TRAVESTEENS

2023-01-04
Por Lua Quinellato
 Lua, jovem travesti, graduanda em pedagogia pela Universidade Federal Fluminense, faz parte da rede transvestis UFFianas, e tem interesse de pesquisa em questões de gênero e sexualidade..Por Sara Wagner York
É travesti da/na educação, doutoranda em Educação e apresentadora do “Programa de Travesti” no canal de esquerda brasileiro TV Brasil 247.

 

TRAVESTEENS[1]

Falar sobre travestilidade, principalmente com o recorte geracional da juventude, torna-se impossível sem citar também aquelas que lutaram para que pudéssemos cada vez mais cedo sermos nós mesmes, e além disso para que não sofrêssemos com a repressão familiar como foi culturalmente imposto. Além do direito de estudar com o mínimo de dignidade (esse ainda segue como um dos problemas principais a ser combatido) entre diversos outros direitos conquistados na lei através de muita luta, como o uso do nome civil e social, enquanto o uso dos banheiros depende de leis estaduais e municipais - por não ter sido ainda votado nos âmbitos legislativo federal e judiciário. Direito na lei, mas em caminho de se tornar direito de fato.

Nas palavras de Keila Simpson, presidenta da Associação Nacional de Transexuais e Travestis, no Encontro Nacional da ANTRA em 2022, em que a mesma dizia “ser de extrema importância que os caminhos que foram abertos pelas mais velhas sejam aproveitados pelas mais jovens, para que assim as mais jovens possam repassar novos conhecimentos e haver rotação de saberes, uma simbiose dos saberes das ruas e dos saberes acadêmicos”. Nossa transcestralidade importa (e se não soubermos de nossess/os/as antepassades/os/as, explique sem nos hierarquizar)! (YORK; RAYARA; BENEVIDES, 2020).

Referindo-me a fala de Keila Simpson, e também ao texto “Manifestações textuais (insubmissas) travesti” em sua primeira cobrança acerca de que não mais “falem de nós sem nós”, é importante citar projetos acolhedores para travestis e demais pessoas trans, aqui fazendo um recorte principalmente com a juventude, com a educação de meninas trans e travestis. Um deles foi o “Comitê Meninas Decidem” que culminou na escrita de um manifesto sobre as necessidades das meninas para a educação, citamos de maneira pontual a educação de meninas trans e travestis. O projeto foi desenvolvido por diversas meninas e educadoras de diversos locais do Brasil, idealizado pelo Fundo Malala, que acompanha de perto as candidaturas que se comprometeram com as demandas das meninas para a educação.

A travestilidade é uma identidade plural que, desde seu início, sempre repudiou por si só toda a imposição da cisheteronormatividade imposta aos corpos pelo sistema capitalista para a manutenção da família. Está envolta em áreas da Educação, Direitos Humanos, Mulheres, Saúde e tantas pastas afins que tentam dar conta do ser humano em sua complexidade. Essa sempre subverteu a cisgeneridade, e por isso foi vista como algo por muito tempo fora da humanidade, sendo vistas enquanto corpos extraterrestres(HARAWAY, 1994).

Assumir a importância da deficiência como categoria de análise epidemiológica, por exemplo, pode fortalecer a saúde coletiva na superação dos sistemas de opressão sustentados pelo capitalismo neoliberal, intimamente imbricados na corponormatividade de nossa estrutura social. Essa na qual o patriarcado, a branquitude e a cisheteronormatividade também são estruturantes e estão estruturalmente implicadas entre si. (MOREIRA, 2022)

Ao longo dos anos, principalmente a partir dos a anos 1970 (YORK, 2020), com os avanços das lutas dos corpos transvestigeneres, por mais “inclusão” dentro desse sistema houve uma adequação também do que é ser trans, com meninas e meninos cada vez mais cedo tendo acesso a terapias hormonais e processos ditos “transsexualizadores”. Nos dias atuais, pessoas trans tem facilitações de acesso a informação acerca desses processos, o que facilita e muito a transição, mas também cercam esses corpos muitas vezes de experimentarem suas identidades de maneiras plurais. É importante também destacar que apesar das facilitações acerca desses processos, essas mesmas só são possíveis na maioria das vezes para pessoas que têm acesso  planos de saúde, tendo em vista que pessoas trans que recorrem ao processo “transsexualizador” pelo SUS esperam em filas gigantescas, muitas vezes tendo como única opção arriscar as próprias vidas com a utilização de hormônios não seguros, sem o devido acompanhamento, demonstrando mais uma vez a marginalização imposta a esses corpos.

Sobre essas questões, é importante o debate acerca das pessoas trans e travestis que não podem ou simplesmente não tem interesse nos processos de  hormonização. Essas, na maioria das vezes tem suas identidades negadas, sendo que legalmente o que deveria ser realmente levado em consideração é a autoafirmação dos corpos. Não existe uma única forma de ser travesti. Temos diversas travestilidades e possibilidades de ser travesti. Nenhuma é igual a outra (o experimento da expressão de gênero pode ou não ser constitutivo); não generalize. (YORK; RAYARA; BENEVIDES, 2020) 

É impossivel falar também sobres travestilidade jovem sem falar sobre a lei ADI4275, de 2018, que muda exponencialmente a forma como as identidades não cis eram “aferidas”, passando a partir disso a ser levado em consideração somente autoafirmação, como dito no parágrafo acima (mas até que ponto essa lei é respeitada?) 

Como exemplo de desrespeito a esse projeto de lei, e também como incentivo de evasão de uma travesti de um espaço academico, gostaria de citar o caso da aluna travesti que foi expulsa de um banheiro da UNB, onde estuda, por uma outra estudante, essa por sua vez cis, por conta da sua performance de genero, por carregar em seu corpo estereótipos masculinos, sendo esses instituídos pela cisgeneridade. O que mais choca nesse caso é uma grande parcela de pessoas trans deslegitimando o gênero dela, colaborando assim para uma agressão muito mais escancarada à menina, além de que a reação dela a violência sofrida foi muito mais destacada entre os veículos de mídia do que a própria violência sofrida em si.

A construção política do corpo, nos discursos jurídicos contemporâneos, não raramente está separada da noção de pessoa e das suas experiências corporais. Porquanto seus alicerces são sustentados por racionalidades que mercantilizam e padronizam o corpo, e o tornam propriedade, em um movimento que apaga possibilidades de sujeitas/os/es/ xs políticas/os/es/xs e de corporeidades outras, singulares e diversas (MOREIRA, 2022) 

Além disso, é importante destacar o pronunciamento da própria universidade, destacando a presença de banheiros neutros na universidade, colaborando ainda mais para o discurso de que aquela travesti talvez estivesse invadindo um espaço que não a pertence, nos levando a outro questionamento: espaços formais de educação estão realmente interessados em receber corpos transvestigeneres? 

Para responder a essa pergunta, podemos utilizar dados de levantamentos realizados pela ANTRA (associação nacional de travestis e transsexuais) sobre evasão escolar de pessoas trans e travestis, além de presença das mesmas na universidade. Segundo a mesma, cerca de 82% da população trans e travesti não consegue concluir o ensino médio por serem evadidas, além de que menos de 1% está dentro das academias. 

A partir disso é importante tambem pensar para onde esses corpos evadidos dos ambientes formais de educação vão parar, que é em sua grande maioria na prostituição, segundo dados levantados pela própria ANTRA. 

Essa instabilidade na segurança de um futuro digno atinge na atualidade, com o avanço de pautas neoliberais toda a classe trabalhadora, sendo primordial pontuar que é impossivel que travestis e demais pessoas trans sejam simplesmente libertas da prostituição compulsória, sem que seja pensado o fim do sistema que torna esses mesmos corpos mercadoria. Mas é primordial pensar também que são urgentemente necessárias políticas públicas que diminuam esse abismo gigantesco existente entre a população trans e travesti em relação ao mercado de trabalho formal, além dos espaços formais de educação. 

Sobre a prostituição compulsória que ainda é um grande problema que cerceia tantas vidas de tantas travestis e mulheres trans principalmente racializadas espalhadas pelo brasil, esse mesmo não pode ser tratado de maneira moralista, a se basear por uma falsa régua de ética que ignora nossas transvivencias e travestilidades, principalmente quando esses vem inclusive de movimentos de esquerda radical, que muitas vezes continuam culpabilizando os indivíduos e não o sistema que perpetua essa exploração e mercantilização de corpos, nesse caso de mulheres trans e travestis.

Ainda que não tenha nascido no capitalismo, a prostituição encontrou nele as condições perfeitas para sua expansão e desenvolvimento. A mercantilização generalizada de todos os aspectos da vida, fato inescapável do desenvolvimento capitalista, é o cenário perfeito para uma atividade cujo pressuposto é o próprio sexo na forma mercantil. A instituição da família capitalista, o caráter estruturante do gênero e a exploração de classe conformam o terreno fértil sobre o qual a prostituição se assenta. Discutí-la, portanto, pressupõe compreendê-la nem como exceção, nem como escolha, mas como intrinsecamente ligada à organização do trabalho e da reprodução social.(Coletivo LGBT Comunista) 

Com isso, é importante que sejam pensadas formas de outras realidades possíveis para tantas travestis, além da garantia de direitos para aquelas que continuam tendo na postituição a única forma de sobrevivência. Assim nasceram os primeiros movimentos de travestis organizadas, para lutar contra as violências sistemicamente impostas sob nossos corpos, e que continuam lutando e se opondo a essas violências até hoje, porque quando se é um corpo dissidente dentro de um CIStema normativo, não se há outra possibilidade se não a luta.


[1] Utilizamos TRAVESTEENS numa alusão metafórica e simbiótica de Travesti e Teens. Teens que promove um registro global de identificação de juventude e adolescência pós-pandemia, onde a língua inglesa tornou-se parte da vida de muitos adolescentes LGBTIs e suas buscas no Ciberespaço. RODRIGUES, Vinícius Cainã Silva. O MOVIMENTO LGBT VAI AO MUNDO: UMA ANÁLISE HISTÓRICO-DISCURSIVA DE SUA INTERNACIONALIZAÇÃO. O Cosmopolítico, v. 6, n. 1, p. 114-129, 2019.

 

REFERÊNCIAS

 YORK, Sara; RAYARA, Megg; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista estudos feministas, v. 28, n. 3, 2020.

YORK, Sara Wagner. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des(a)fiando e ocupando os"cistemas" de Pós-Graduação. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

COLETIVO LGBT COMUNISTA. Sobre prostituição, classe e revolução. agosto, 2022.

Sobre prostituição, classe e revolução – LGBT Comunista

MOREIRA, Martha Cristina Nunes; DIAS, Francine de Souza; MELLO; Anahi Guedes de; YORK, Sara Wagner. GRAMÁTICAS DO CAPACITISMO: DIÁLOGOS NAS DOBRAS ENTRE DEFICIÊNCIA, GÊNERO, INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2022/Mai). [Citado em 03/01/2023]. 

 

Como citar este artigo:

QUINELLATO, Lua; YORK, Sara Wagner. TRAVESTEENS.  Notícias, Revista Docência e Cibercultura, Janeiro de 2023, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias:

Felipe CarvalhoMarcos Vinícius Dias de MenezesMariano Pimentel e Edméa Santos