar a situação de (in)segurança alimentar e nutricional das pessoas trans e travestis residentes do noroeste fluminense, adotamos um estudo em forma de pesquisa qualitativa. Para tal, foi elaborado um questionário semiestruturado com 25 perguntas. A coleta de dados foi realizada através da plataforma online Google Forms pelo link (já desativado), que ficou aberto entre os dias 15 de dezembro e 27 de dezembro de 2022.

Do total das pessoas LGBTI+ entrevistadas, 10,3% se autodeclararam trans ou travestis. Delas, 66,7% dividem casa/apartamento com mais de duas pessoas e apenas 33,3% vivem só. Além disso, das pessoas trans e travestis entrevistadas, 33,3% responderam não possuir nenhuma ocupação. Das entrevistadas que trabalham, 66,7% não possuem carteira assinada, ou seja, exercem alguma atividade remunerada informal.

Destacamos que 100% das pessoas trans e travestis entrevistadas responderam ter sofrido diminuição do poder de compra durante a pandemia, sendo 66,7% reconhecendo algum tipo de comprometimento em sua rotina alimentar. Delas, 33,3% manifestaram ter sentido dificuldade financeira para repor um alimento em sua dieta diária, bem como incluem produtos ultraprocessados eventualmente como forma de reposição de alguma refeição. Destacamos, contudo, que a média brasileira é de 58,7% (Rede Penssan). A conclusão dessa pesquisa preliminar é a de que, sendo uma pessoa trans e travesti em Santo Antônio de Pádua, a chance de se viver em situação de insegurança alimentar e nutricional supera em aproximadamente 38% a média nacional de um cidadão brasileiro.

Considerando que as condições socioambientais impactam sobremaneira as condições alimentares, tal qual observa o Guia de Cuidado e Atenção Nutricional à População LGBTQIA+, ao se referir às condições de vida e saúde, é possível afirmar que a situação de pessoas trans e negras ainda é mais preocupante. Afinal, trata-se da população com o menor poder de compra, fruto do racismo e transfobia que comumente se encontram nos corpos de pessoas trans negras.

Destacamos também que ao final do questionário, as pessoas participantes responderam se elas se consideravam em situação de insegurança alimentar. Embora 100% tenha respondido ter sofrido diminuição de seu poder de compra durante a pandemia, 66,7% respondeu que não se percebe em uma situação de insegurança alimentar.

Tais dados revelam que, embora boa parte das pessoas trans e travestis participantes da pesquisa tenha observado sua dieta cotidiana prejudicada pelo contexto da pandemia e reconhecido dificuldade de repor o alimento da sua dieta diária, a maior parte das pessoas entrevistadas não se perceberam em insegurança alimentar. Provavelmente esse dado é fruto da necessidade de um debate público sobre a insegurança alimentar e como ela atinge de forma insidiosa a população trans e travesti quando comparada com o cenário da insegurança alimentar nacional que, embora catastrófico, parece ser ainda pior quando se é uma pessoa trans e travesti. Neste sentido, compensa destacar que das pessoas trans e travestis entrevistadas, 66,7% delas vivem em bairros considerados periféricos; bairros acometidos com frequência pelos chamados “desastres ambientais”, tais como o caso anual do transbordo do rio Pomba em Santo Antônio de Pádua. A esses aspectos multifatoriais que desembocam na insegurança alimentar, damos o nome de transfobia ambiental.

Evidencia-se, ainda, que boa parte da compreensão da segurança alimentar e nutricional estabelecida pelo Guia Alimentar da População Brasileira é cisnormativa; ou seja, não prevê corpos de pessoas trans e travestis e as situações de transfobia ambiental que atravessam suas experiências cotidianas. Eis a importância da discussão sobre segurança alimentar e nutricional da população trans e travesti ser pensada, discutida e pautada dentro de uma concepção mais abrangente ecofeminista, que aqui nomeamos e apontamos como ecotransfeminista. O ecotransfeminismo torna-se, portanto, não somente uma teoria, mas uma metodologia de análise fundamental capaz de identificar e analisar (buscando superar) os casos de incidência de transfobia ambiental, dentre os quais a insegurança alimentar das pessoas trans e travestis é elemento crucial para o enfrentamento dos processos de preconceito e discriminação que colocam em xeque diária e sistematicamente a implementação do direito básico à vida digna.

 

Referências bibliográficas

 

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 2006. Acesso em: 30 set. 2022.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia alimentar para a população brasileira. Ministério da Saúde, 2014.

 CONSELHO REGIONAL DE NUTRICIONISTAS 1ª REGIÃO. Guia de cuidado e atenção nutricional à população LGBTQIA+. 2021. Acesso em: 4 de jan. 2023.

COLETIVO #VOTELGBT E BOX1824. Diagnósticos LGBTI+ na pandemia 2021: desafios da comunidade LGBTI+ no contexto de continuidade do isolamento social em enfrentamento à pandemia de Coronavírus. Acesso em: 4 jan. 2022.

D'EAUBONNE, Françoise. Le féminisme ou la mort (Vol. 2). Horay, P, eds, 1974.

FAO

GAARD, Greta. Rumo ao ecofeminismo queer. Seção Temática Ecofeminismo e Ecologias Queer • Rev. Estud. Fem. 19(1). Abr, 2011

KOLETNIK, Anja. Ethical transfeminism: transgender individuals narratives as contributions to ethics of vegetarian ecofeminisms. In: Women and nature? Beyond dualism in Gender, Body and Environment. VAKOCH, Douglas; MICKEY, Sam (Ed.). Routledge, 2017.

REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Acesso em: 23 out 2022.

ROSENDO, Daniela., KUHNEN, Tania.. Ecofeminism. In: Leal Filho, W., Azul, A., Brandli, L., Özuyar, P., Wall, T. (Orgs.), Encyclopedia of the UN sustainable development goals (pp. 1-12). v. 1. Springer International Publishing, 2019.

YORK, Sara Wagner; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista Estudos Feministas, v. 28, 2020.


[1] Ver. Acesso em: 19 de janeiro de 2023.

[2] Ver. Acesso em: 4 de janeiro de 2023.

[3] Ver. Acesso em: 4 de janeiro de 2023.

[4] Ver. Acesso em: 2 de janeiro de 2023.

[5] Todos esses impactos, segundo a pesquisa, possuíam algum tipo de relação, segundo entrevistados, com a política do governo (2019-2022) de Jair Messias Bolsonaro, publicamente homolesbotransfóbico.

 

Como citar este artigo:

SILVA, Ariel Barreto da; OLIVEIRA, Fabio A, G. A insegurança alimentar de pessoas trans e travestis: adotando uma perspectiva ecotransfeminista para pensar a transfobia ambiental. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel