Por uma visibilidade trans que seja de janeiro a janeiro: inserção dos campos nome social e identidade de gênero nos Sistemas de Vigilância em Saúde do Brasil

2023-01-05
Por Alícia Krüger
 É Farmacêutica Clínica e Sanitarista. MesTRAVESTI em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília. Doutoranda em Medicina - Endocrinologia Clínica pela Escola Paulista de Medicina da UNIFESP. Interlocutora VigiAR-SUS do Ministério da Saúde, no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná. E-mail para contato: alybk1@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7485317704785536 / Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9154-8412

A sociedade cisnormativa define bem aquilo que julga ser os papéis do que se entende por homem e por mulher. Parte desse entendimento se realiza com base em aspectos biológicos, tais como a genitália, considerando a hegemonia das definições biomédicas. Pessoas que possuem pênis são classificadas como homens e as que têm vagina, como mulheres (SIMAKAWA, 2016. YORK, 2020).

Estes papeis são construídos desde que o indivíduo ainda está́ no útero de quem o gera, quando a família começa a preparar o enxoval de acordo com o sexo, ou seja, com base na genitália que esse bebê possui, revelada por um exame de ultrassonografia e desprezando outras possibilidades anatomorfas. Ali se inicia a legitimação da representação social que se faz desse sexo. Dessa forma, cor de rosa ganha definição para as meninas e a cor azul para os meninos, tais leituras formam marcadores dessa diferença social (KRÜGER, 2018).

Numa inflexão crítica, a pesquisadora travesti Amara Moira Rodovalho (2017), salienta a relação não cartesiana entre sexo definido ao nascimento (com base no aparelho genital) e as expressões de gênero do/no indivíduo. É notória a conceituação com base em aspectos biológicos (como a genitália), considerando a hegemonia das definições biomédicas em que pessoas que possuem pênis são classificadas como homens e as que possuem vagina, mulheres. Os comportamentos da pessoa podem não corresponder aos papeis associados, tradicionalmente, ao sexo definido com base na genitália de nascimento (SIMAKAWA, 2016).

Além disso podem haver outras classificações identitárias que não seguem o binarismo de gênero, como indivíduos não binários, agêneros, genderqueer, transmasculines, entre outros. O termo transgênero, apesar de bastante utilizado na academia, é pouco representativo entre os movimentos sociais que, inclusive, construíram essa Política junto ao Ministério da Saúde (YORK; OLIVEIRA; BENEVIDES, 2020).

Em relação, especificamente à epidemia de HIV/aids, estudos existentes em todo o mundo sugerem que as mulheres trans possuem altíssima vulnerabilidade ao HIV e sua forma de ocorrência nas diferentes regiões do mundo depende, entre outros fatores do comportamento individual e coletivo e de determinantes sociais (WHO, 2015).

No caso específico do Brasil, a população trans é a população-chave mais acometida pelo HIV/aids, como demonstram os dados oficiais de pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde, chegando a prevalências ao redor dos 30% (BASTOS et al, 2018), sendo considerada, portanto, uma população-chave à resposta brasileira ao HIV/aids.

O conceito de população-chave não remete aos antigos conceitos de população de risco e comportamento de risco, pois não atribui as probabilidades de infecção somente aos indivíduos e às suas práticas sexuais, mas considera todos os aspectos de seus contextos sociais e estruturais que os colocam em situações de maior vulnerabilidade para os agravos (WHO, 2014).

As populações-chave influenciam a dinâmica da epidemia e são fundamentais no desenvolvimento das respostas de enfrentamento. É sabido que essas populações ainda enfrentam situações de estigma e discriminação, o que faz com que vivenciem contextos de vulnerabilidade e maior exposição a situações de risco.

Essas vulnerabilidades associadas às populações-chave fazem com que elas sejam desproporcionalmente afetadas pelo HIV em todos os países e contextos, refletindo tanto nos comportamentos comuns entre os membros dessas populações, quanto em questões legais e sociais que aumentam ainda mais suas vulnerabilidades (WHO, 2014).

Todos estes dados são oriundos de pesquisas, ou seja, um tipo de vigilância denominado ‘Vigilância Ativa’. A escassez de dados oficiais do Ministério da Saúde, por vigilância passiva, oriundos de sistemas de vigilância oficiais, como o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) gera a ausência de informação específica sobre o HIV/aids entre pessoas trans no Boletim Epidemiológico de HIV/aids, editado anualmente.

Esse fato dificulta muito a visão do tamanho geral da epidemia entre estas pessoas, bem como formam barreiras para a implantação de políticas públicas específicas que levem em conta as demandas e porquês da ocorrência da epidemia nesta população.

Para que se tenham estas informações presentes nos documentos oficiais do Ministério da Saúde como no Boletim Epidemiológico, pessoas trans precisam ser corretamente identificadas, como por exemplo, com a inserção de um campo para inserção do nome social (nome diferente do de registro civil – e que possuem uso assegurado no âmbito do SUS pela Portaria GM/MS 1.820/2009 e no âmbito do serviço público federal pelo Decreto Presidencial 8.727/2016) e também com o campo identidade de gênero, com as opções: Mulher Transexual, Travesti/Mulher Travesti e Homem Transexual, Não Binarie e Outros(as).

Estes dois campos são sinérgicos na filtragem de dados para captação de pessoas trans. Já, no caso de a pessoa trans ter feito judicialmente a alteração de sua documentação, alterando prenome e sexo, o campo nome social se perde, mas o campo identidade de gênero seria uma opção que ainda demarcaria quem seriam as pessoas trans nos sistemas (KRÜGER, 2017).

Alguns sistemas de informação do Departamento de Vigilância de IST/aids e Hepatites Virais, da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, como o Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM) e o Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (SISCEL) já incluem um campo para preenchimento opcional de nome social e identidade de gênero.

Todavia, para uma informação mais robusta e que não limite-se apenas ao HIV/aids e às outras IST, a inserção destes campos em outros sistemas como o já citado SINAN e o Sisistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde e geridos pelo DATASUS são fundamentais, pois são estes sistemas que embasam a produção dos Boletins Epidemiológicos de HIV/aids anualmente e auxiliam na orientação de políticas públicas para pessoas trans em todas as outras áreas da saúde (KRÜGER, 2017).

Eis o que urge: precisamos ser visibilizadas, visibilizades e visibilizados não só na assistência, mas também na vigilância em saúde do Brasil!

 

REFERÊNCIAS

BASTOS, F. I et al. HIV, HCV, HBV, and syphilis among transgender women from Brazil: Assessing Different Methods to Adjust Infection Rates of a Hard-to- Reach, Sparse Population. Medicine; 97:16-24. 

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 1. ed., 1. reimp. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [acessado em 2018 nov 18]. 32 p. 

KRÜGER, Alícia; SILVA, Carla Glenda Souza da (Orient.). Inserção dos campos “nome social” e “identidade de gênero” nos sistemas de vigilância em saúde: uma alternativa para qualificação da informação sobre a epidemia de HIV/Aids na população trans brasileira. 2017. 36f. Trabalho de Conclusão de Curso. (Especialização em Gestão da Política de DST, AIDS, Hepatites Virais e Tuberculose – Educação a Distância) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017.

KRÜGER, Alícia. Aviões do cerrado: uso de hormônios por travestis e mulheres transexuais do Distrito Federal brasileiro. 2018. 114 f., il. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) —Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

RODOVALHO, A, M. O cis pelo trans. Estudos feministas, Florianópolis, 2017 jan-abr; 25(1):365-373. 

SIMAKAWA, Viviane Vergueiro. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2016. 244 f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2016.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Consolidated guidelines on HIV prevention, diagnosis, treatment and care for key populations. World Helth Organization, 2014. 

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Differentiated and simplified preexposure prophylaxis for HIV prevention: update to WHO implementation guidance. Geneva, 2022.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Policy brief: Transgender people and HIV. WHO Document Production Services. Geneva, Switzerland, 2015.

YORK, Sara Wagner; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Travesti Textual (insubmiss) Manifestations. Revista Estudos Feministas, v. 28, 2020.

 

Como citar este artigo:

KRÜGER, Alícia. Por uma visibilidade trans que seja de janeiro a janeiro: inserção dos campos nome social e identidade de gênero nos Sistemas de Vigilância em Saúde do Brasil. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.


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