Storytelling na pandemia: experiências, memórias e ficções

2020-09-04
 

Por Tania Lucía Maddalena  

Pesquisadora argentina, Professora no Programa de Pós-graduação em Formação de Professores (UNIR/Espanha), Doutora em Educação (Proped/UERJ).

Lattes / ORCID / Instagram

 

A humanidade narra a pandemia

 

A criança está doente. A mãe a leva para cama e se senta ao lado. E então começa a lhe contar histórias. Como se deve entender isso? Eu suspeitava da coisa até que N. me falou do poder de cura singular que deveria existir nas mãos de sua mulher. Porém, dessas mãos ele disse o seguinte: – Seus movimentos eram altamente expressivos. Contudo, não se poderia descrever sua expressão... Era como se contassem uma história. – A cura através da narrativa, já a conhecemos das fórmulas mágicas de Merseburg. Não é só que repitam a fórmula de Odin, mas também relatam o contexto no qual ele as utilizou pela primeira vez. Também já se sabe como o relato que o paciente faz ao médico no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo curativo. Daí vem a pergunta se a narração não formaria o clima propício e a condição mais favorável de muitas curas, e mesmo se não seriam todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe – até a foz – na correnteza da narração. Se imaginamos que a dor é uma barragem que se opõe à corrente da narrativa, então vemos claramente que é rompida onde sua inclinação se torna acentuada o bastante para largar tudo o que encontra em seu caminho ao mar do ditoso esquecimento... É o carinho que delineia um leito para essa corrente. (BENJAMIN, 1995, p. 269)

Reli recentemente este ensaio de Walter Benjamin, e foi impossível não o trazer para refletir sobre a força da contação de histórias no momento de dor social que atravessamos.  Há muito tempo que as pesquisas acadêmicas discutem o poder e as formas da narrativa, poderíamos citar desde os primeiros estudos sobre “a poética” de Aristóteles até as novas manifestações de narrativas transmídia que encontramos nas redes sociais da Internet. Mas meu objetivo hoje é trazer a arte de contar histórias no momento histórico que vivemos, uma arte que vai além da linguagem oral, pois penetra nos gestos, acalma as dores, produz memórias e, sobretudo, marca o outro. Um outro que está isolado fisicamente mas que também narra, em rede.

Quando defendi minha tese de Doutorado em Educação “Digital Storytelling: uma experiência de pesquisa-formação na cibercultura” em fevereiro de 2018, orientada pela Prof. Edméa Santos no Proped/UERJ, eu argumentei que a contação de histórias digitais estava composta por um tripé: memória-experiência-ficção que expande sua potência marcante na hipermídia. Ainda acreditando nessa composição, para seguir a essência escolhi trazer numa breve análise cartográfica digital algumas experiências que mostram a contação de histórias com esse tripé em tempos de COVID-19.

Minha cartografia digital foi feita na rede social Instagram como campo da pesquisa virtual. O Instagram atualmente tem 69 milhões de usuários ativos no Brasil, que é o terceiro país no ranking de usuários dessa rede social no mundo, depois de Estados Unidos e Índia.

Entre abril e junho/2020 algo mostrou-se de forma clara para mim. No meio do desespero da quarentena, as mortes e os casos positivos aumentando sem parar, pessoas trancadas nas suas casas sem poder sair. Comecei a visualizar, na Internet, um movimento narrativo muito potente, cujos pontos de partida diversos confluíam na mesma direção: uma humanidade contando histórias sobre/na/com a pandemia, pessoas narrando a dor social, a memória, a experiência, e criando ficções sobre a pandemia. Retorno à pergunta do conto do Benjamin: Como se deve entender isso?

 

Guardar a memória e a experiência vivida na pandemia

 

Decidi começar pela experiência mais dolorosa, que é narrar a morte. Narrar e escrever algo da pessoa que já não está conosco dói: embora o ser humano tenha certeza da morte desde muito cedo, já na infância, nunca estamos preparados para seu encontro. A pandemia causada pelo novo coronavírus deixou até hoje (31/08/2020) 121.000 vítimas no Brasil. Mortes causadas pela infecção do vírus, num (des)governo que não cuidou da sua população e preferiu falar que “era uma gripezinha” ou que não tinha nada a fazer pelo aumento das vítimas.

O medo e a morte são os grandes estruturantes da dor social que atravessamos. Segundo um velho ditado, nós só morremos de verdade quando morre a última pessoa que se lembra de nós. A lembrança pulsa e mantém viva a memória. O artista Edson Pavoni, junto a outros artistas e jornalistas voluntários, criou o “Inumeráveis”, um memorial virtual dedicado a cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil. Nessa conta do Instagram e também no site, podemos ler uma breve história de cada vítima, resumida numa linha junto ao nome completo da pessoa. A essência do projeto defende que “não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa”.

A homenagem às vítimas nesse memorial é das coisas mais sensíveis e emocionantes que eu já vi. Nada, absolutamente nada, tirará a dor das famílias das vítimas, mas compartilhar suas histórias pode ajudar a transitar melhor pelo processo de luto.

“Guardar as memórias da pandemia” também é o lema do movimento das “Constatações da quarentena”, uma proposta da escritora Isabelle Borges que começou em março/2020, no início do isolamento no Brasil, e hoje compartilha relatos de outras pessoas. Esse movimento se propõe a estimular a escrita cotidiana das constatações da quarentena, esses escritos são rastros que ajudam a formar o acervo e guardar a memória coletiva da pandemia. Cada pessoa envia um pequeno relato ou texto livre por meio de um formulário muito rápido de preencher, que é editado em forma de imagem e compartilhado no Instagram. Todos esses relatos possuem a delicadeza de uma narrativa cotidiana, íntima, mas que ao mesmo tempo grita em voz alta e quer ser ouvida, uma narrativa que precisa ser compartilhada e guardada. O projeto continua aceitando contribuições, passem por lá e deixem suas constatações! É um movimento maravilhoso!

A escrita, uma das maiores invenções da humanidade, vem sofrendo fortes mudanças na cibercultura, nossa cultura contemporânea. A convergência de mídias conectada ao hipertexto fundou a linguagem da hipermídia (SANTAELLA, 2013), que traz inúmeras possibilidades narrativas combinando texto digital, imagens, hiperlinks, geolocalização, gifs, memes, fotografias, sons, hipervideos, música, emoticons entre outros. É nessa linguagem que escrevemos, inventamos mundos e trocamos muitas das mensagens no nosso cotidiano. Cada dia somam-se novos fenômenos que afetam as formas de ler, escrever e entender o contexto que habitamos (MADDALENA, 2020).

Nos relatos escritos há sempre uma exposição, um encontro com experiências do passado e do presente, desejos futuros, histórias de outros que afetam e entram para compor a trama. Estão ali, escritas. Mostrando um pouco de si e de todo o processo que atravessamos até chegar à dita invenção. Cabe aqui o resgate do conceito das “Hiperescritas de si” (MADDALENA, 2018; 2020), as escritas autobiográficas fundadas no hipertexto, que fazem uso dele e o incorporam combinando com outros elementos digitais para narrar o cotidiano e a própria vivência experiencial pessoal de habitar e aprender no/com o mundo. A possibilidade de combinar texto e outros tipos de signos em hiperambientes descentraliza a hierarquia linear e reconceitualiza a dimensão gráfica do texto. Por isso se fala em hiperescrito, hiperficção, hiperconto, hiperpoesia, hiperedição etc. (SANTAELLA, 2013, p. 215). Me inspirei nesses conceitos para falar de hiperescritas de si na minha tese de doutorado (MADDALENA, 2018), e vejo como muitas hiperescritas de si pulsam e estão narrando a pandemia.

Qual é a diferença entre a escrita de si no suporte analógico e a hiperescrita de si? A maior diferença é que a hiperescrita de si surge na linguagem hipermedial e absorve toda sua potência. O narrador de uma história digital entende que a linguagem da Internet possibilita uma escrita expandida, pois nela integram-se e entram no jogo outros elementos estéticos e semióticos, e, sobretudo, a possibilidade de interlocução e interatividade que a rede proporciona na (co)criação da própria narrativa.

Mais uma experiência que caminha nesta direção, chamada “Narrativas do isolamento”, um “projeto/galeria que envolve moda, saúde mental e isolamento social”, as pessoas participam enviando fotografias com os pequenos detalhes do cotidiano no isolamento: roupas, comidas, atividades do cotidiano da quarentena, e compartilham os sentimentos que acompanham as imagens. Esse projeto utiliza o Instagram como espaço de galeria, fotografias acompanhadas de narrativas (hiperescritas de si) de pessoas que querem deixar uma marca na construção dessa memória.

O fotógrafo Fábio Erdos produziu uma pequena série no Instagram chamada “Dark lines, bright sky” com estética de fotos antigas do século XIX, estilo TinType. Para produzir a série, ele se inspirou num texto que sua mulher escreveu após o nascimento do seu primeiro filho, em fevereiro/2020, no começo da pandemia. Cada fotografia é acompanhada por um trecho pequeno dessa vivência de serem pais de um recém-nascido em tempos de isolamento físico, o peso de um puerpério ainda mais pesado, as aprendizagens da nova jornada como pais em tempos históricos. Conheçam e visitem essa série, a delicadeza e força de cada imagem é única.

Além das experiências mais individuais, podemos ver também instituições que se movimentaram para trazer e compartilhar “histórias em tempos difíceis” como o Museu da Pessoa, apoiando e promovendo o uso de recursos digitais para potencializar as narrativas de si em tempos de pandemia. O museu, como a instituição de excelência no cuidado e conservação da memória coletiva, tem feito propostas muito alinhadas com movimentos de narrativas mais híbridas, nas múltiplas linguagens que habitam a hipermídia, como podemos ver na proposta “Diário para o futuro”, que busca juntar histórias e narrativas do tempo que vivemos em diversos formatos: textos, vídeos e sons.

Temos também testemunhado o surgimento de novos museus, como o “Museu do Isolamento”, o 1º museu do Brasil criado para difundir arte em tempos de isolamento, fundado por Luiza Adas. Todas as obras de artistas compartilhadas no perfil foram feitas nesses meses de pandemia. Sou ciente de que a arte como expressão e motor de invenção nesses tempos merece um outro artigo, mas não podia deixar de mencionar esse museu, sigam e acompanhem, é realmente inspirador.

 

As ficções da pandemia

 

Narrar e contar histórias também é inventar, criar, ficcionalizar. Falar de Storytelling implica falar de ficção. Não há nada mais fecundo para o surgimento de uma história que um personagem encontrando um tempo propício. Às vezes, o próprio tempo alcança vivências que antes pertenciam ao universo ficcional. Charlie Brooker, criador do seriado Black Mirror, falou no mês de maio/2020, numa entrevista na rádio Times, que não haveria uma próxima temporada do seriado Black Mirror por enquanto, pois não tinha estômago para criar histórias sobre uma sociedade que se desmorona no atual contexto que vivemos.

Vou resgatar duas invenções ficcionais que surgem no Instagram nesse contexto pandêmico e que se apropriam da rede social para se expandir nas possibilidades da hipermídia. “Nenhum futuro próximo” é um livro no Instagram, “18 contos sobre o futuro de um mundo que não tem nada de novo nem de normal”, autoria de Vinícius Neves Mariano, ilustrado por Thiago Miranda. A micro narrativa (micro conto, microficções) é um fenômeno que ganha força nas redes sociais, mas que existe há muito tempo. “Nenhum futuro próximo” é um livro/obra de arte, suas ilustrações têm grande beleza estética, e os contos são provocadores, criativos e muito bem escritos.

Para fechar, temos o caso do seriado “Isolados” (tentarei não fazer spoiler), cujos 5 episódios foram publicados no Instagram em maio/2020. Histórias de relacionamentos e amores LGBT que se distanciaram por questões pandêmicas, e em diversos diálogos vão nos levando aos afetos, paixões, ódios, encontros e desencontros. São várias histórias curtas, acontecem em 5 cidades ao redor do mundo, e a edição é perfeita para assistir no próprio celular, pelo IGTV.  Recomendo muito!

No campo da ficção, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A ficção se nutre e se inspira no cotidiano, mas vai além, abre os caminhos e o jogo do subjuntivo, impondo suas próprias regras. Aqui reside sua força.

 

E na educação? Como podemos aproveitar a arte de contar histórias digitais?

 

Aprendi com Edméa Santos e o GPDOC que é importante observar a cultura, entender o que está acontecendo nesses movimentos para inspirarmos e criar propostas pedagógicas, atos de currículo, práticas inventivas dentro da sala de aula que estejam sintonizadas com nosso contexto. Espero, assim, que este pequeno texto traga algumas inspirações para movimentar a arte de contar histórias digitais no cotidiano e nas nossas práticas pedagógicas.

Acredito, como Walter Benjamin, e como cada uma das pessoas que estão por trás dos projetos que aqui expus, que existe uma potência marcante na contação de histórias digitais. Desejo que você encontre a força que possui a narrativa no difícil momento que transitamos, e que ela dispare novas histórias, histórias que soprem os ventos de outro mundo possível. 

 

Muito obrigada pela leitura atenta!

 

 Algumas dicas:

-Se possui conta no Instagram, siga as contas dos projetos que citei, vale a pena!

-Se ainda não assistiu, recomendo o filme As Invenções Digitais de Si

-Deixo alguns artigos sobre o uso da Digital Storytelling na Educação:

Visual Storytelling e pesquisa-formação na cibercultura

Digital Storytelling na formação de professores

Criar histórias, narrar a vida e produzir audiovisualidades: Digital Storytelling na formação docente

USS Callister: universos de ficción y aprendizaje de lenguas

El relato digital como propuesta pedagógica en la formación de profesores

  

Referências 

BENJAMIN, Walter. Conto e Cura. In: Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 269.

MADDALENA, Tania Lucía. Digital Storytelling: uma experiência de pesquisa-formação na cibercultura. 2018. 204.f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

MADDALENA, Tania Lucía.  A HIPERESCRITA DE SI: memória, experiência e invenção digital na formação de professores. Teias (Rio de Janeiro), v. 21, p. 203-217, 2020.

SANTAELLA, Lucía. Comunicação ubíqua. Repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.

 

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Como citar este artigo:

MADALLENA, Tania Lucía. Storytelling na pandemia: experiências, memórias e ficções. Notícias, Revista Docência e Cibercultura, agosto de 2020, online. ISSN: 2594-9004. Disponível em: < >. Acesso em: DD mês. AAAA.

 

Editores/as Seção Notícias: Felipe CarvalhoMariano Pimentel e Edméa Oliveira dos Santos