Uma Perspectiva do início das manifestações de 2013.

Autores/as

  • Maria Goretti Nagime Barros Costa Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

DOI:

https://doi.org/10.12957/rcd.2023.79415

Resumen

            Eu tinha 28 anos naquele período que durou entre o final de 2012 até meados de 2013. Era uma advogada em Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro, e a minha atribuição no escritório era basicamente esperar. Esperava em filas de cartórios, esperava receber documentos de outros advogados para revisar, esperava para protocolar petições, enfim, eu passava muitas horas em atribuições burocráticas e lutando contra a minha impaciência. Nesse momento eu descobri a rede social Facebook, um grande aliado na arte da espera, com textos e imagens leves e interessantes. Depois de horas esperando no meu trabalho, eu era capaz de não perder o bom humor, afinal, havia passado o tempo no facebook.

            Era nítido que o algoritmo fazia algum esforço para me manter ali, me manter entretida. O facebook me mostrava temas e perfis que eu mais interagia, o que eu mais curtia. Eu também contribuía para receber o material que eu mais me identificada. Por exemplo, se eu visse um texto interessante em qualquer lugar, passava a seguir o autor para ler mais da obra dele. Com o tempo, meu feed de notícias era formado por grandes autores, professores, figuras históricas de movimentos sociais. Perfis que deixaram de ser apenas de um usuário para registrar o seu cotidiano e passaram a ser perfis com potencial político de debate.

            E foi em um dia comum de trabalho que eu recebi através do facebook as primeiras notícias de manifestações no Rio de Janeiro. Eram relatos pessoais de estudantes vivenciando o início das manifestações contra o aumento da passagem de ônibus. O transporte no Rio de Janeiro era precário, sucateado, caro, a empresa que exercia monopólio sobre os transportes tinha como advogada a esposa do então governador Sérgio Cabral. Sérgio Cabral era elogiado e festejado por toda a mídia de massa. Lembro da capa da revista Veja Rio com Sérgio Cabral e o título “Menino do Rio”, em referência ao personagem desprendido e carismático da música de Caetano Veloso: “Menino do Rio, calor que provoca arrepio/ Dragão tatuado no braço/ Calção corpo aberto no espaço / Coração de eterno flerte, adoro ver-te /Menino vadio, tensão flutuante do rio /Eu canto pra Deus proteger-te”. Não existia crítica ao governo de Sérgio Cabral na mídia tradicional. Mas os trabalhadores enfrentavam horas de transporte péssimo todos os dias. A conta não fechava. E agora a passagem de ônibus, sem explicação nenhuma, ou com explicação insuficiente,  aumentaria de preço.

 

            A primeira pequena manifestação contra o aumento da passagem não apareceu em nenhum jornal, mas apareceu vinte vezes e de diferentes formas no meu facebook. Poucas pessoas e muita repressão policial. Uma bomba de gás lacrimogêneo feriu os olhos de uma manifestante, o que gerou muita solidariedade e muitas dicas nos comentários da publicação de possíveis formas de não se machucar e não respirar o gás lacrimogêneo. Colocar um pano com vinagre no rosto, já deixar o pano no pescoço ou no próprio rosto, já que, uma vez lançada a bomba pela polícia, não haveria tempo de abrir a mochila, encontrar o lenço, umedecer com vinagre, aplicar no rosto. O gás queimava os olhos, a garganta, impedia a respiração, algo totalmente desproporcional como resposta a manifestantes segurando cartazes.

            A impressão que eu tive lendo as publicações e comentários era que, se a repressão policial não tivesse sido tão forte, não haveria um décimo da repercussão. A insatisfação passou a ter vários pontos: Por que a passagem aumentou de preço e o serviço de transporte só piora? Não deveriam nos dar uma explicação sobre isso? Por que não se pode criticar o aumento da passagem? Por que não se pode criticar o governo Sérgio Cabral? Por que Sérgio Cabral não simplesmente senta pra conversar com os manifestantes pra ouvir o que eles têm a dizer?  Por que os jornais não podem dizer que houve manifestação? Por que a polícia se sente à vontade para jogar bomba de gás lacrimogêneo em pessoas segurando cartazes?

            Essas questões eram discutidas na rede social e as diferentes opiniões mostravam um lado das pessoas que desconhecíamos, uma polarização até então não vista: quem achava natural a polícia bater em manifestantes e quem achava um absurdo; quem conhecia a realidade no transporte público no Rio de Janeiro e quem nem queria saber; quem achava natural um governante não lidar com movimentos sociais e quem não achava natural. A Rede Globo, principal veículo de comunicação do país, começou a mencionar de forma tímida que as manifestações aconteciam. Um importante comentarista de seu jornal disse que os manifestantes não valiam nem vinte centavos (valor do aumento da passagem do transporte público). Foi então que passei a escrever sobre isso na minha conta pessoal do facebook e passei a ser respondida e replicada por outros. Administradores de algumas páginas do facebook sobre movimentos sociais me convidaram para escrever de forma fixa, e então da minha salinha do escritório de advocacia do interior passei a conhecer grandes autores que se posicionavam sobre o tema.

            Conheci também alguns manifestantes, e um deles se tornou um grande amigo. Ele também morava no interior, mas em outra região. Plantava sua própria comida, não comia carne nem derivados de leite, curtia sua horta, evitava usar luz elétrica, acordava quando o sol se levantava e dormia quando o sol caía. Ele não usava dinheiro pra quase nada, não precisava, e se orgulhava disso. Quando esporadicamente precisava comprar alguma coisa, ia à cidade de ônibus, que agora aumentava a passagem. Era então um dos primeiros manifestantes. Ele considerava que a polícia se sentia à vontade para jogar bombas de gás lacrimogêneo porque o aumento da passagem era uma pauta popular.

            Um dia este meu amigo me relatou que estava em uma manifestação no dia anterior, uma das primeiras, e já depois de encerrada o grupo de colegas estava indo lanchar quando passou um carro da polícia militar e todos os policiais saíram do carro armados em direção ao grupo. Quando então um “herói”, um homem muito alto de terno chegou caminhando assertivo em direção aos policiais. Os policiais voltaram para o carro de polícia. Desistiram da abordagem. Apenas um homem de terno. Todo mundo sabia do que se tratava: um advogado.

             A simples presença de um advogado já era capaz de desencorajar eventuais abusos da polícia, essa foi a conclusão. Meu amigo conseguiu o vídeo desta cena, e, de fato, a imagem correspondia cem por cento a sua narrativa. Quem era esse advogado? Meu amigo me apresentou: Luan Cordeiro.

            Ligo pra Luan e ele me atende dizendo que havia presenciado a manifestação, que alguns colegas advogados estavam, como eu, incomodados com os abusos da polícia com os manifestantes, e estavam se organizando para protegê-los em uma manifestação maior que estava prevista. Principalmente os manifestantes mais pobres, caso fossem levados pela polícia à uma delegacia para “servir de exemplo” a outros manifestantes, precisariam de defesa. Então alguns advogados deveriam ir à manifestação e outros deveriam ficar em casa para produzirem um eventual Habeas Corpus, remédio processual que assegura a liberdade. Ali nascia o Grupo Habeas Corpus.

            A manifestação aconteceu, a violência policial aconteceu e a defesa feita pelos advogados aconteceu. O que ninguém previa era que seriam marcadas diversas outras manifestações cada vez maiores, e o grupo de advogados que se reuniu para fazer um único Habeas Corpus se tornou o Grupo Habeas Corpus e depois o Coletivo de Advogados do Rio de Janeiro. Se não me engano éramos onze, e eu era a única advogada do interior. A divisão de tarefas ia se aprimorando a cada manifestação. A alguns advogados ficava a função de estarem na manifestação, a outros de estarem nas principais delegacias dos arredores, para onde os manifestantes eram levados, e a outros ficava a função de assistir os protestos através da Mídia Ninja -  que transmitia ao vivo e em diversos ângulos as manifestações - para ligar ou enviar mensagem para os advogados quando assistiam policiais batendo em algum manifestante, dizendo a localização da violência. Essa muitas vezes era a minha função. Saber identificar as movimentações dos policiais quando estavam prestes a cometer o abuso era tão importante quanto saber dar as coordenadas de localização.

            Foram mais de mil atendimentos em delegacias. É importante ressaltar que a violência policial nunca acontecia no mesmo lugar em que os advogados estavam, o que consolidava a primeira impressão dos manifestantes com o advogado Luan.

            A mídia que transmitia ao vivo as manifestações não se chamava “Mídia Ninja” à toa. Os repórteres tinham pouco ou nenhum recurso, filmavam predominantemente com celulares e transmitiam ao vivo do alto de prédios, do meio das manifestações, correndo de gás lacrimogêneo, e, por isso, usando uma camiseta com vinagre cobrindo o rosto. Eles se pareciam com ninjas e sua atuação era como a das histórias de ninjas.

            Eu assistia do alto com a câmera da Mídia Ninja quando em determinada manifestação a polícia militar pegou um manifestante e o levava para o carro de polícia quando então outro manifestante do lado oposto da praça quebrou alguma coisa material – não me lembro ao certo o quê – e os policiais, assustados com o barulho, soltaram imediatamente o manifestante que haviam pego e foram ao local de onde haviam quebrado algo. Era o início de uma estratégia que perdurou. A cada manifestante pego, um muro era quebrado, uma cadeira, uma vidraça, algo que distrairia os policiais e ao mesmo tempo lhes daria um atestado no dia seguinte de que não controlaram bem a manifestação. A narrativa dos simpatizantes da violência policial era chamar os manifestantes de vândalos e baderneiros. A narrativa dos manifestantes era a de que “parede não sangra”, de que eles deveriam se preocupar com as violências de Estado ao invés de se preocuparem com uma aparente ordem.

            Neste período a Rede Globo começou a transmitir as manifestações, mas nunca ao vivo. Passava um compilado de imagens da Mídia Ninja no jornal à noite, e me lembro de não mencionar a pauta das manifestações e a violência policial. Faziam apenas uma lista de todas as avarias em bens materiais. Um dia subestimou a audiência da Mídia Ninja e do facebook e inverteu a cronologia, a sucessão dos acontecimentos. Eu havia visto a imagem de policiais batendo em alguém, e logo depois um manifestante jogando um coquetel Molotov, bomba caseira usada pelos manifestantes. A rede Globo usou as imagens da Mídia Ninja e descreveu o oposto: que primeiro um manifestante jogou um coquetel Molotov e então por isso veio a polícia.

            A histórias de autoridades que foram perseguidas por se posicionarem contra a violência policial tiveram um imenso protagonismo. Me recordo de duas: a do pedreiro Amarildo e a história do quadro de Latuff nas salas dos juízes. Essas histórias são muito importantes para a análise das pautas em questão, e a pauta é o que determina, digamos, a “natureza jurídica” do movimento, em que categoria se enquadra historicamente o movimento.

            Amarildo era um pedreiro que morava na favela Rocinha. Em um domingo, após pescar alguns peixes, foi ao mercado comprar alho e limão para prepará-los. A polícia o abordou no mercado e o chamou “para averiguação”. A última vez que sua esposa o viu foi entrando em uma viatura. Mais tarde a polícia a informou de que ele havia sido liberado e estava voltando para casa, mas ele nunca chegou. A esposa ficou em choque, pedia a ajuda de todo mundo, e eles debochavam dela, pediram a prisão dela, e passaram a dizer que Amarildo devia ter morrido pelo tráfico, só podia ser. Quando então entrou no caso um delegado que se tornou um verdadeiro ídolo, Orlando Zaccone.

            Orlando Zaccone frisava que Amarildo não tinha nenhuma ligação com o tráfico, isso passou a aparecer misteriosamente depois de sua morte. Zaccone não abriu mão do pedido da filmagem das câmeras da Unidade de Polícia Pacificadora, para onde os policiais militares o levaram para ser interrogado. E justamente as câmeras comprovaram que Amarildo entrou na unidade da Polícia, mas não saiu. Anos depois, depois de ter sido uma das principais pautas das manifestações de 2013, depois de muitas campanhas inclusive internacionais, a justiça concluiu que Amarildo foi torturado pela polícia até a morte.

            Os professores e intelectuais da época marcavam posição contra a truculência policial. O Juiz João Batista Damasceno pendurou em seu gabinete um quadro, “Por uma cultura de paz”, uma obra de arte de Carlos Latuff com uma crítica à polícia.  O então deputado estadual Flávio Bolsonaro emitiu um ofício que se tornou uma representação contra o juiz. O tribunal mandou o juiz retirar o quadro de sua sala. Mas, um pouco antes de receber a comunicação para retirar o quadro de sua sala, logo que tomou conhecimento do caso, o desembargador Siro Darlan decidiu “dar asilo político” ao quadro pendurando-o em seu gabinete. Então o órgão Especial do Tribunal do Rio de Janeiro abriu uma sindicância para apurar a sua conduta, considerada “afrontosa à decisão colegiada” e determinou que também retirasse o quadro de seu gabinete. Ele não obedeceu de imediato, mas o quadro, juntamente com outras obras de arte, mais tarde foi levado a leilão e foi arrematado pela desembargadora Kenarik Boujikian, então presidenta da Associação Juízes para a Democracia, que pendurou o quadro em seu gabinete. O dinheiro arrecado foi usado para adquirir uma casa para a família do pedreiro Amarildo.

            Outras histórias também tiveram um imenso protagonismo. Houve o “Ocupa Cabral”, onde jovens de todo o Rio de Janeiro sentavam-se na porta do prédio do governador Sérgio Cabral, inicialmente esperando que ele os recebesse para que participassem de eventuais esclarecimentos, para que se sentissem ouvidos. O governador nunca os atendeu e os vinte e três principais membros do “Ocupa Cabral” foram presos. O maior advogado do Brasil, famoso por ter lutado contra a ditadura militar em 1964, Nilo batista, assumiu a defesa deles completamente “pro bono”, ou seja, não cobrou nada por isso, fez como um trabalho voluntário pelo bem público.

            Em determinado momento a mídia tradicional desistiu de negar ou criminalizar as manifestações e passou a tentar tomar a narrativa. Lembro da mudança brusca na capa da revista Veja. Esta revista sempre colocou como foco as vidraças de banco quebradas e a desqualificação de possíveis líderes das manifestações. De repente mostrava na capa uma família de mãos dadas dizendo que as manifestações não tinham uma pauta específica. Poderia ser contra ou a favor do governador, contra ou a favor da ditadura, não importa, venham todos pra rua, está na moda! A partir dali foi ladeira abaixo. A pauta mudou totalmente e por isso a mídia de massa passou a transmitir ao vivo e a polícia parou de bater nos manifestantes.

            Inicialmente as manifestações não tinham como foco a presidenta Dilma Rousseff, eleita pelo Partido dos Trabalhadores. Eram perceptíveis apenas críticas pelo que ela deixava de fazer. Ela deixou de cortar relações com o governador do Rio, ela deixou de prestar solidariedade aos manifestantes feridos, ela deixou de ouvir os manifestantes, ela se afastou dos movimentos sociais, etc. Ela nunca havia sido o foco principal. A tentativa de mudança de narrativa era ousada: tentar emplacar a ideia de que as manifestações eram contra ela. Tocado o berrante da Rede Globo, de repente estavam na rua todos aqueles que haviam sido contra as manifestações, que reclamavam do trânsito, da bagunça, aqueles que apoiavam a violência da Polícia Militar, aqueles que diziam “tem que bater nesses vagabundos”. Foram pra rua com cartazes pedindo intervenção militar e pena de morte. Foram muito bem tratados pela polícia. Nosso Coletivo de Advogados então não teve mais trabalho ali. E nem iríamos como manifestantes porque a pauta era completamente o contrário da nossa.

            Aquele ano, apenas no facebook, na minha salinha de escritório, minha vida mudou de diversas formas. Conheci grandes autores e temas intrigantes e por isso entrei no mestrado e doutorado em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense. Fui convidada para escrever livros com os meus ídolos. Meu trabalho nas redes sociais me fez administradora de grandes páginas sobre Direito e movimentos sociais, e trabalho com isso até hoje, dez anos depois. No final do ano ganhamos um prêmio nacional de Direitos Humanos das mãos de Dilma Rousseff por termos atuado contra a violência policial. Na época das manifestações, Marianna, uma companheira do Coletivo de Advogados, leu meu facebook do lado de seu namorado e me fez um elogio. O namorado dela era Juarez Tavares, o maior jurista brasileiro, um dos maiores do mundo, e se tornou meu grande amigo e inspiração.

            Foram as pessoas que conheci naquelas manifestações que reelegeram Dilma, e o golpe de 2016 foi dado com o apoio dos “isentões”, dos que se denominavam  “apartidários”, que depois passaram a se denominar “patriotas” e elegeram Bolsonaro. Em 2023 eles não aceitaram a derrota nas urnas, invadiram e depredaram o Congresso Nacional em Brasília contando com o apoio e escolta da polícia.

            Por isso, quando hoje ouço alguém dizendo que as manifestações contra o aumento da passagem derrubaram Dilma Rousseff, só consigo pensar: onde é que você estava naquela época? Você não viu nada acontecendo?

           

 

Publicado

2023-10-20

Cómo citar

Nagime Barros Costa, M. G. (2023). Uma Perspectiva do início das manifestações de 2013. Revista De Comunicação Dialógica, (10), 41–46. https://doi.org/10.12957/rcd.2023.79415

Número

Sección

Relatos de Experiência