Transamadurecer

2022-01-22
Por Letícia Lanz
70 anos, psicanalista, pensadora, poeta. Mestra em Ciências Sociais - Sociologia pela UFPR e Especialista em Gênero e Sexualidade pela UERJ. Formou-se também em Ciências Econômicas - Economia e fez mestrado em Administração de Empresas na UFMG, tendo atuado por 30 anos como Consultora na área de Recursos Humanos, em organizações públicas e privadas do país e do exterior. Casada há 45 anos, tem três filhos e cinco netos. Escreveu e publicou diversos livros, sendo os mais recentes “A Construção de Mim Mesma - Uma história de transição de gênero", e "O Corpo da Roupa”, primeira obra publicada sobre Estudos Transgêneros no Brasil.

Amadurecer é sempre uma palavra ambígua e capciosa quando aplicada a vidas humanas, especialmente quando pretende significar crescimento, experiência e consciência adquiridos pelas pessoas com o avançar dos anos. Nada mais enganoso do que supor que mais idade corresponde a maior maturidade.

Maturidade não se alcança com a idade. Definitivamente, coisas como compostura, juízo e equilíbrio não devem ser vistos como atributos próprios da velhice. Conhecemos pessoas idosas que demonstram nos seus sentimentos, pensamentos e ações que o tempo não lhes acresceu nem uma grama de ponderação, discernimento e compreensão da vida. Como também conhecemos pessoas que, apesar de jovens, já alcançaram graus muito elevados de sensibilidade e sensatez.

Amadurecer, no sentido humano do termo, é algo muito maior, muito mais amplo e profundo do que o simples do que o simples envelhecer de uma pessoa. Maturidade é uma idealização do imaginário social, um estágio de quase perfeição do desenvolvimento humano situado na fase de vida chamada velhice.  

Para a grande maioria das pessoas, amadurecer acaba tendo apenas o sentido agrícola do termo, que é deixar de ser fruta verde para tornar-se fruta madura – maturar –, nada mais. Nenhuma evolução nem revolução no modo de vida, nenhuma mudança comportamental significativa que leve a pessoa a desenvolver os atributos de sabedoria, ponderação, prudência e equilíbrio que, embora comumente associados à velhice, não se encontram necessariamente numa pessoa somente pelo fato de ela ser idosa.     

Os desafios de amadurecer são basicamente os mesmos, tanto para pessoas transgêneras quanto para pessoas cisgêneras, envolvendo os mesmos desafios e enfrentamentos. Alguém pode contra-argumentar que não: que o amadurecer de pessoas transgêneras – o transamadurecer – é necessariamente distinto do amadurecer de pessoas cisgêneras em virtude das enormes pressões sociais e sofrimentos psíquicos a que uma pessoa transgênera é submetida ao longo da vida. Infelizmente, não, pelo menos nesse aspecto, pois sofrimento não amadurece ninguém sendo, no máximo, estímulo para a pessoa amadurecer, desde que ela o encare como fator de crescimento e não fator de desespero.

Muitas vezes o sofrimento serve unicamente para manter a pessoa estacionada na sua imaturidade. Em vez do sofrimento transformar a pessoa em alguém mais forte, mais resistente à dor e mais autocentrada, pode transforma-la numa pessoa ressentida, amarga e vingativa ou, pior ainda, em alguém tristemente resignada e submissa ao destino que a vida lhe impôs.

Mas a natureza altamente contestatória e revolucionária da transgeneridade é um fator capaz de diferenciar radicalmente o transamadurecer do amadurecer de pessoas cisgêneras. A existência transgênera é uma jornada repleta de pesados e intensos desafios de crescimento, um convite permanente a vivências muito profundas e desafiadoras, em que a pessoa deve entender, aceitar e transformar sua transgressão de gênero em genuína transformação e desenvolvimento individual.

Embora seja direito de qualquer pessoa transgênera buscar ter o corpo que está presente no seu desejo, a transformação de que falo não guarda nenhuma relação direta com nenhum procedimento estético e/ou de reaparelhamento genital. Sedutoramente oferecido pelo biopoder como forma de readequação corporal da identidade de gênero com a qual a pessoa se identifica, tais procedimentos visam, na realidade, a criação de corpos dóceis, estereotipados e normalizados que sirvam tentadoramente de passaporte para o reingresso, triunfal e definitivo, da pessoa transgênera ao pleno gozo e exercício do dispositivo binário de gênero, do qual ela foi arbitrária e sumariamente arrancada e expelida, em virtude da sua transgressão das normas de gênero.

Antes de ser homem ou mulher, uma pessoa transgênera é uma pessoa transgênera, alguém que transgride as normas de enquadramento e de conduta do dispositivo binário de gênero. O primeiro desafio do transamadurecer é compreender e aceitar que a ordem vigente, construída e mantida com base no binarismo de gênero homem-mulher, jamais aceitará a condição transgênera, como fato normal da sociedade, pelo menos não em futuro próximo. Por mais que a pessoa transgênera corresponda aos estereótipos de homem e de mulher vigentes na sociedade, será sempre reconhecida como uma pessoa transgênera, que está transgredindo o sagrado dispositivo binário de gênero vigente na nossa sociedade.

O binarismo de gênero e a transgeneridade são dois polos opostos e irreconciliáveis. Transamadurecer implica em compreender e aceitar a transição de gênero como subversão, contestação e resistência às normas de gênero, não como uma obediência cega às arbitrárias e opressivas práticas discursivas de gênero, absolutamente impiedosas e hostis, por princípio, com toda e qualquer transidentidade.

Que amadurecimento pode existir em entender a transição de gênero como um ato de rendição incondicional ao dispositivo binário de gênero? Que amadurecimento pode haver em esvaziar todo o conteúdo subversivo e potencialmente explosivo da transgeneridade, em nome de ser integralmente aceita na categoria de gênero com a qual a pessoa se identifica? Que amadurecimento pode haver em reconhecer legitimidade e querer participar de um dispositivo de gênero que não reconhece legitimidade às transidentidades, que marginaliza e expurga  sumariamente pessoas que ousam apresentar-se numa identidade de gênero diferente da que lhe foi atribuída ao nascer, exclusivamente em razão do seu órgão genital?

Transamadurecer implica em ser capaz de distinguir identidade de gênero de papéis de gênero. Assim como o gênero e a orientação sexual, a sociedade também atrela ao órgão genital de nascimento – macho ou fêmea – todos os papéis, atributos e expectativas de desempenho, com o objetivo de delimitar artificialmente funções sociais exclusivamente masculinas do que seriam funções sociais exclusivamente femininas. Contudo, ser pai ou ser mãe não são meros papeis sociais, arbitrariamente estabelecidos pela ordem vigente. A revolução feminina dos últimos cem anos provou, com toda a clareza necessária, que identidade de gênero e papéis sociais não são a mesma coisa e muito menos dependem um do outro. Não tem o menor fundamento, como faz o menor sentido, determinar que ser pai é uma função exclusivamente masculina como ser mãe é uma função exclusivamente feminina. Transamadurecer implica em reconhecer que alguém pode ser pai, sem ser necessariamente homem, como pode ser mãe, sem ser necessariamente mulher.

Transamadurecer implica em livrar-me do jugo do gênero, em vez de me submeter a ele passivamente, tentando desesperadamente pertencer a um clube que nunca me quis, que nunca vai me querer, como sócia. Não importa o que a pessoa transgênera faça, a menos que se mude o sistema, para o “cistema” que aí está ela continuará sempre sendo alguém que está transgredindo as normas de gênero. Ninguém nasce num “corpo errado”.

Transamadurecer implica em descobrir que eu posso ser perfeitamente homem, mulher ou outra identidade qualquer sem me submeter nem à hierarquia nem às normas de conduta de gênero. Sendo, muito ao contrário, uma desconstrutora de práticas discursivas de gênero na minha vida diária.        

Nunca foi propósito da Natureza fazer com que alguém se sinta impostora vivendo dentro do próprio corpo. Nada mais imaturo do que acreditar que eu não sou eu porque eu não tenho um corpo que me permita ser quem eu sinto que sou. O corpo que eu tenho é o corpo que eu sou – a sociedade, hipócrita, que chupe essa manga. Uma ideia absurda como essa tem sua origem nos discursos de gênero em vigor na sociedade, que obrigam as pessoas, do ventre ao túmulo, a se adequarem a perfis de gênero – as tão famosas quanto execráveis “masculinidade” e “feminilidade” – totalmente “fake”, arbitrários e artificiais. Trasamadurecer implica em livrar-se desses discursos, em “sambar” na cara deles, com a elegância da porta-bandeira e do mestre-sala de uma escola de samba chamada Consciência-de-Si-Mesma.

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Como citar este artigo:

LANZ, Letícia. Transamadurecer. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, janeiro de 2022, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Sara Wagner YorkFelipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Santos