“Isto não é sobre Nós”

2022-01-26
Por Amora Ju
Artista visual, Pesquisadora e arte-educadora. - Mulher trans vivendo em São Paulo, suas investigações e produções entrecruzam com a bagagem pessoal e teórica enquanto práticas de representação. Revelando uma produção que por meio da sensibilidade permite elaborar processos criativos em múltiplas linguagens (Videoarte, Serigrafia e Pintura). Contudo, trabalhar com colagens de técnicas distintas, permite evocar o campo da memória, assim como a resistência dos corpos dissidentes.

 

Figura 1: Amora Ju: “Ïsto não é sobre Nós”, 2018/2019.

 

“Isto não é sobre nós" surgiu em 2018 durante uma residência artística com o Coletivo Ruidosa Alma, em Pelotas. Iniciava-se uma investigação sobre a arte, a impressão das gravuras, os retratos apagados, as identidades, a censura, a ditadura e a operação militar existente no imaginário brasileiro e, especialmente, no interior do Rio Grande do Sul com sua nova feição bolsonarista. 

Durante a produção dessa obra se tinha a necessidade de apontar para os abusos, para alguns traumas deixados pelo imaginário reiterado pelo poder. O poder que historicamente produz a subalternização de determinadas pessoas em detrimento de outras. 

Portanto, a obra relatava o apagamento diante de uma determinada ascensão do ódio nas ruas e nas mídias, pois surgia ali uma nova configuração do poder. Um potencial criativo me fazia evocar a arte, a filosofia e o ativismo. Desta forma, apresenta-se alguns tons de Andy Warhol, Gracia Barrios, Francis Bacon, Michel Foucault, Julia Kristeva, Julia Gumiere, Rafael Leopoldo, Céu Cavalcanti e Bruna Benevides.

No ano anterior ao projeto de retratos, em 2017, perdemos Dandara Ketlyn vítima da brutalidade e da abjeção. Neste período e anteriormente em meio às redes sociais surgia uma forma de documentar e mapear estas violências, aproximamo-nos do aumento em relação ao número de assassinatos a todas as pessoas trans e travestis para aprofundarmos a obra. Segundo a ANTRA em seu dossiê de 2017, em texto da Bruna Benevides, 144 travestis foram assassinadas em 2016 e em 2017, 179 mortes foram registradas, dentre elas, 169 travestis e mulheres trans e de 10 homens trans.

 Trata-se de um tempo perverso para travestis e pessoas trans, já no final do governo de Michel Temer com suas marcas fortemente neoliberais e as desinformações nas redes. Os conteúdos de ódio para pessoas do movimento LGBT* tornavam evidentes em meio a campanha eleitoral do capitão do exército Jair Messias Bolsonaro e uma guinada para a ultradireita. Assim, não era sobre nós, era a respeito da violência institucionalizada e da necrose brasileira. 

Uma segunda reflexão impulsionou nosso fazer artístico, e articulamos sobre a picada de uma singela tarântula, nomeada enquanto uma operação policial nos anos 1980. Em meio ao veneno letal da transfobia, a Operação Tarântula, tornaria uma estratégia de apagamento, revelava-nos o motivo maior deste projeto violento no contexto do HIV/AIDS. Criava-se o perfil de um inimigo: mas quem seria este inimigo? Trata-se de uma criação disseminada nas mídias e legitimada pelo governo, por homens fardados enquanto um instrumento produtor de medo e geradores de aniquilações.

 

 

Figura 2: Retrato em colagem digital, editada e unificada, de Sá Pretto, Ruya, Duda Pretto e Amora Ju.

Na obra “Isto não é sobre nós” produz-se uma crítica artística ao sistema de dominação. O campo da memória era coletiva em cada trajeto deste processo criativo, envolvendo imersões no ateliê de gravuras da Universidade, por entre pesquisas, idéias e discussões em ambiente da Residência artística. Esta produção envolve pessoas trans de meu convívio, por meio de um registro fotográfico intimista, conectado com nossas interseccionalidades e que nos conduziu à colagem dos nossos rostos a fim de gerar uma nova feição. 

Nesta época, a Exposição "Queer Museu" de Gaudêncio Fidelis foi alvo de uma interdição, em Porto Alegre. A censura ao “Queer Museu” possibilitou um debate sobre o apagamento de determinadas narrativas e evoquei na obra “Isto não é sobre nós” uma retomada daqueles saberes apagados.

Na obra percebemos diante da nossa revolta e das inquietações pessoais entrecruzadas pelo período de uma direita se constituindo que aquela experiência que vivíamos não era só sobre nós. Assim, apresentamo-nos sem romantizar as nossas dores. Não queríamos nos representar de forma fetichizada e empoderada.

Produzi, inicialmente, o projeto utilizando a serigrafia, em torno de 35 impressões manuais do trabalho. Utilizei tons verdes, pretos e brancos para delinear os retratos. A primeira versão tinha intervenções em tinta têmpera branca formando uma composição fantasmagórica contida de apagamentos de tintas e ocultações dos rostos. Essa versão circulou numa Exposição em Pelotas/RS no ano de 2018, realizada de forma coletiva no Museu do Doce. A exposição tinha como temática a resistência da população LGBT*.

“Isto não é sobre Nós” reproduziam formas destintas e sem cores; borradas, espontâneas, desbotadas, intencionalmente em um procedimento técnico desarticulado, errante e sequencial. A proposição era inserir esta série nos espaços urbanos, para espectadores de passagem no formato de lambe lambe. No entanto, as impressões artesanais decidiram ocupar os espaços possíveis entre a instituição, os cânones e alguns espaços expositivos.

 

 

Amora Ju: “Ïsto não é sobre Nós”, 2018. Museu do Doce na Exposição: Eu Existo”.

 

Amora Ju: Ïsto não é sobre Nós”, Museu da Diversidade Sexual, São Paulo, 2019/2020.

A série em serigrafia e colagem circulou na “Exposição Internacional de Arte e Gênero para o 12 Fazendo Gênero”, em Santa Catarina, com a curadoria de Rosa Blanca em 2021. A série também foi apresentada na “Mostra Diversa” do Museu da Diversidade Sexual. É possível encontrá-la, ademais, no “Catálogo Arte Mais” com curadoria de Renata Martins para o “Mapeamento de Artistas Transvestigêneres no Brasil” organizado pela Goethe Institut Bahia em 2021/2022. 

A última versão viajou de malas para São Paulo. O trabalho ganhou outras formas e significados com o próprio processo de deterioramento e da fragilidade material da obra. Assim, em meio aos papéis rasgados, cria-se colagens, sobreposições, um verdadeiro ato de restauro produzindo um desdobramento do próprio trabalho. 

A obra passa a resistir de outras formas. Na sua reelaboração retomamos tanto lembranças pessoais quanto coletivas pensando na proteção da memória por meio da ativação de um campo perceptivo. Na serigrafia a repetição que sempre traz à tona a diferença permite novos gestos artísticos tornando o projeto mutável.


Referências

BENEVIDES, Bruna. G; NOGUEIRA, Sayonara N. B. (Orgs). Dossiê Dos Assassinatos E Da Violência Contra Travestis E Transexuais Brasileiras Em 2020. São Paulo - Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2021

CAVALCANTI, C., BARBOSA, R.B. & BICALHO, P.P.G. Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-redemocratização. In: Psicologia: Ciência e Profissão 2018 v. 38 (núm.esp.2.), 175-191.

GUMIERE, Julia. Os Corpos E A Polícia. In: GUMIERE, Julia; AROUCA, Leonardo; QUINALHA, Renan. (Orgs). Orgulho E Resistências: LGBT Na Ditadura. São Paulo – SP. Memorial Da Resistência De São Paulo. 2020/2021.  

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Como citar este artigo:

JU, Amora. “Isto não é sobre Nós”. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner YorkFelipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos