Cotas trans: breves reflexões sobre fraudes

2023-01-17

Por Jonas Maria

É formado em Letras (UFSJ) com especialização em semiótica. Escreve crônicas e tem três contos publicados, sendo dois deles voltados ao público infanto-juvenil. Além de escritor, é podcaster e youtuber, cujas principais temáticas são gênero, transexualidade e cinema. Coordena o Texto Junkies, clube de livros que promove a leitura e discussão de obras que envolvem pessoas trans.


Segundo os dados do Projeto Além do Arco-Íris/AfroReggae, também divulgado no relatório da ANTRA, 70% da população trans não concluiu o ensino médio e apenas 0,02% estão no ensino superior. A ANDIFES igualmente realizou uma pesquisa envolvendo 78% da rede nacional de ensino e seus dados mostram que apenas 0,2% dos estudantes se identificam como homens e mulheres trans e 0,6% como pessoas não binárias. 

Não há necessidade de nos prolongarmos com números, basta que nos perguntemos: com quantas pessoas trans eu já estudei? Quantas já me deram aulas? Quantas travestis são médicas? Quantos homens trans estão em posição de destaque e prestígio? Sim, é verdade que pessoas trans estão em menor número na sociedade, parece "natural" que você viva sua vida sem nunca esbarrar em alguém trans,  mas também é verdade que em toda cidade, seja capital ou interior, tem uma esquina, e essa esquina tem uma travesti se prostituindo. Coincidência? Sabemos que não. 

Se entendemos que o objetivo das ações afirmativas é o de promover a representação e inserção de pessoas que pertencem a grupos sociais que têm sido subordinados ou excluídos, então faz-se necessária a inserção da população trans no sistema de cotas (YORK, 2020). Cotas, essas, que são uma necessidade urgente, pois embora não resolvem completamente o problema, afinal muitos de nós sequer chegam ao ensino médio, podem nos ajudar a inserir mais pessoas no ensino superior e como consequência, no mercado formal de trabalho. Algumas universidades (UFBA, UFSB, UFABC dentre outras) já oferecem cotas voltadas às pessoas trans de baixa renda. 

No entanto, é comum vermos, especialmente em redes sociais, pessoas se posicionando contra e questionando como uma instituição pode provar quem é trans e quem não é. Ora, se apenas a própria pessoa pode-se dizer trans ou não, por que não me autodeclarar trans e conseguir uma vaga na universidade também? Quem pode dizer que não sou o que digo ser?  Para essas pessoas, a transexualidade não passa de uma abstração. 

Com isso em vista, nesse texto proponho algumas reflexões sobre como podemos evitar fraudes, sempre tendo em mente que é importante que esse debate seja construído coletivamente, com todas as instituições e pessoas responsáveis e interessadas envolvidas. 

A autodeterminação 

A autodeterminação de pessoas trans é frequentemente vista com descrença ou deboche por pessoas que seguem discursos moralizantes, patológicos ou religiosos. Contudo, esse é um conceito que é muito caro à população trans, uma vez que historicamente não possuíamos o direito de falarmos por nós mesmos e precisávamos nos submeter a procedimentos que ou não queríamos, ou não estavam disponíveis. Como Letícia Nascimento argumenta em seu livro Transfeminismo: 

O conceito de autodeterminação nos coloca como protagonistas de nossas experiências subjetivas, retirando a autoridade que, na sociedade vigente, ainda está tutelada por instituições médicas, jurídicas, religiosas e estatais, que nos delimitam em uma condição subalterna, patológica, criminosa e imoral. Quando os corpos trans* assumem processos de produções discursivas sobre suas subjetividades e passam a rechaçar o pensamento colonizador e os processos de patologização. 

É com base na noção de autodeterminação que as universidades que oferecem cotas para pessoas trans geralmente oferecem um documento que deve ser assinado pela pessoa, com o nome social, onde ela afirma ser trans. Caso se descubra que não é, isso se enquadra como crime de falsidade ideológica e a pessoa perde a vaga na universidade.

No edital de 2020 da UFSB, é dito que: 

Ratifico serem verdadeiras as informações prestadas, estando ciente de que a informação falsa incorrerá na pena criminal do art. 299 do Código Penal (falsidade ideológica), além de, caso configurada a prestação de informação falsa, apurada posteriormente ao registro acadêmico, em procedimento que assegure o contraditório e a ampla defesa, ensejará o cancelamento de meu registro na Universidade Federal do Sul da Bahia, sem prejuízo das sanções penais cabíveis (art. 9º, Portaria Normativa MEC nº 18/2012). 

E retomamos a indagação: mas como uma universidade terá condições de provar que alguém não é trans, caso haja suspeita de fraude? 

Estabelecendo critérios 

Se o único documento oficial que a universidade pede é a assinatura da autodeclaração, então ela não só pode vir a ter uma dor de cabeça, como ela também pode fracassar em assegurar essa conquista para quem de fato precisa. Eu acredito que assinar um documento pode não ser o suficiente. O que fazer então? 

Vou começar falando o que a universidade não pode fazer: 

  1. Exigir laudos: isso é um problema porque ignora que o movimento trans está há anos lutando pela despatologização da nossa identidade. 
  2. Estabelecer critérios que definem quem é ou não uma pessoa trans. Por exemplo: exigir que a pessoa tenha se hormonizado e operado. Isso é um problema em vários níveis: primeiro porque não é papel da universidade estabelecer isso; segundo porque ignora muitas realidades trans que não conseguem ter acesso a essas modificações e terceiro porque estabelece um padrão de como ser trans e qual tipo trans merece ou não essa vaga, isso é problemático e apaga a nossa pluralidade. 

Então quem vai provar quem é trans e quem não é? Digo, em consonância a York (2020) que deve ser a própria pessoa. Quem é trans de fato, tem condições de se "provar" trans, afinal, pessoas trans, como qualquer pessoa, possui uma vida social que pode ser consultada, seja por amigos, familiares, colegas de trabalho ou escola; Há uma vida online que também pode ser verificada. A maioria de nós está nas redes sociais e produzimos materialidade sobre nós mesmos;

Há documentos. E quando falo em documentos, não me refiro a laudos, lutamos por anos para que não precisássemos apresentá-los, mas há que possa apresentar, há vários outros, por exemplo: quem é retificado pode apresentar um comprovante de retificação, se não for, pode apresentar o nome social no RG, no CPF, em cartões do banco, em carteirinhas de estudante, em certificados de cursos que a pessoa fez etc.

Algumas pessoas trans também carregam essa marca no corpo, através de hormonização ou de cirurgia. "Nossa, Jonas, mas a pessoa vai ficar pelada pra verificarem?". Não. Quando nos operamos, recebemos um comprovante do cirurgião. Quando você se hormoniza, você tem um médico que te acompanha.

Enfim, quem é trans, possui um histórico que pode ser apresentado e que comprova que ela de fato é trans.

Portanto, não cabe à universidade estabelecer o que ela quer, mas solicitar, além do documento da autodeclaração, que a própria pessoa apresente "provas" que alicercem sua regulamentação nesta vaga que é fruto de tantas lutas. 

Possíveis queixas 

"Nossa, mas eu tenho que provar que eu sou trans para uma instituição? Isso é transfobia!". Não é. Numa situação como essa, onde estamos falando de políticas públicas, isso não só precisa ser feito, como também é desejável. Isso não coloca em jogo a identidade da pessoa trans, não é se você é trans ou não, mas sim se você se enquadra nos critérios para essa ação afirmativa propria a quem não pode chegar até esse espaço no mesmo tempo que pessoas cis.

"...mas eu me entendi trans esse ano! Eu não tenho um histórico ou registros sociais ainda, como fazer?". Então você, enquanto pessoa trans, preocupada com o coletivo, que inclusive está interessada em usufruir dessa ação, deve reconhecer a importância dela e  de como precisamos estabelecer critérios mais rígidos para que a gente não a perca e nem seja tapeado por pessoas maliciosas. Se você não tem o que apresentar, não tem documentos, não tem amigos trans, não tem nada, então essa vaga, talvez, não seja para você nesse momento.

Em uma nota lançada pela ANTRA sobre esse assunto, é dito que:

Cabe mencionar que não são para toda e qualquer pessoa trans, de forma indiscriminada, que essa política se destina. São necessários diversos olhares e a observação de contextos específicos para que a pessoa trans se torne elegível ao usufruto da política. Avaliando ainda a classe e contexto social, a forma com que a transfobia afeta diretamente o processo educacional da pessoa, as dificuldades que ela enfrenta no dia a dia por ser uma pessoa trans e como a sociedade se relaciona com seu corpo, sua identidade e expressão de gênero, no momento em que a presença da pessoa denuncia sua própria condição “abjeta” sem que a mesma precise verbalizar que se trata de uma pessoa trans.

Não é a identidade trans que está em questão, mas sim se a pessoa atende aos critérios, sendo que ela mesma é quem vai estabelecer quais são eles.

Essa é uma forma de resguardar nossas conquistas. Não podemos ser ingênuos e pensar que não há pessoas mal intencionadas que não vão se aproveitar disso. Vemos com frequência pessoas brancas fraudando cotas para pessoas negras.  Essa é uma medida preventiva, pois embora haja o documento que garanta que em caso de fraude a pessoa perca a vaga, polêmicas como essas podem nos trazer problemas, pessoas podem usar dos casos de fraude para argumentar contra, o coletivo pode perder a credibilidade, que tanto temos lutado por. E essa é uma conquista que precisa ser preservada.

 

Referências


ANTRA. Nota da Antra Sobre Cotas e Reservas de Vagas em Universidades Destinadas às Pessoas Trans. Dezembro, 2020.

BENEVIDES, Bruna G. NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019 – São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020.

FONAPRACE/ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos da IFES. Brasília: FONAPRACE/ANDIFES, 2019.

Grupo Cultural Afroreggae. InfoReggae Encontro Além do Arco-Íris, ed. 21 – Rio de Janeiro: Editora Afroreggae, 2014. 

NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA (BA). Edital nº 22/2020. Processo Seletivo Para Ingresso em Cursos do 2º Ciclo, Itabuna, n. 34, 14 set. 2020.

YORK, Sara Wagner. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des(a)fiando e ocupando os"cistemas" de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

 

Como citar este artigo:

MARIA, Jonas. Cotas trans: breves reflexões sobre fraudes Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Sara Wagner York, Felipe CarvalhoEdméa SantosMarcos Vinícius Dias de Menezes e Mariano Pimentel