O que transborda, atravessa e afeta. Discussões a cerca das infâncias e a branquitude.

2022-03-18
Por Isabela Pereira Vique
Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro. Doutoranda em Educação pelo PROPED/UERJ. Possui Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - Proped/ UERJ. Graduação em Pedagogia UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integrante do Grupo de Pesquisa Currículos, Narrativas Audiovisuais e Diferença. Criadora de conteúdo da página do instagram @fridavaiaescola. E-mail. Orcid

INTRODUÇÃO

Este texto configura-se como um relato de experiência que se conecta a outros. Nele está exposto, como o meu corpo de mulher branca, em meio a um cotidiano escolar composto majoritariamente por crianças negras, fez-me dar conta da minha branquitude.

Para isso, vou falar/pensar sobre mim e sobre o meu corpo, pois o processo de reconhecimento do meu corpo sendo de privilégios é/foi o que me move/moveu a olhar para as infâncias à minha volta de outra maneira. Assim, me coloco também como objeto pesquisado com o objetivo de expor o que me atravessa, pois o que me constitui, ajuda a traçar os emaranhados das minhas pesquisas.

Eu sou uma mulher cis. Além do meu gênero, exposto fisicamente pelas demarcações instituídas culturalmente, há outra característica que diz muito sobre mim: a cor da minha pele. Eu sou branca. No meu sangue corre sangue de pessoas negras, a miscigenação está presente na minha história, mas isso não muda ou faz referência ao que afeta quando se olha para mim:

ser branco exige pele clara, feições europeias, cabelo liso; ser branco no Brasil é uma função social e implica desempenhar um papel que carrega em si uma certa autoridade ou respeito automático, permitindo trânsito, eliminando  barreiras. Ser branco não exclui ter sangue negro. (SOVIK, 2004, p. 366)

Ser branca diz muito sobre mim, me coloca em um lugar de privilégio. E eu não me dei conta disso desde sempre, afinal é muito fácil ter essa cor, e talvez seja difícil reconhecer um privilégio quando se está inserido nele por muito tempo.

 

UM PERCURSO NÃO LINEAR 

Quando comecei a trabalhar como professora de Educação Infantil em uma instituição pública da Prefeitura do Rio de Janeiro, há dez anos, ingressei em uma favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, com um cargo e uma função a cumprir. Foi ali que me deparei com o que eu era e o que a cor da minha pele representava. Em um primeiro momento, não notei que a maioria das crianças das minhas turmas eram negras, ou melhor, não me atentei ao significado disto, ou o que atravessava este fato. Em 2014, tive minha segunda turma e nela havia uma criança que se apegou logo a mim. Ela era carinhosa demais, talvez a mais próxima a mim até hoje. Ela é negra e tem cabelo crespo. Gostava de narrar histórias de princesas e tinha o olhar curioso. Um dia, ela me disse: 

 “Tia, você é tão bonita.”.

“Obrigada, meu amor. Você também é linda”. – Eu respondi.

 E ela: “Mas você que é muito bonita. Você é branca, tem o olho verde e o cabelo amarelo”.

Eu, naquele momento em que não sabia o que dizer, entendi que aquela pequena criança que estava à minha frente não se achava bonita. Não como eu, que me enquadrava nos padrões das princesas que ela tanto gostava. Foi a partir daí que eu me dei conta da minha branquitude. Dei-me conta também que eu era uma referência branca, dentro de uma sala composta, majoritariamente, por crianças negras. E mais: percebi o meu privilégio e a minha responsabilidade na construção de um racismo que é institucional e se mantém/produz nas estruturas cotidianas.

A branquitude é um conceito que diz respeito à constituição da raça branca e a que privilégios tal raça traz consigo cotidianamente:

Assim, a branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. (SCHUCMAN, 2012, p. 23)

Entender o que enreda à branquitude é essencial para começar a pensar nas minhas práticas cotidianas como professora de Educação Infantil, pois partimos de que a cor da pele das crianças e as marcas que tal cor carrega às colocam em um determinado lugar da infância, uma infância que não é linear, homogênea e única em todos os cotidianos.

Pensando no meu cotidiano, no meio das crianças que são negras, em sua maioria, percebo todos os dias a minha branquitude. Em alguns momentos, são em desenhos animados que as crianças trazem para assistirmos juntas, onde as personagens de sucesso, quando são mulheres, são mocinhas ou aventureiras brancas. Ou então, no momento da brincadeira, quando “preferem” brincar com as bonecas brancas expostas nos espaços. A mesma lógica pode ser observada quando elas folheiam revistas ou jornais, procurando as personagens que irão “assumir” e escolhem, na maioria das vezes, as mulheres, crianças e homens brancos. Percebo a minha branquitude ainda, e principalmente, na hora da saída, quando vejo as crianças irem embora subindo o morro cada vez mais, e eu descendo.

Os caminhos que as crianças percorrem, em relação a falas sobre as minhas características físicas, preferências por bonecas ou personagens, passam por um processo que as antecede, mas as alcança.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Djamila Ribeiro diz que “todo mundo tem lugar de fala” (RIBEIRO, 2019, p. 81). Isso quer dizer que o mesmo evento pode ser percebido de maneiras diferentes, de acordo com o lugar social. A grande questão disso tudo, é que só alguns pontos de vista são considerados. Dentro desse contexto, o que cabe então a pessoas brancas?  

Trouxe, neste meu relato, algumas situações dos/com os cotidianos da escola que atuo, para levantar discussões a cerca dos privilégios que pessoas brancas detêm. Ser uma professora branca e estar em contato diário com crianças negras, geram significações e sentidos que senão problematizados, caem na universalidade. “Em nossa cultura, a branquidade tende a ser tomada como um estado ‘normal e universal’ do ser, um padrão pelo qual todo o resto é medido”. (Kaercher, 2005, p. 102-103, grifo da autora apud GUIZZO; ZUBARAN; BECK, 2017, p. 528).

Adiche (2019) fala sobre o perigo da história única. Ela diz que as histórias contadas como universais estão diretamente ligadas às relações de poder. Fazer parte do grupo que se beneficia das histórias únicas que foram contadas, traz uma grande responsabilidade, diante de grandes injustiças. Entender e reconhecer os privilégios que acompanham as pessoas brancas ajuda a não normaliza-los, tomando atitudes para combatê-los, pois “para além de se entender como privilegiado, o branco deve ter atitudes antirracistas”. (RIBEIRO, 2019, p. 36).  Afinal, como diz Grada Kilomba (2010), o racismo é uma problemática do branco, ou seja, foi inventada pela branquitude.

Então, pautada nas discussões postas acima e compartilhando também os caminhos que tenho percorrido, respondo ao questionamento posto no primeiro parágrafo desta seção: “o que cabe então a pessoas brancas?”. Ampliem o seu campo de visão.  Reconheçam os seus privilégios, mas não só isso. Como diz Djamila Ribeiro, “a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que leva à inércia, a responsabilidade leva à ação.” (RIBEIRO, 2019, p. 36). Então, vamos agir!

 

REFERÊNCIAS

ADICHE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Tradução: Julia Romeu. 1ª ed. – São Paulo: Companhia das letras, 2019.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?. 4ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

GUIZZO, Bianca Salazar; ZUBARAN, Maria Angélica; BECK, Dinah Quesada. Raça e gênero na educação básica: pesquisando ‘com’ crianças. Maringá, v. 39, suppl., p. 523-531, 2017.

KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. – São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019. 

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1ª ed. –São Paulo: Companhia das letras, 2019.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo. Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista. Tese (Doutorado em Psicologia). Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

VIQUE, Isabela Pereira. Resistir na Educação Infantil – pela possibilidade de uma educação não sexista. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2019.

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Como citar este artigo:

VIQUE, Isabela Pereira. O que transborda, atravessa e afeta. Discussões a cerca das infâncias e a branquitude. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, março de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Aline Martins; Felipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos