Da memória individual ao retrato da experiência de época:
observações sobre o filme Que bom te ver viva, de Lúcia Murat
DOI:
https://doi.org/10.12957/revmar.2024.84368Palavras-chave:
Ditadura, Testemunho, Cinema, MemóriaResumo
Desde de há alguns anos as trajetórias de mulheres que foram vítimas das forças de repressão durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) vêm sendo tema de memória e reflexão em diversos formatos. Este artigo ocupa-se de um exemplar pioneiro em tal temática, o documentário cinematográfico Que bom te ver viva, produzido e dirigido por Lúcia Murat e lançado no contexto da redemocratização brasileira, em 1989. Por meio de oito depoimentos e um monólogo interpretado por Irene Ravache, o documentário discute o presente de mulheres cujas vozes emergem na tela e busca responder sobre como aquela experiência violenta e traumática pode ser, em sua permanência na memória de cada entrevistada, uma testemunha daquele momento presente - evidenciando, assim, que falar a respeito de uma vivência traumática é mostrar uma ferida social inscrita no corpo do sujeito.
Passados 35 anos de seu lançamento, resta-nos, ademais, a pergunta sobre o que o filme nos diz ou pode dizer sobre um presente que, como repetição traumática, não para de ecoar o fascínio pela violência ditatorial que suprime a política e até mesmo o sujeito. Basta notar que a justiça de fato jamais foi feita, uma vez que nenhum dos envolvidos com a tortura pagou pelos crimes que cometeu. Apresenta-se a obra no que diz respeito a seus elementos e à montagem, para então discutir-se seu conteúdo em torno de três eixos: o testemunho, a maternidade e o desejo feminino, uma vez que, a tais mulheres, não interessa apenas ter sobrevivido, mas também como seguir vivendo como sujeito da reconstrução democrática, reafirmando-se o desejo feminino, inclusive aquele de ordem sexual. Conclui-se que a culpa é algo indissociável da testemunha e delineia-se, assim, o testemunho como uma possibilidade de afastamento do trauma ao dissolver, justamente, a repetição da culpa.
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