“Fiz e estou satisfeita”

2023-01-09
Por Luiz Morando
 Doutor em Literatura Comparada pela UFMG. Pesquisador autônomo e independente sobre memórias das identidades LGBTQIA+ de Belo Horizonte entre o período de 1946-1989. Autor dos livros Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque (Fino Traço, 2008) e Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (O Sexo da Palavra, 2020), além de artigos publicados em diversos periódicos e livros.

Para ilustrar e ser tomado como elemento para reflexão neste Mês da Visibilidade de Pessoas Trans e Travestis de 2023, trago o relato sobre uma pessoa trans nascida em Lavras, em 1940. No momento de seu nascimento, foi-lhe atribuído um nome, que vou identificar com as iniciais DLR, e o sexo masculino, tendo sido criada e educada dentro do padrão de gênero masculino. Em algum momento de sua infância, sua família transferiu-se para Belo Horizonte, onde DLR cresceu e construiu seu círculo de amizades e sociabilidade ao longo dos anos 1950 dentro do universo de homens homossexuais. Nesse círculo de convivência, DLR era reconhecida como Margô. Este relato se deterá apenas no período entre 1960 e 1965. A base da narrativa que trago são as reportagens dos periódicos que cobriram o ato cometido em dezembro de 1965, os depoimentos constantes do inquérito policial gerado por esse evento e as entrevistas feitas com três pessoas que conheceram Margô.

Figura 1 - Diário da Tarde, Belo Horizonte, 23/12/1965

 

Figura 2 - Diário da Tarde, Belo Horizonte, 20/12/1965

 

Figura 3 - Estado de Minas, Belo Horizonte, 21/12/1965

 

Figura 4 - Última Hora, Rio de Janeiro, 30/12/1965

Em 1961, o jovem cirurgião plástico Rui Lopes se fazia anunciar pelos jornais de Belo Horizonte, indicando sua especialidade e o endereço de seu consultório. Atraída pelo anúncio, Margô compareceu a uma consulta previamente agendada, na qual manifestou o conflito com seu corpo, a revolta com o tratamento humilhante e insultuoso que recebia das pessoas em diversos locais e o desejo de se submeter a algum procedimento que a tornasse uma mulher. O médico fez um exame clínico da genitália de Margô e constatou que “D. era homem realmente, com órgãos sexuais normais”[1], dizendo-lhe ser impossível o que pretendia e a aconselhando a procurar um psiquiatra para orientá-la. Não satisfeita, ao final da consulta, Margô reiterou que não se conformava com sua situação e que se transformaria em mulher de qualquer maneira.

Em junho de 1962, Margô procurou o reconhecido psiquiatra Hélio Durães de Alkmin em seu consultório e lhe relatou o desejo de se tornar mulher. O psiquiatra também procedeu ao exame clínico dela, dizendo-lhe, ao final, que o que desejava era impossível e que Margô necessitava de um tratamento psicológico. Ela insistiu, comentando com o médico que “tinha vontade de viajar para a Dinamarca, onde teria a possibilidade de ser operado e entrar no rol dos homens que se transformaram em mulher, conforme publicações que tinha visto”.

A referência à Dinamarca é uma alusão evidente ao caso de Christine Jorgensen, que fez sua cirurgia de confirmação de gênero com sucesso naquele país, em 1951, e ganhou intensa repercussão ao longo dos anos 1950. Margô, de fato, colecionara um pequeno, mas variado, acervo de reportagens publicadas em jornais e revistas ao longo dos anos 1950 e início da década de 1960. Os periódicos frequentemente noticiavam casos de transexualidade, tanto estrangeiros quanto nacionais. O tom habitualmente adotado na publicidade desses casos era de espetacularização, com uma abordagem acentuadamente cúmplice de uma percepção desse desejo como doentio, anormal, criminoso. Em seu acervo particular, Margô reuniu reportagens sobre Christine Jorgensen, mas também Roberta Cowell, Charlotte MacLeod, April Ashley, Tamara Edel Rees, Coccinelle (que inclusive esteve no Brasil em 1963) e outras mulheres trans.

Quando o inquérito sobre Margô foi instaurado, em dezembro de 1965, um de seus cunhados, o dentista Sinval Teixeira de Oliveira, entregou ao delegado responsável um envelope com os recortes de revistas e jornais reunidos por ela. Tive acesso ao processo no Arquivo do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e no envelope, anexado aos autos, restava apenas uma reportagem da revista Fatos & fotos, sobre a paulistana Jaqueline Galiacci. Mas é certo que havia muito mais material naquele envelope! Na cobertura que imprensa fez sobre o ato cometido por Margô, os jornalistas fotografaram e publicaram imagens dessa coleção, com os recortes espalhados sobre uma mesa.

Em janeiro de 1964, Margô retornou ao consultório do psiquiatra Hélio Alkmin e relatou que estava tomando hormônio feminino, comprado por ela própria, sem prescrição médica. De fato, o médico observou em seu depoimento que naquela ocasião a paciente apresentava “aumento das glândulas mamárias e ausência de pelos faciais”. O médico aconselhou Margô a abandonar o uso de hormônio e lhe advertiu sobre o perigo que corria, “podendo contrair câncer e etc.”. Por fim, Hélio Alkmin aconselhou Margô a se internar em uma casa de saúde para tratamento psiquiátrico. Um detalhe: o psiquiatra Hélio Alkmin era homossexual, embora sua orientação sexual não fosse pública.

Um amigo muito próximo de Margô, atualmente com 77 anos, que conviveu com ela durante quase 50 anos, relatou para mim, em dezembro de 2021, que em sua busca ansiosa por se tornar mulher e acabar com seu conflito de sexo e gênero, Margô ia para a avenida Alfredo Balena, onde está localizada a Faculdade de Medicina da UFMG, e esperava a saída dos alunos para abordá-los na rua, discretamente, e perguntar, às vezes em troca de pagamento, qual hormônio ela poderia tomar para fazer crescerem os seios. Entre recusas por informações e informações erradas, Margô encontrou um estudante com quem conversou com clareza e quem lhe indicou tomar Primodos 50 mg, uma vez por semana. Foi o resultado dessa medicação que o psiquiatra Hélio Alkmin observou em janeiro de 1964.

Por outro lado, a determinação de Margô pela busca por sua conformidade de sexo/gênero e por sua transição provocou vários conflitos familiares. A procura incessante por médicos (não foram apenas os dois aqui mencionados com quem ela esteve); o sofrimento diário com os insultos recebidos na rua e na vizinhança onde morava; a persistência por manter seu comportamento do modo como queria; os conflitos escolares (com 25 anos, ela ainda cursava o 2º ano ginasial); o círculo de sociabilidade que constituiu com amigos homossexuais – tudo isso gerava uma animosidade familiar constante que levou a pelo menos um período de internação na clínica psiquiátrica Santa Maria, ainda hoje existente na capital mineira.

O fato é que, naquela primeira metade da década de 60, Margô começou a forjar uma solução para precipitar sua transição. Uma solução de risco que exigiria muita perícia, sangue frio, coragem e determinação. Uma solução que não foi escondida dos amigos – pelo contrário, foi enunciada em momentos variados, mas colocada sempre como algo de que lançaria mão em último caso. Ao mesmo tempo, uma decisão para a qual os amigos não acreditavam que Margô tivesse ousadia suficiente para realizar. Porém, uma solução que demandaria muito planejamento e alguns componentes: um deles foi subtraído aos poucos do consultório do cunhado dentista.

Em 20 de dezembro de 1965, o Diário da Tarde alardeou em uma manchete: “Anormal quis a cortes de navalha transformar-se em mulher”[2] acompanhado do carioca Última Hora com o título “Mineiro quer ser Coccinelle brasileira”[3]. No dia seguinte, o Diário Carioca dava “Anormal cansou de ser homem”[4], acompanhado do Diário da Tarde com “Polícia não acredita em automutilação e procura médico que teria auxiliado anormal”[5]; do Estado de Minas com “Gesto patológico leva um jovem gravemente ferido ao hospital. Salvo por médicos, alegou que desejava mudar de sexo”[6] e do Diário de Minas com “Hoje na Polícia homem que se operou para virar mulher”[7].

Convencida e decidida a colocar seu plano em prática, Margô cometeu o ato em 15 de dezembro de 1965 e foi ouvida pela polícia em 22 de dezembro, no quarto do hospital, na condição e investigada por crime de lesão corporal. Conheça o que se sucedeu pelo relato da própria Margô:

[...] que no dia 15 do mês em curso, D., por sua livre e espontânea vontade, por volta das treze horas, encontrava-se na firma onde é sócio, sita à rua Padre Belchior, 267, nessa Capital, quando, “para resolver seus problemas”, de natureza sexual, uma vez que todas as pessoas, conhecidas ou desconhecidas abusavam do declarante, menosprezando-o e o chamando “de viado e afeminado”, tomou a resolução de “mudar de sexo”; que para isso, como já tinha feito várias experiências em si próprio, com determinado anestésico, retirou do consultório de seu cunhado Dr. Sinval Teixeira de Oliveira, [...] dez (10) ampolas de anestésico utilizados pelo referido cunhado que é dentista; de posse de uma navalha, uma seringa de injeção e agulhas, resolveu “cortar o membro”; que assim em sua loja, [...] completamente só, começou sua operação; que depois de ferver as agulhas, começou com a anestesia, que fez da seguinte maneira: que a primeira injeção foi dada na pele que envolve os testículos do saco; que em seguida já sobre o efeito da primeira injeção, deu mais quatro injeções, todas aplicadas exclusivamente no “saco”; que também aplicou quatro tubos de anestésicos no pênis, logo em sua base; [...] que sentindo o efeito da anestesia, visto que já se sentia “meio tonto”, com todo o cuidado fechou a firma, [...]; que depois, já vestido com uma calça de “nycron” azulada e munido de sua navalha, adquirida antes na Casa Sales, por 4.500 cruzeiros, foi para a avenida Augusto de Lima, onde tomou um táxi, mandando que o motorista tocasse para este hospital, pagando pela “corrida” a importância de 545 cruzeiros; que chegando na porta do hospital, ainda sob os efeitos da anestesia, que estava em seu efeito total, [...] em um vão existente do lado esquerdo do hospital, retirou sua navalha, que estava na pasta que trazia, abriu sua “braguilha”, dando sua frente para o hospital, costas para a rua, começando por tirar seu pênis, segurando com a mão esquerda e com a navalha na direita “decepou-o” o mais rente possível a sua base, jogando-o no chão; que neste momento a pele do “saco” ficou dependurada com os testículos à mostra; que então, uma vez que não havia sofrido a menor dor, resolveu cortar o restante, isto é, “o saco todo”; que após cortar os testículos e a pele do escroto, retirou da pasta um saquinho de material plástico e recolheu os “órgãos decepados”, colocando o saquinho dentro da pasta branca, retirando de seu bolso lenços de papel, colocando-os sobre os ferimentos, entrando para o hospital; que naquela portaria estava uma moça, a quem o declarante pediu que lhe arranjasse um médico com toda a urgência, tendo a mesma o encaminhado imediatamente para uma sala de curativos [...].

 

O Natal de 1965 não celebrou apenas a natividade de Cristo. O primeiro passo para a conformidade de sexo e gênero de Margô havia sido dado. Os três médicos de diferentes especialidades que foram acionados para socorrer Margô (estancar hemorragia e improvisar um meio para urinar) foram unânimes em levar o caso à polícia, a fim de se eximirem e a instituição de saúde de eventuais responsabilidades sobre o ato cometido. No dia 18 de dezembro de 1965, a polícia foi informada do que se sucedeu e instaurou inquérito para investigar o caso como automutilação e se houve a cumplicidade de terceiros, inclusive com orientação médica prévia. A exposição do caso pela imprensa dois dias depois, como visto nas manchetes mencionadas anteriormente, provocou um escândalo enorme, bem como o temor, por parte de amigos e amigas de Margô de serem envolvidos/as nas investigações. A polícia despachou seu relatório ao Ministério Público no final de janeiro de 1966. Rapidamente, o MP opinou por não oferecer denúncia por considerar que automutilação não é crime. O juiz acatou a alegação do Promotor e encerrou o processo “visto que a lei penal não comina pena a quem se automutila e não há prova de que a vítima tenha tido auxílio de terceiros”.

Algumas cirurgias reparativas foram feitas, não apenas prontamente após o ato em dezembro de 1965, mas sobretudo em 1967, em Brasília; em 1969, no Rio; e ainda em outro momento dos anos 70 em Belo Horizonte, quando então foi construído um canal vaginal. Em 1972, DLR e Margô foram deixadas para trás e nasceu, em um cartório civil do Rio de Janeiro, Patrícia LR, que atualmente conta 82 anos, é viúva e vive em Nova York.


[1] Os depoimentos transcritos aqui constam do auto processual relativo ao caso de DRL no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Este processo, relativo a inquérito por lesões corporais, encontra-se arquivado sob o registro F9000801593716.

[2] Diário da Tarde, Belo Horizonte, ano XXXV, n. 22.812, 1º Caderno, 20/12/1965, p. 6.

[3] Última Hora, Rio de Janeiro, ano XV, n. 1.737, 20/12/1965, Matutino, p. 3.

[4] Diário Carioca, Rio de Janeiro, ano XXXVII, n. 11.679, 21/12/1965, p. 2.

[5] Diário da Tarde, Belo Horizonte, ano XXXV, n. 22.813, 1º Caderno, 21/12/1965, p. 6.

[6] Estado de Minas, Belo Horizonte, ano XXXVIII, n. 10.900, 2º Caderno, 21/12/1965, p. 8.

[7] Diário de Minas, Belo Horizonte, ano XVII, n. 4.904, 21/12/1965, p. 7.

 

Como citar este artigo:

MORANDO, Luiz. “Fiz e estou satisfeita”. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.


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