“Outros profissionais, outras experiências: tensionamentos e perspectivas outras a partir do ingresso de pessoas trans e travestis no mercado formal de trabalho”
Jornalista, comunicadora, palestrante, LinkedIn Top Voices 2022 e Mulher trans
Não é mais novidade que o mundo do trabalho vem sofrendo uma série de transformações, desde as questões relativas aos modelos de trabalho – esse ponto em específico potencializado pela pandemia do COVID-19[1]-, passando pelo olhar cada vez mais atento à experiência da pessoa colaboradora, até chegar à valorização da agenda ESG, que trata das questões relativas aos campos social, ambiental e de governança dentro das corporações.
Um relatório publicado em 2019 pela consultoria empresarial americana, Mckinsey & Company, intitulado “Diversity Matters: América Latina”[2], mapeou o impacto da diversidade nas organizações latino-americanas de diferentes segmentos.
Ao todo, 700 grandes empresas, totalizando cerca de 4.000 pessoas colaboradoras, participaram do levantamento que concluiu, em linhas gerais, que as empresas que adotam a diversidade são mais inovadoras, colaborativas e rentáveis do que seus pares que não a adotam.
Seja por uma perspectiva social, no sentido de contribuir com a redução das desigualdades, seja por uma questão estritamente monetária, não dá mais para negar que diversidade e inclusão representam, hoje, impacto direto não só na percepção do público externo sobre as empresas, como também influenciam na receita das corporações ao redor do mundo.
Mas afinal de contas: quem são esses sujeitos e sujeitas que estão sob o guarda-chuva da diversidade e quais são as perspectivas e tensionamentos que a chegada dessas pessoas causa no ambiente de trabalho?
Pessoas negras, indígenas, com deficiência, mulheres, LGBTQIAP+, neurodiversos, 50+ são alguns dos recortes que compõem o espectro da diversidade.
Antes parcialmente ou totalmente excluídos do ambiente de trabalho formal, agora esses grupos, em proporções distintas, passam a ser alvo de ações afirmativas por parte das empresas, tanto em resposta às tendências de mercado, pautadas no S do ESG, quanto pelos tensionamentos e conquistas oriundos dos movimentos sociais, que potencializam as vozes de pessoas historicamente negligenciadas e esquecidas.
Dentre os grupos historicamente subalternizados está a população de pessoas trans e travestis, cujo ingresso no mercado formal de trabalho é de ordem extremamente recente, em função do processo de marginalização e estigmatização destinados a esses “corpos transitórios” (2021)
Em seu livro “Pedagogias das Travestilidades”, Maria Clara Araújo dos Passos, pedagoga e intelectual afrotransfeminista brasileira, discorre sobre o processo de autorreconhecimento das travestis e transexuais brasileiras como sujeitas de direito, no capítulo intitulado “Outras sujeitas, outras pedagogias”.
Segundo dos Passos (2022), ao contrário da população cisgênera, não é na escola que uma parte das travestis e transexuais se autorreconheceram como tal, mas sim através da atuação política que elas desempenharam/desempenham dentro dos movimentos sociais.
É a partir desta mesma correlação feita pela autora, no sentido de mostrar os outros caminhos trilhados por essas outras sujeitas e os resultados advindos desse movimento, que o presente texto visa discorrer sobre as outras experiências e perspectivas que emergem com a chegada desses “outros profissionais” ao mercado de trabalho, especialmente a população trans e travesti.
Da mesma forma que na academia tem se intensificado as disputas em torno das narrativas disseminadas e epistemologias produzidas, dada a gradativa mudança da posição de pessoas trans, antes resumidas a mero objeto de estudo, agora posicionadas como produtoras e produtores de conhecimento, o mercado de trabalho também tem sofrido influência dos corpos e existências que contestam a suposta norma e embaralham as fronteiras de gênero historicamente impostas.
Essa influência diz respeito tanto à noção de experiência da pessoa colaboradora, até então pensada sob uma ótica transexcludente, dado que os corpos trans e travestis não acessavam esses espaços, quanto os benefícios ofertados e políticas internas estabelecidas pelas corporações.
No campo da parentalidade, que surge em substituição às noções de maternidade/paternidade, como uma forma de fomentar a inclusão e abraçar os múltiplos arranjos familiares, expande-se, dentre muitas coisas, a compreensão da gravidez para além da mulher, tendo em vista que homens trans, transmasculinos, pessoas não-binárias e intersexo também podem engravidar, se assim desejarem.
Gravidez, desta forma, passa a ser assunto relativo às pessoas capazes de engravidar e não de um único grupo em específico.
É preciso salientar, entretanto, que essa expansão da compreensão em torno da gravidez não se restringe ao ambiente de trabalho, tampouco surgiu nele. Mas, sem sombra de dúvidas, impacta em vários aspectos do meio trabalhista, como, por exemplo, a noção de licença parental.
Também é verdade que a chegada de pessoas trans e travestis ao mercado de trabalho, especialmente nas empresas comprometidas efetivamente com a inclusão e diversidade, remodela as noções de benefícios estabelecidas.
Já há no mercado empresas que repensaram a política de benefícios, a fim de levar em conta a realidade desses outros profissionais e auxiliá-los, no caso da comunidade trans/travestis, com demandas específicas, como o processo de retificação do nome[3], terapia hormonal[4] e até cirurgias de modificação corporal, como é o caso da redesignação[5].
Além das mudanças dentro das empresas, diga-se de passagem, algo recente e em proporção tímida, profissionais trans e travestis também têm tensionado as noções sobre empregabilidade e futuro do trabalho dentro do Linkedin[6], a maior rede social corporativa do mundo.
Assim como nas universidades, esses profissionais vêm disputando esse espaço e produzido outras perspectivas sobre o mercado de trabalho, especialmente com foco na agenda da diversidade e inclusão.
Mas apesar desses avanços, pessoas trans e travestis com trabalho formal no Brasil seguem sendo mais exceção do que regra. Segundo dados da edição 2022 do dossiê anual publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), apenas 4% da população trans possui emprego formal no Brasil, 6% se encontram em atividades informais ou subempregos e 90% utilizam da prostituição como fonte primária de renda.
Dado esse cenário, é mais do que urgente que empresas e o poder público fomentem a capacitação e a empregabilidade de pessoas trans e travesti, de forma respeitosa e responsável.
“Contrate uma Travesti. Ajude em sua formação e qualificação. Pague por consultoria quando precisar de uma travesti para escrever sobre nós. Façam eventos, propagandas, filmes, peças ou qualquer coisa sobre nós, desde que haja travesti(s) participando efetivamente na equipe (YORK, OLIVEIRA, BENEVIDES, 2020, p. 9).
Se por um lado, como demonstrado no texto, a presença desses(as) profissionais no mercado é um catalisador de mudanças nas empresas, por outro os números são enfáticos e atestam a urgência de políticas e ações afirmativas com o objetivo de incluir e fomentar a empregabilidade trans e travesti no Brasil.
Referências
Corpos Transitórios: narrativas transmasculinas / organização Bruno Pfeil, Nathan Victoriano, Nicolas Pustilnick. – 1. Ed. – Salvador, BA: Diálogos, 2021.
PASSOS, Maria Clara Araújo dos. Pedagogias das Travestilidades / Maria Clara Araújo dos Passos. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.
YORK, Sara Wagner/GONÇALVES JUNIOR, Sara Wagner Pimenta; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES,Bruna. “Manifestações textuais (insubmissas) travesti”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e75614, 2020.
[1] Uma reflexão sobre o modelo de trabalho pós pandemia.
[2] Diversity Matters: América Latina.
[3] Ambev cria ação para retificar nomes de funcionários trans.
[4] IBM oferece a funcionários transgêneos subsídio para a terapia hormonal.
[5] Plano de saúde da Vale passa a cobrir cirurgia de redesignação sexual.
[6] Conheça 5 profissionais trans inspiradores que se destacam no LinkedIn.
Como citar este artigo:
FERNANDES, Nathália.“Outros profissionais, outras experiências: tensionamentos e perspectivas outras a partir do ingresso de pessoas trans e travestis no mercado formal de trabalho”. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.
Editores/as Seção Notícias:
Sara Wagner York, Felipe Carvalho, Marcos Vinícius Dias de Menezes, Mariano Pimentel e Edméa Santos